sexta-feira, 12 de dezembro de 2008

Meros expedientes

É o meio que nos apavora. A simples idéia de que qualquer ação ou palavra seja um meio de intenções não nobres, ‘morais’; não um fim, uma verdade, assusta, intriga. Por isso, nego-me ao expediente? Por vezes, rendo-me a ele? E esse perfil ao lado, essa descrição ainda que escorregadia de quem pretende alguma autoria, não é um expediente? Por momentos, pode até ser que eu seja o expediente, o mentor desses textos já escritos, ligeiramente modificados na minha ânsia literária. Por outros instantes, chego a crer no expediente inexistente, no layout copiado, doado pelo google; chego a crer na perfusão de histórias e textos que me assolam, que entram em mim, que eu ingênuo, creio tomar de mim mesmo, já esquecido de onde vieram, do lastro original. De todos os tipos, estilos, de tema vário, os textos vêm, assombram-me, fazem tumulto em mim. Vejo-me mero expediente de assombração. E tudo que se diz, que se faz, quase sempre não é mero expediente? De cálculo quase preciso, e até obtusos, intuitivos, os expedientes são fantasmas inevitáveis, institutos de sobrevivência, de convivência. Onde está o fim, a verdade? Tudo não é mero recurso, expediente?

quarta-feira, 10 de dezembro de 2008

A rosa

Nunca havia dado uma rosa. Comprou uma vermelha forte, de pétalas rijas e reluzentes. Preferiu as sem espinhos. No caminho, teve dúvidas sobre a entrega, mas seguiu. Postou-se no portão da moça irrequieto, num vai e vem de quem quer mais é ir sem deixar rastros. Não foi. Apertou reticente a campainha. Colocou a rosa quase no chão da porta e se foi com o pulmão paralisado e o coração em suspense. Se fosse rosa andante entraria feito gato que afina o corpo pra passar em qualquer greta e se alojaria nas delicadas mãos de moça. Mas a rosa sem espinhos e ousadia ficou ali a mercê, um delicado sinal, prestes a desaparecer. Continuou vívida, quase ansiosa na cor, porém, imóvel até a porta se abrir. E aí foi pétala pra todo lado e caule machucado; a rosa ‘desconcertada’. A moça, num suspiro reprimido, olhou o chão de pétalas de sangue. A primeira rosa recebida na vida, assim despedaçada, mas sem os tropeços do caminho futuro, sem idas e voltas de quem chega e nunca sabe se fica.

terça-feira, 9 de dezembro de 2008

Lobo Judas

Oi?
Por que me olha assim desse jeito?
Desse jeito benevolente?
De olhos semi cerrados?
Por que esse olhar de compadecimento?
E essa calma?
E essas mãos eternamente ocupadas?
Uma bíblia e um cajado nas mãos?
Por que insiste?
E eu?
Por que o olho assim curioso?
E não consigo sentir conforto?
Por que voltou?
Saiu do santinho?
Incorporou a imagem?
Por que essa delicada forma?
Essas vestes verdes de esperança?
Esse manto vermelho contundente?
E esses cabelos que lhe caem na face?
Feito véu, feito chuva mansa?
E essas barbas lisas?
Entristecendo os limites do lábio?
A inibir o sorriso pleno de boca e dentes?
Ou o encolhimento de tristeza?
Por que insisto em mantê-lo aqui?
Diante de mim?
Se não creio com fervor?
Se me confundo na expectativa do existir?
Para que serve essa sua base sólida?
Esses membros ocupados?
Realizados?
Enquanto minhas mãos estão soltas?
Por que não me responde?
Por que me obriga a retornar a pergunta?
A mim mesmo?
Eu que não tenho respostas?

sábado, 6 de dezembro de 2008

Comadre

Há ainda hoje quem cultive as comadres...os compadres. Há quem não os chame mais assim; mas eles continuam presentes. Há quem um dia precise de uma ‘comadre’; aquela de acrílico duro, irritantemente arredondada em forma de semi-prancha para abarcar o que durante anos se tentou esconder nos vasos, latrinas, e canos invisíveis por trás das paredes, para depois levar o conteúdo exatamente para esses mesmos lugares esconderijos. Etelvina tinha horror de toda sorte de necessidades fisiológicas e alimentava-se periodicamente de bananas ‘de vez’ pra evitar descargas sólidas em curtos espaços de tempo. Quantos aos líquidos não controlava tanto, porque eram informes e o cheiro nem tão imediato. Até que um dia sofreu um acidente paralisante; teve que suportar o convívio com a comadre, objeto inanimado, obrigado a se animar, e como...

A comadre ficava lá na beira da cama, parcialmente descoberta pelo balde vermelho, onde Margarida, a enfermeira, depositava o que Etelvina tanto rejeitava durante a noite. Encarregada de trazer e levar a comadre, dar aquele banho de desinfetante e ajustá-la no traseiro da convalescente, e ver o nascedouro de todo aquele resíduo alimentar, Margarida não se importava; já estava acostumada. Mas Etelvina se constrangia de tal forma, que não podia evitar o sentimento de decepção de a virem assim, expelindo o que a humanidade durante tantos anos se aperfeiçoou em esconder, como de forma tão adequada Milan Kundera descreveu na ‘Insustentável Leveza do Ser’. Etelvina era leitora ávida de diversas literaturas, e essa em especial a fez pensar sobre o que tanto a afligia. Aliás, a leitura a deixou parcialmente conformada, porque não era somente ela quem tentava esconder até de si mesma o caráter humano perecível, que já dá suas demonstrações durante toda a vida.

Passada a fase crítica de recuperação, Etelvina não precisou mais usar a comadre. Quase se esqueceu dela. Retomou as rotinas higiênicas modelo. Só de vez em quando mirava a comadre bem ao lado da pia, parcialmente aposentada. Contudo, continuou invocada e incomodada com as excrecências humanas, mas agora muito mais com aquelas escondidas não nos canos por trás das paredes e sob o solo, mas percorrendo nervos e mentes.

sexta-feira, 5 de dezembro de 2008

Gestação

Gang, Gango, Gangor, Gangorra
Gangorra, Gangor, Gango, Gang
Modorra, Modor, Modo, Mod
Mod, Modo, Modor, Modorra
Modorra na Gangorra
Palavras fatais
Abismais
Balanços
Movimentos fatais
Gestacionais

'Fotopictóricos'

Sempre achei que as paredes estavam lá para darmos um sentido a elas. Brancas ou de outra cor exata, prestes a receberem um quadro, um pôster, um artefato qualquer; não simplesmente para quebrar a monotonia e dar um ar decor. Conheço até quem goste de parede nua, sem inscrições aparentes, à espera de um sentido esperado ou inesperado. Cultivei algumas fotos emolduradas nesta vida; permiti que sprays coloridos manchassem os limites da minha intimidade. Montei quase um quebra-cabeça dos meus gostos musicais, cinematográficos e da realidade cotidiana, personagens da minha vida, eu mesmo. Encontrei o exato espaço na parede, onde meus olhos percebiam um significado compreensível, uma lógica incompreensível para outros. Ainda restam muitos brancos que não gostaria de preencher. A localização de cada um dos ‘fotopictóricos’ não é de uma exposição; eles não têm tempo marcado para ir embora, nem estão em busca de uns centímetros mais adequados para visitante ver. Seus lugares nasceram de um sentimento intuitivo de organização dos significados, fazem parte do meu entendimento do mundo. Não me importa que as pessoas se dediquem a contemplá-los longamente e até mesmo que fiquem injuriadas, mas de contragosto civilizado. Não me importo também que cheguem mansamente e me ajudem a montar os sentidos dos meus lugares, do meu lugar, desde que eu não perceba o desmontar de mim mesmo. Tudo o que está inscrito aqui nestas 'paredes minhas' tem um quê de 'seminudez minha', quase um conjunto de fragmentos para que eu me situe, mesmo de forma incompleta, nos momentos de acolhimento de mim mesmo, e até de desencontro.

quarta-feira, 26 de novembro de 2008

Imaginado esquecido

Ausência de lembranças
A melhor parte
Corpos em espasmo incontido
De bocas ávidas em procura infinita
Mentes escondidas
Sem arrependimentos
Sem procedimentos
Sem análises infindáveis
Inconclusas
Só os corpos contentes
O esquecido lembrado
Imaginado

segunda-feira, 24 de novembro de 2008

Mãos

Sem paciência para os textos longos, delas e dos outros, as mãos carregavam o tempo longo sem horas marcadas, mas de momentos extensos. Elas até gostariam de registrar o ‘irregistrável’, o intenso comovido, gritado, chorado, sorrido; mas frágeis, só têm a memória do momento e sequer deles sabe ao certo, dos relógios. Mãos sem oras, nem vejas, nem luvas e tantas luvas. Tantas viagens por dia custam a elas um tempo que elas não têm, não detêm, e se convêm a elas, vem aquele tempo cortado, repleto de sensações e senões. Mãos atávicas, de raridades ordinárias, amáveis, resolutas, imprecisas. De encontros tontos; guardam o peso dos ombros, a leveza do sorriso, o contentamento do carinho. Guardam até outras mãos, grudadas mãos de pele árida ou tropical, de desejos soltos ou contidos. Livres e presas no mundo dos fazeres e dos haveres, mãos irmãs da gente, pulam, recuam. Nuas mãos de dedos com verrugas, apontamentos sobre a lua, do branco do papel de textos tantos, acalanto, pranto e espanto.

segunda-feira, 17 de novembro de 2008

Visgo

Que coisa mais estranha uma palavra sem definição, a palavra certa incerta. Quando nos deparamos com a frase: essa palavra não tem definição; e inscrito o aspecto morfológico; substantivo masculino singular. Como não tem definição? Que autoridade seria capaz de punir o seu uso, se ela cabe tão bem, com perfeição? Vem de novo a frase repicando na mente: mas esta palavra não tem definição...Parece um visgo da língua. O que significa Visgo? Visgo ora...claramente grudado, inevitável, indelével, visguento...quase um substantivo adjetivo. Que seja a planta Visgo, sem problemas. Mas é mais que Visgo planta...é visgo que acompanha, entranha, é o que a palavra induz, o que seduz a emoção razão. O que prefere? Dizer a esperança é um visgo? A esperança é um inevitável? Esperança visgo tem alma, esperança inevitável tem o quê? É só inevitável. Visgo é um inevitável sem senões. Visgo gruda na esperança de tal maneira que formam um duplo inseparável. Os dicionários talvez se contentem com o Visgo planta. Eu reivindico a esperança Visgo.

sábado, 15 de novembro de 2008

Virada

A barata estava lá, não kafkaniana inerte, mas mesmo assim sofria da impossibilidade, da anatomia atávica, inevitável. O movimento sincrônico das patas no ar feito uma ginástica, uma tentativa repetitiva, infidável. Não se sabe o que fez ela se virar. Elas sofrem desse acidente rotineiro; ficam lá reféns de qualquer predador, até dos chinelos. Nada mais angustiante e patético do que uma barata virada sobre seu casco duro; tantas pernas incapazes de provocar o giro do corpo, até chegar um felino e bum! Até ser comida por uma lagartixa e vir a escuridão. Era uma vez e o sangue branco escorre, e o olhar com cara de nojo, como se o sangue não pudesse ser branco e nem ela um ser que viveu...Já não era sem tempo sua nojenta! O Gregor do Kafka virou uma barata? Tudo indica que sim. Tudo ficava grudado nele; carregava o peso dos conformes. Talvez o Kafka tenha se inspirado em uma barata virada. E o nojo? Ah... O nojo talvez seja apenas um disfarce humano para o medo da quitina bem conformada, mas quebradiça, do ângulo limitado dos membros, fingidores do movimento.

segunda-feira, 10 de novembro de 2008

Engano

Temos três olhos
Como?
Só vejo dois...
Temos três ouvidos
Como?
Só vejo dois...
O que ouves tem mistérios...
De verdade,
Não ouves muito bem...
Como?
O que vês é ilusão,
Não te enganes...
A visão embaça,
Disfarça
Como?
Digo, redigo,
Não te iludas...
Os pares te enganam...
Como?
São dois fatal
Um deixa pro outro
E o terceiro?
É olheiro,
É escuteiro,
Nem sabes dele.
Mas e os pares?
Pobres pares...
Não pares neles...

quinta-feira, 6 de novembro de 2008

Eu mim

Comprometedor interior,
O de dentro da gente;
Intruso obrigatório,
Contraditório,
Revelador velado;
Nada mais incondicional,
Protetor,
Controlador,
Incomodador;
Quiseras ser sem ‘eu’?
Quisera ser...
Sem mim?
Adivinho sem fim,
Desencontro encontrado,
Interiorano macabro,
Descalabro dentro da gente...
Quem dera fosse um candelabro.

Gosto

Gosta...
Sei que gosta.
Quer dizer;
Parece que gosta.
Gosta nada...
Nem finge,
Mas gosta.
Oh se gosta!
Gosto...
Sei lá...
Pode ser gosto.
Gostoso?
Sei lá...
Amoroso?
Nem sei...
Almoço?
Sei lá...
Gosta?
Gosta do gosto...
Tosco?
Não...
Sem fosco.
Salivoso almoço,
Amoroso gosto,
Mesmo sem enrosco.

quarta-feira, 5 de novembro de 2008

O que contar?

Nada mais angustiante do que querer contar e não ter o que contar. Quando o olhar não mira nada de novo e pior, não vê em nada uma repetição produtiva, contável. Estranho não encontrar as estórias e elas não nos encontrarem, nem na vida, nem na escrita. Esse clima de ‘modor’, essa inércia imaginativa, esse olhar cego, improdutivo. Às vezes vem a sensação de que as estórias acabaram, que não há mais o que contar porque o conto é a gente mesmo, e a gente mesmo está incontável, nada nos toca, nos mobiliza, nos atinge. E tanta estória fica lá sem ser vista, numa latência, e a vivência do contar improvável. Então a gente se vê num cenário impreciso, em negociações precisas, em um pesar de estória que não dá pra se contar. O conto imprevisto, surpreendente se perde; a gente se encontra sem conto, tonto, louco pra contar sem ter o que contar. Perspectivas adormecem sem sonho. Contos nem em sono; tudo esquecido de olhos abertos ou fechados, emaranhados diurnos e noturnos confusos sem conexão, sem reflexão; um pano preto impermeável...Olhares irrefletidos.

quarta-feira, 29 de outubro de 2008

Oxalá abençoe

Opa...cheguei desavisada. E o velho sentado ali, num balanceio meio tonto, meio dançante, nem sei...Hum... grunhia ele, e os olhos vidrados, em seguida fechados e o corpo num movimento de náusea. Babalaô, Hum, Hum...repetia o preto velho. E eu ali esperando o vômito, afinal de contas a panela já estava lá à espera. O retorno estomacal não veio, mas cusparadas seguidas, milimetricamente forjadas, compassadas, de periodicidade certa. Oxalá abençoe e lá vai mais cuspe. Não entendia porque salivava tanto. Hum de novo...Agora vai vomitar, tem jeito não, pensei outra vez. Que nada...Mudou de voz; de arranhenta passou a fininha, feito de criança. Lia saiu correndo pra buscar os doces. Disse pra mim que eram Cosme e Damião, duas crianças inocentes.

'Peruqueiro'

O dinheiro já tinha acabado mesmo. Não tinha nem pro lanche. Nunca tinha sequer paquerado um careca, ainda mais de peruca. Margarida me incentivou; o senhor parecia ter boa situação. Eu poderia enrolá-lo, dar uns beijinhos e passaríamos aqueles últimos dias na praia sem apertos. Como se não bastasse o carro bem interessante, o peruqueiro tinha também um barco bacana, e dentro, um armário com a coleção de perucas. Era obcecado por elas. Mostrava-as como se fossem graciosas meninas de cabelos delicados. Alisava-as com carinho. E eu ali, de mira na cena dos olhos do peruqueiro nos cabelos postiços. Que linda essa, eu dizia, fingidamente. Na verdade, eu tinha horror de perucas, achava o limite que se formava entre a pele e elas indecente, mas o peruqueiro as tinha na cabeça e no coração, quê fazer...Confesso que tive que beijá-lo. A causa era nobre e ele era realmente uma figura distinta se não parecesse realmente patético com a peruca ruiva que usava naquele momento. Não fechei os olhos por garantia. Já pensou eu me envolver no beijo e esquecer que se tratava de um homem de peruca? Fiquei ali de olhos estatelados no beijo, até se fecharem, bem no terço final. Nem sei mais se foi o terço final mesmo; dizem que coisa boa dura o tempo do instante. Foi fato. Hoje, eu mesmo escolho as perucas do Ademar e nem acho o entrelugar da pele e da peruca tão obsceno como antes.

terça-feira, 28 de outubro de 2008

Quando ele vem

Como é bom sentir o vento de olhos fechados,
Como vem ele aterrador e delicado quando temos os olhos fechados,
Que presença passante que paira e fica e vai sem deixar dores e amores,
Que visita bem vinda, inesperada tão esperada,
Que gesto delicado em cada pedaço de pele ou no roçar de roupa forte e delicado,
Que frescor e que sentimento de mormaço aço forte feito brasa quando vem o vento;
Quando vem o vento tudo é sentido,
Tudo vai num ido, ido, ido...;
Tudo leva o vento,
O sentimento da pele,
O pulsar da vida;
Vento desgarrado,
Passante vento,
Sem amores,
De todos os amores;
Leva humores,
Calores,
Rumores;
Vento anestésico,
Vento vela,
Vento leva,
Vento adormece...

Volteio do tempo

Presinto que não há mais tempo. Presinto que há todo tempo. Sinto o tempo, todo momento; lamento o tempo, vanglorio o tempo. Vejo que o tempo é apenas a impossibilidade ou a possibilidade entranhada, enraizada no solo gente. O tempo não mente, mas é fingidor de tal maneira que engana a gente, porque lá dentro tem um tempo que não passa, o tempo aventureiro que nem sempre combina com o passar do tempo, do corpo de energias consumidas, retraídas; e das excessivas é refém, vai pro além, não contém. O tempo não volta, só dá mil voltas; revolve tempos idos, desfaz o presente todo momento; ignora o futuro, mas abre alas pra todo porvir. O tempo é vento brisa, é ventania, é prenúncio dentro da gente, é mente, não mente. O tempo é como fuligem e a gente é o próprio tempo, sem tempo ou com tempo. De todo jeito está lá o tempo a nos espreitar, sinuoso, afetuoso, amante, enganador. De todo jeito está ele a nos perguntar, porque fomos, porque não fomos, aonde vamos. O tempo nem sempre pergunta, intransigente. Nós, nem sempre respondemos, desatentos.

segunda-feira, 20 de outubro de 2008

Passo

Passo
Ninguém me vê
Passo, passei
Passo
Alguém acena
A cena me retém
Me contém
Passo e tudo bem
Passo e nada bem
Alguém me vê
E não me vê
Me desvê
Me revê
Passo de novo
Repito o passo
Vario o passo
Tonteio o passo
Quase caio
Atordôo o passo
Levanto o passo
Danço o passo
Confundo o passo
Descubro o passo
Esqueço o passo
Lembro o passo?
Quem me vê?
Quem me lê?
Na cadência do sentir
Na cadência do não sentir
Faço traço
Rastro passo
Passo assim mesmo
Passarei sempre
Com todos os passos

Pra frente, pra trás

Toda vez é assim. Liliana teima em ir devagar. Toda vez eu falo: vamos perder o ônibus. Coisa estranha, parece que ela anda pra trás. Ela diz pra mim que está indo é pra frente. Não entendo. Liliana caiu de amores pelo Júlio lá da escola. O menino tem mania de ficar plantado no portão de saída se exibindo. Outro dia falei com Lili: é por isso que anda pra trás né sua pra frente! Ela me olhou com jeito de não entendi, deu um sorriso brando e bocejou, com aquele ar de não dou conta de tomar pressa. Eu também nem sei porque tenho tanta pressa. Toda vez que chego em casa o almoço ainda está esquentando no fogão e não consigo fazer nada até encher a barriga. Outro dia desses corri tanto que revirei o estômago com a ajuda do velocista do coletivo, que dizem que é motorista. Liliana nem entrou nesse, ficou esperando o próximo pra cruzar com Júlio no ponto. Lili sempre diz que o tempo dá pra tudo, pro Júlio então ela dá todo o tempo. Eu continuo apressada, nem sei pra quê. Lili falou comigo que se eu continuar desse jeito ela vai é trombar com o Júlio todo dia no ponto e eu nem vou ver aquela belezura.

Vai vai

Vai vai vaidade,
Leviana, imponente vaidade;
Etrusca,
Busca?
Ofusca;
Clarão cego,
Será que vai com a idade?
Ou é por idade?
Ou ligada,
Irremediável,
Em todos os tempos?
Inesgotável,
Vã vaidade,
Doce e amarga;
Amarra,
De liames frouxos;
Arroubos,
Roubos tantos,
Fuga;
Procura insana,
Não irmana,
Profana;
Qual é mesmo a direção?
Vai vai...

terça-feira, 14 de outubro de 2008

De través

A gente é de través, tanto que cansa dentro da gente. Eu mesmo nem sei se indo ou se parando fico e penso e desvou desse ir que nem tinha ido. Esse negócio de ter certeza, ter mente firme, atinada...tem gente que teima com isso. De vez em quando me olham de través, na dúvida, parece que sabem; ali tudo dentro é incerto. A gente segue, tem volta no tempo não, segue de través mesmo. Tem um amigo meu, Justino, que se duvida comigo, de tanto falar e pensar e duvidar. Talvez fosse melhor nem pensar. Mas pensamento é grudado na gente, mesmo curto. Tem jeito de esvaziar não...só do outro lado! Quem sabe...?! Isso é que cansa dentro da gente; esse cheio indeciso, esse caminho que sobe e desce. Pior é quando de tão cheio parece tudo vazio. Eh través dentro da gente que não se cansa...

segunda-feira, 13 de outubro de 2008

Canto triste

Mais que desilusão,
Canto triste sem razão;
Desilusão é desanuviamento,
Esquecimento;
Desencanto não,
É um perder sem explicação,
É canto triste sem razão,
Falta o suspiro,
Vem o respiro,
Com dor no coração;
Ah! Tudo fosse desilusão;
Ah! Nunca fosse desencanto;
Canto triste sem razão...

quinta-feira, 9 de outubro de 2008

Fatal

Fatal
Tinha que acontecer?
Não tinha
Tinha
Por quê?
Sei lá
Fatal
Oh...Meu Deus...
Por quê?
Não sei
Tem que saber
Fatal e pronto
Não pode
Fatal é assim
Como assim?
Ido sem volta
Mas se nem tinha ido
Foi...tô dizendo
Por que foi?
Porque não foi ora...
Fatal e ponto

Ao vento...

Vento que combate
Abrace-me até o fim do caminho
Rodeie-me feito cortesão
Em volta, protetor
Dance comigo
Por ruas inesperadas
Inelutável, leve
Pegue-me por qualquer parte
Assalte-me pelo braço
Tufão
Afague-me silente
Brisa
Fale aos meus ouvidos
Alto
Baixo
Sinfonia persistente
Sopro
Arrepio
Deixe-me ouvir
Feche-me os olhos
Esqueça-me a visão
Faça-me sentir
Vento, vento, vento...

sexta-feira, 3 de outubro de 2008

'Urgência sem pressa'

Quanto em mim é urgente? E em ti? Saberia me dizer? E essa palavra tão apressada, é mesmo insustentável, grita em toda potência do som? Não seria ela, apenas um sopro delicado, uma melodia de flauta, doce e persistente? Não saberia dizer exato o status de nenhuma palavra, posto serem meras suposições, e se as pensamos repetidamente, vemo-las duvidosas, dependentes umas das outras, fluidas, rios, quase inconstantes. E nós mesmos não somos essas palavras que insistem em nós? Nesse momento, é a urgência da expressão...Deveríamos ter tanta pressa, sob pena de fazer de nossas urgências desatinos? Poderíamos então recair também na fluidez do desatino...Mas volto, sob pena de me perder indefinidamente. Será que a urgência sem pressa é só prerrogativa divina, tal qual anunciou Riobaldo em Grande Sertão Veredas? “Deus é urgente sem pressa.” Talvez...Agora me vem a urgência do quase certo, desse absoluto que se insinua na gente, feito planta trepadeira ou erva daninha. Segue-se ou antecede-se na urgência desatino, inimiga do saber do tempo. Tudo pelo medo das convicções; será que as temos? Se as tivéssemos certamente não seríamos urgentes apressados, teríamos a urgência convicta, amiga do tempo e de suas confirmações, até vir o grande acontecer, aquilo que esperamos verdadeiro, sem pressa.

quinta-feira, 2 de outubro de 2008

?.?.

Por que a angústia da palavra comum?
E a ilusão da palavra rara?;
Por que não o comum raro?;
E onde está o ponto desatinado?
Desfigurado em reticências?;
E as vírgulas?
Não seria melhor fossem pontos e vírgulas?
De caminho escrito no entrelugar?;
E as exclamações não seriam fabulosas?
Se pudessem reverberar feito gargalhadas?
Ou virassem de cabeça pra baixo?
Como is multiplicados de surpresa?;
E as interrogações?
Não poderiam assumir de vez suas afirmações?

Escrita minha?

Não insisto na escrita
Ela vem numa imagem
Num acontecer
Num não acontecer
Não há transpiração alguma
Talvez efeito de minha fisiologia
Um tanto anti-expirante
A inspiração me cutuca
Não a inspiração mágica
Cheia de imaginação
Mas a comezinha mesmo
Da mesmice da vida
Das pessoas e suas rotinas
Do real tão irreal
Meio atlântida perdida
Alma desencontrada
Tento encontrar o de dentro
Que dizem escondido
Mas é escancaro
Na face, no gesto, no não gesto
Não faço milagres com a escrita
E nem a escrita me milagra
Fico eu mesma escrita
Nos olhos de quem me lê
Fico esquecida também
De quem lê e não me lê

Saberá?

Olhos negros,
Pele de escuro brando,
Ligeiramente hepático,
O contraste exato;
Dois perfeitos arcos sobreolhos,
De mobilidade surpreendente,
Dançarinos do humor;
Simetria de face rara,
Ventas de vôo incansável;
Ossos marcados,
Quase matemáticos;
Músculos ágeis,
Imponentes,
De hipertrofia certa;
Insinuação de brotos escapulares,
Qual asas diminutas;
E pés insistentes,
Fincados,
Cadenciados,
Trotados;
Homem?
Pegasus?
Homem Pegasus?
Nem ele sabe...

segunda-feira, 29 de setembro de 2008

Festa

Talvez de toda narrativa, a mais difícil seja a Crônica de Festa. É uma história fadada ao descompromisso, tem um vazio repleto, refém do sentir. O lugar costuma ser um só. As pessoas, porém, surpreendem. Chegam, às vezes, comedidas, como se estivessem atrás do palco; meditam o papel, que antes de ser um papel ensaiado, é vivido e repetido. Crônica de Festa boa é aquela de gente que já se conhece, sem espaço para espantos. É o lugar do esperado inesperado; do canto, da dança, da bebericagem, da degustação, dos namoros, das declarações de amizade eterna, da nostalgia; o momento é de desarme-se, aqui o relógio dispara. Por isso, perder uma Festa boa é perder uma história peculiar, uma lembrança, o tilintar de um lugar que transpira magia.

Indolor

Na brandura incolor,
Indolor...ficar...ficar...
No menos mais ou menos,
Sem surpresas,
Sem lamentos,
‘Indoor’,
De cor,
Estaticamente,
Décor.

sexta-feira, 26 de setembro de 2008

Desfazer

Sempre cruzava com aquelas flores que se desfaziam,
Foram anos assim,
Ou o vento soprava e as pétalas bailavam no ar,
Ou o sopro quente da boca as desmanchava;
Nasciam feito pragas,
Em qualquer buraco de chão,
Espalhavam a semente compulsivamente;
De repente não apareceram mais;
Estranhamente;
Foram em busca de pedaços de chão mais distantes,
O desfazer delas se desfez no meu caminho...

Cabeçudo

Escureceu de novo, e em casa de pau-a-pique é mais negra ainda a noite. E aqui nestas bandas dorme-se cedo, com o despedir do sol, e nem sempre tem lua. Que jeito! Deito-me na rede larga no lado da de Maria, minha irmã, companheira de tantas noites. Acho que o cabeçudo gigante vem é por causa das redes; gosta de brincar com elas. Noite passada ele me balançou tão alto; pensei que ia voar e me estabacar no chão. Maria choramingou baixinho: por que ele voltou de novo pra nos incomodar? De manhã a gente contava o que se passara. Esperávamos que alguém viesse velar nosso sono. Diziam que era sonho. Mas como podia haver sonho assim com testemunha? Acabou de escurecer de novo. Que jeito...

quinta-feira, 25 de setembro de 2008

Poema incontido

Quando vem o vazio,
No molhar do corpo,
E a água escorre rápida,
Intrépida lava leva,
Forças, gestos,cheiros,
O movente valente;
Humores congelam,
Adormecem...
... ... ... ... ...
Infalsas pernas,
Ar dolorido,
Quando vem o vazio...
... ... ... ... ...
Até encher de novo.

No 'pequeno' teatro

Para minha surpresa o teatro era pequenino, cadeiras em meio círculo abraçando o palco. Cenário simples de janelas dependuradas, um piano solitário e um lugar pro Santo. As faces tão próximas, os risos e olhares ali ao alcance dos olhos; os tombos, afagos e deleites sentidos à meia luz. Figurino cadeirudo enlaçado de babados, exagero de revelações veladas. O Avarento estava lá bem na Rua da Bahia, no Teatro da Praça. Texto comedioso, de palavras de outros séculos com palavras dos mais próximos, barroco e moderno, bem adaptado do Molière. Fui ver Marcela encenar, e vi outros também. Música, dança, falas; como deveria ser a vida, sempre de trilha sonora alternada com silêncio e movimentos expressivos do corpo; sem a monótona repetição, ou mesmo os intervalos tediosos sem festa. Muito bom rever Marcela e conhecer O Avarento daquela forma, e quem sabe encenar uma peça todo dia.

Presságio

“Tens realmente faces encantadoras”, destilou em sua carta de amor. Era um amor à espreita, quase espectador. Ela lhe parecia um filme de carne e osso e “olhares sedutores”, que sequer o miravam. Melinda o achava feio, sem graça, e nem todas as palavras a tocariam. Nunca havia sentido o sabor do beijo de qualquer rapaz, somente as mãos entrelaçadas, o tato lábio; mas o moço das cartas parecia-lhe improvável, quase ingênuo. Casou-se tempos depois; casamento sem beijos, sem abraços e dezena de filhos e dezenas de anos. As cartas e poesias de amor sem igual ficaram na mente de Melinda. Até hoje ela recita os versos e se lamenta dos beijos que viriam, dos toques daquele moço, do presságio das palavras.

quarta-feira, 24 de setembro de 2008

Partido

Tô achando que o riso é um sorriso partido,
De tal forma cindido,
Que vagueia reticente ou loucamente,
Por tantas bocas em vão;
Tô pensando que o riso sofre de solidão,
Abandono em tantas bocas,
Com saudades do sorriso, da larguidão;
Tô acreditando que o riso é um visco,
Sem fruição,
Sorriso vago sem exatidão.

Volto

Já vai?
Já vou...
Já vai mesmo?
Vou... quer dizer...posso ficar mais um pouquinho...
...
Agora vou mesmo.
Já vai?
Agora vou...preocupa não...amanhã eu volto...
Amanhã cê volta mesmo?
Volto...
Cê volta né?
Volto, mas agora já vou.
Fica com Deus.
Vai com Deus...o que seria de mim sem você....
Até amanhã...
Até...
Pega a chave...
Tem que levar mesmo a chave?
Cê não volta amanhã?
Volto...
Então leva a chave...
Me dê a chave aí...
Pega aí...
Peguei a chave...até amanhã.
Até...
E retomba a porta...
E cric, cric na fechadura...
Amanhã eu volto?
Volto, volto sim...

O calango

Nunca pensei que mamãe fosse se interessar por um calango. Sempre teve aversão por seres rasteiros; as minhocas então!Dizia que, nos tempos de infância, botara muitas lombrigas por culpa de elixires desumanos; ficara traumatizada. Mas tomou amores pelo bicho estranho, nem um pouco comunicativo. O motivo do seu afeto parece ter nascido no quintal lá de casa; nunca se soube ao certo. Mamãe se encantava com ele, com sua pele rajada e suas mãos pequeninas e ágeis. Seus olhos meio ofídicos nunca sugeriram a traição, o bote. Tornou-se resoluta em alimentá-lo e até acariciá-lo. Com o passar dos dias, a sedução parecia mais impossível. O calango tentava quase diariamente a travessia para fora de casa; até que um dia conseguiu ganhar a frente da casa. Passou dias ‘enfeitando’ o jardim, ganhava pão, carne fresca e elogios. De vez em quanto subia na árvore do passeio em busca do manjar de formigas, e voltava. Depois ganhou a rua de vez. Tem dia que aparece calango grande lá em casa. Mamãe jura que é ele; diz que ele está muito bonito, bem nutrido, encantador.

terça-feira, 23 de setembro de 2008

Blusinha branca

Blusinha branca já deu música e história também. Eu tenho mais de uma. Quase todo mundo tem alguma. A minha, porém, já se tingiu de vinho, água salgada, água doce, percorreu lugares quadrados, redondos e sem forma. Blusinha branca é peça fundamental; tem algo de fantasmagórico, muda e nunca muda de cor. É quase indelével até o primeiro furo. Guarda segredos sem deixar marcas. Guarda mãos apressadas, delicadas, suores e olhares. Pode lavar com sabonete, mergulhar no cloro ou no sabão em pó. Às vezes ganha um tom azulado, fica hipotérmica a coitada, mas só até a próxima levada e lavada. Depois volta branca, cheia de manhas e avessos; suspira no guarda-roupa, implora o afago; aventureira blusinha branca sambista, alpinista. Sem blusinha branca eu não vou.

Riso

Da gente mesmo?
Do outro?
Do ‘nosco’,
Vício tosco,
Desenrosco;
Consente,
Desarma,
Separa,
Falha,
Ponto desaponto?
Veredicto sem suspeitas?
Febre maleita,
Escudo das tormentas,
Medo;
Riso alegria?
Sem cria pensamento,
Vai dentro;
Fomento,
Sem lamento;
Instantâneo,
Sem sucedâneo;
Espontâneo.

sexta-feira, 19 de setembro de 2008

Passou

Entre eu e o belo passante,
Do outro lado da rua,
Havia um tronco de árvore;
Lutei contra o arranjo de floemas e xilemas,
Apertei o passo,
O moço também;
Soltei o passo,
O moço também;
E o tronco sempre no caminhar nosso,
Irritantemente no meio,
Num passar quase combinado,
Pra gente não se ver;
O moço se foi,
Eu fui também...
Nem pude ter certeza do belo que passou...

quarta-feira, 17 de setembro de 2008

Quase nada

A alegria é o quase nada,
O quase nada é o olho fixo,
Sem cruxifixos,
Sem inimigos.
Olho despudorado,
Indiscreto,
Infinito no finito.
Ah! O quase nada tudo!
Jamais todas as cenas.
Olho fixo no horizonte?
Olho de angústias,
Indecisões,
Solidões...
O quase nada fixo?
Instantâneo repleto,
Incontinências,
Encantamentos,
Desaparecimentos...
Simples é a alegria;
É quase nada...

terça-feira, 16 de setembro de 2008

No ponto

Tudo vai
Tudo volta
É no circular
No eixo
Que a gente se ‘em volta’
E no átimo
Desatino
Se confunde
No horário anti-horário
Na fuga do ponto
Grudados no ponto
E ponto

segunda-feira, 15 de setembro de 2008

Brumosas

Expectativas sempre brumosas,
Por que não dá-las o aroma da surpresa?
Esquecê-las,
Combatê-las delicadamente,
Buscá-las sem arroubos,
Sem roubos,
Deixar os corações sossegados,
Afagados sem enganos e decepções?
Expectativas espadas,
Empunhadas,
Riscos iminentes,
Fadadas descontentes,
Copos sem beiradas,
Corpos reluzentes sem mente,
Inocentes,
Expectativas esperanças,
Ânsias,
Reentrâncias na gente,
Por que ficar descontentes?
E não atentos?
Ao vento presságio,
Ao gesto delicado,
Ao inesperado?
Expectativas futuro?
Só passado cozinhado,
De miasmas,
Vapores irreconhecíveis,
E sabores duvidosos...
Expectativas espectrais,
Multicores,
Desvios,
Arrepios fugidios...

terça-feira, 9 de setembro de 2008

Tempo Continente

Poucos são os momentos na vida em que temos a impressão que o tempo não é mais, não é menos; é apenas o tempo no seu curso espontâneo. Não corre e sai atropelando a gente; não passa monótono, irritante, dando a impressão de eternidade vã. Foi assim esse final de semana em Itaipava; tranqüilo e movimentado, com jeito de entrelugar. Conheci o anfitrião Rodrigo em Ilha Grande, exatamente em um passeio de barco, onde o tempo ao contrário do que se imagina, não passava modorrento, mas festivo, com um quê de realidade fantástica. Apesar de estarmos cercados de água, a sensação não era de ‘ilhação’, ‘solidão’; as pessoas se amontoavam, o sentimento era continente. E Itaipava pareceu-me mais continente ainda, desde o trajeto de ônibus.

Lá fomos nós, eu e prima Ana Márcia. Eu de olhos abertos, mirando estrelas vivas lá fora, estrelas do céu e estrelas baixas, luzes artificiais cintilando na bruma. Ana Márcia pelejando com o sono que não vinha...até que surge uma conversa curiosa no banco da frente. Não soube o nome da senhora, mas boa parte de sua vida ela contara ali no caminho, pra quem quisesse ouvir. Fizera tantos negócios, comprara pedaços de terra, trocara, fora enganada...mas o que mais achei interessante foi o formato verbal da traição fofocada... ela dizia: “ele ventilou no ouvido de fulano, perdi o lote...” Rimos tanto que relaxamos; Márcia desistiu de dormir e o sono veio; eu desisti de perseguir as estrelas.

Chegamos na Rodoviária de Petrópolis no sábado com o nascer do sol, retornamos à Itaipava e demos um tempinho pra ligar sentadinhas no murinho do terminal. Eu, mineira, um tanto desconfiada; Márcia mais despachada só no incentivo. Afinal de contas, conhecera Rodrigo muito pouco, quase rapidamente. Liguei e o menino da Ilha já estava acordado; veio prontamente com os mesmos cabelos de caracol, só que de voltas mais generosas, o sorriso...Foi familiar o encontro...não teve a estranheza do reconhecimento. Seguimos, nos alojamos em sua casa, mistura de coisas antigas e novas, sem ânsia desenfreada por consumir sem pensamento...tudo, cada objeto parecia ter um motivo.

O roteiro do dia foi montado ali mesmo, na base do improviso; a sugestão vinha certeira, ao gosto. Fizemos uma bela trilha no Parque Nacional da Serra dos Órgãos para conhecer a cachoeira do véu da noiva. Rodrigo mais esperto, suando cachoeiras; Ana Márcia habilidosa, mesmo de chinelos; e eu sempre mais lenta, precisando de uma mãozinha. Entramos na água fria exclusiva, comemos pãozinho de batata delicioso e bananinha adocicada.

Depois da trilha feita, a decepção do caldo de cana da dona Maria, que não rolou, até que seguimos para Corrêas, onde bebemos um chope, que desceu como água, e comemos uns pastéizinhos de angu com massa bem mais leve que a mineira. Seguimos para o Bordô, lugar mais fino, com corredorzinho para carros de pessoas elegantes. Lá, tomamos mais uma cerveja, agora de Itaipava mesmo, e experimentamos o primeiro croquete. À noite fizemos refeição em casa; macarrão à minha moda, picanha à moda do Rodrigo, sangrando; depois bem passada ao nosso modo. Findamos o dia no Nucrepe, barzinho de música boa, freqüentado nos velhos e novos tempos pelo Rodrigo.

Domingo foi dia de dar uma olhada em Petrópolis, conhecer a falante e simpática Monique, e visitar o Parque São Vicente, lugar para decolagens de asa deltas e parapentes. Almoçamos pão com lingüiça combinado com croquete no Alemão, e seguimos para os preparativos do show da banda do Rodrigo, a Serra Soul, no bar Nas Nuvens, lá mesmo no parque. As nuvens não deram chance ao pôr do sol, mas os pingos de chuva não foram suficientes para estragar a festa. Encerramos com pizza de massa finíssima e sabor delicado. Retornamos com nevoeiro, como quem está mesmo descendo das nuvens. Quando pensei que o passeio já era todo continente, Rodrigo gritou na hora do café de segunda: “Vai querer vitamina Keila?” Eu tinha dito pra ele da vitamina da minha mãe...– “Quero”, respondi...A vitamina tinha o gosto da minha casa, e é essa lembrança do cuidado do menino de Itaipava que tornou o tempo continente.

quarta-feira, 3 de setembro de 2008

Pretinha

Era imponente a pretinha. Olhos frontais, novilha bem conformada, escore médio. Só os chifres pareciam destoar, sobretudo para a ordenha do leite. As recém formadas ‘veterinárias’ fizeram longa viagem, porque Pretinha morava nas terras do meio do país. A propriedade era um pedaço de uma maior dividida entre vários irmãos. As moças tencionavam usar seus dotes acadêmicos; fizeram mochação de bezerro; deixaram os responsáveis do curral indignados. ‘Vê lá se isso é serviço pra mulher.’ Depois de toda labuta, resolveram fechar com chave do ouro o dia. Vamos fazer a descorna? Sugeriu uma delas. A famigerada cirurgia serve para dar um aspecto bonito, para facilitar o manejo...nada muito além disso. Mas quando se complica a tal descorna, é sinusite da brava, pontos infecionados. Só que esse não foi o caso; o caso foi bem pior. O campo cirúrgico ficou restrito; os olhos fixaram-se tão longamente nos chifres, que pretinha sofreu, sofreu...Esqueceram-se da pretinha...Deu o último suspiro, morreu...Morreu? Repetia uma delas sem acreditar...Como pode ser? A bichinha ficou horas em decúbito lateral com seus órgãos digestivos enchendo-se de gases, seu pulmão comprimido...e em nenhum momento atentaram para a vida em suas mãos, que sequer precisava da tal cirurgia estética...cheia de vasos a esguinchar, pele escassa para cobrir o que já era coberto pela natureza. Passaram a noite separando os músculos da pretinha para refrigerar e ‘aproveitar’; atordoadas, repensando os motivos da morte. Correram em busca da explicação pelos corredores da escola de veterinária, e ninguém soube dizer com precisão o que teria ocorrido. Várias possibilidades foram aventadas, mas e a alma da pretinha, e seus olhos frontais brilhantes? E seu corpo todo, seus parâmetros vitais desprezados e a peia a impedindo de fugir? Pretinha nem sabia que era bonito ficar sem chifres e que eles eram tão ameaçadores. Nenhuma das duas moças seguiu carreira, não se sabe se por causa da Pretinha.

Todas as palavras

Entre o aqui e o ali,
Cabe pouco,
Cabe muito...
Aí vem o homem e inventa um nome grande
Pro que não se entende, e se finge entender...
E se disfarça saber...
E nem tem ilusão nisto...
É só escuridão...
De vez em quando vem o clarão,
Mas depois o nome não encaixa,
Porque cabem mais,
Talvez todas as palavras.

segunda-feira, 1 de setembro de 2008

Cantiga pro Azulão

Azulão cantava livre, até que Azulão preso ficou
Canta Canta Azulão....Azulão continuou...
Um dia Azulão entristeceu e o canto sumiu...
Ô tristeza Azulão... não canta mais, ô tristeza...
Resolveram soltar Azulão...foi pro mato Azulão,
Esverdeou e avoou, avoou, avoou....
Ê Azulão, ê ê ê, que alegria Azulão....ê ê ê...
Virou folhagem de ventania, tomou banho de chuva...
Esqueceu da prisão o Azulão....
Esverdeou e avoou, avoou, avoou...
Ê Azulão, ê ê ê, que alegria Azulão....ê ê ê...
Canta livre de novo Azulão...eô, eô, êo...

sábado, 30 de agosto de 2008

Plano inclinado

Estava lá solto no sonho. Concreto sem pintura; inclinação discreta. Recostamo-nos ali sem termos marcado. Era possível alcançarmos o céu sem tirar os pés do chão, livres da posição ereta, impositiva do pensar lógico. Estávamos ali, os dois para o encontro, para olhar o alto teto azul sem descuidar do lado; o falar ao sabor do sentimento. Mãos e pernas livres, o entorno vazio, pareceu-me que sim. Talvez fosse início da manhã, ou fim de tarde; as luzes não ofuscavam, eram delicadamente brandas, acariciavam. Havia tempo de silêncio e a súbita palavra só para o momento. A despedida não teve hora, aconteceu suave, sem afagos exagerados, sem medos e perdas. Vida real boa é assim; sonho solto no plano inclinado, descanso de faróis brandos acesos, amizade sincera, amor amigo.

Seus olhos

Gosto do seus olhos,
Gosto porque são felinos,
Certos incertos,
Perguntam sem repostas,
Respondem sem perguntas,
São águas escuras de mata fechada,
Recebem chuva,
Inundação,
Recebem sol,
Cintilam ouro,
Angustiam,
Acalmam,
Obrigam,
Desobrigam,
Remanseiam,
Ondeiam,
Tiram o respiro...
São ar...

'Prosema' Verde

Aviso sem seta,
Rio sem freio,
Cachoeira entremeio;
Montanha caída no vale,
Folha dançante na brisa,
Queda outonal,
Ventania turbilhão;
Broto de primavera,
Lodo caminhante,
Plantas eras alpinistas,
Decidas;
Pedregulhos dissolvidos;
Mergulhos rasos,
Profundezas,
Águas vivas;
Mãos e terra inquietos,
Tremuras;
Pensamento de lembrança incompleta,
Desejo mente e coração,
Sentimento invenção;
Olhos densos, de faíscas perguntas e respostas inexatas,
Água misturada com terra carne;
Corpo pensamento,
‘Sonhação’;
Flor que espera verde o beija-flor;
Doce figo no estalar dos dentes;
Aonde vai dar?
Na vida prenúncio verde cor?

quinta-feira, 28 de agosto de 2008

Poti

Poti era pela metade,
Um olho na porta da cozinha,
O outro para o corredor dos quartos;
Poti nasceu incerta,
De mistura de pêlos assimétrica,
Um lado mais claro,
Outro mais escuro;
Poti pedia colo,
Poti subia em árvore,
Poti fazia carinho com arranhão,
Poti miava aos gritos,
Implorava o churrasco da barraquinha,
Sabia os dias, as horas, a mudança do dia pra noite;
Poti era precisão;
Potira virou Poti,
Veio para ti, para mim,
Não tinha dúvidas;
Mesmo de aparência duvidosa,
Titi queria queria queria...

quarta-feira, 6 de agosto de 2008

Pudim de leite moça

Ficara doente de caso meio grave. A família toda visitou, encheu o quarto, aumentou a temperatura, desatinou os ouvidos, quase comprometeu o coração de novo. Liliane se envolvera com ele por anos, a despeito do casamento. Não se importava, gostava dele, o que fazer...Chegou ao hospital meio sorrateira, de maneira que não topasse com a “família”. Poxa vida! Afinal tinha convivido tantos momentos bons, riscos, e pior, agüentado tanta rejeição...Esperou, esperou, até que se foram....Ufa! Gino estava lá, como que atordoado por tê-la esperado tanto. Sabia que ela iria de qualquer forma. Lili era ousada...era capaz de travar batalha com Catarina, sua esposa. O ‘caso’ espalhou-se por meia vizinhança e conhecidos dos conhecidos. Mas Lili foi assim mesmo; ela tinha o que dizer, ele também. Ela só não esperava que fossem falar de cozinha. Não levava o menor jeito. Gino desejava pudim de leite moça, daqueles repletos de furinhos, como a mãe dele fazia. Lili ficou orgulhosa, afinal de contas um paralelo com mãe é algo sublime, e o melhor de tudo; pedira para ela e não para Catarina. Lili tinha temperamento sincero. Confessou suas inabilidades culinárias, mas intuiu que não poderia ser pudim de padaria, aquela mistura sem personalidade. Descobriu uma doceira famosa no bairro, encomendou, levou para Gino, aprendeu. O segredo do pudim de leite moça está na clara que vira neve, que dá aquele aspecto de queijo adocicado e furadinho. Só assim o pudim flutua e se desfaz nas papilas da boca feito nuvem no céu. Os furos repletos de caramelo ligeiramente queimado dão aquele amargor discreto que equilibra o doce, dá a plenitude do sabor. Pudim de leite moça não era coisa simples, era preciso garfos e batedores ágeis, açúcar em fogo brando. O sentimento de Gino e Lili sempre pareceu vertigem. Depois do pudim de leite moça virou cuidado.

sexta-feira, 1 de agosto de 2008

Em todos os lugares

O desequilíbrio do humano assombra. O homem é o próprio entrelugar, e nem tem lugar. Vaga como ave migratória e retorna em desespero pelos humores do ambiente, pela suposta segurança. E se não volta? Continua com o lugar da lembrança. O ‘destino’ também é desequilibrado. E se falta o ‘tino’, o humano vê-se na eminência completa da imprevisão. E os outros olham abobados, a sorte inesperada, supostamente possível, indesejada por vezes. Mesmo se entrevê uma garantia e envolve-se com os bons ares da doação, o retorno é sempre duvidoso. A dúvida é também o próprio entrelugar. Se não se resolve então, vira angústia. Angústia é dúvida, incompreensão de si para si. E o si? O si é o entrelugar. O si alegre, exagerado de contentamento, culpa do momento sem perguntas e pensamentos. E o ‘bobo da corte’? O próprio entrelugar entre o tudo e o nada, felicidade sem justificativa, tristeza empedida. A sabedoria é o equilíbrio? A teoria diria que sim. Mas mesmo válida, a teoria é refém da que virá, é muleta que não engana alguns, mas satisfaz no tempo. A sabedoria também é o entrelugar, a negociação justa entre o sensato e o insensato. O exagero comedido, a contenção comedida, a ilusão do equilíbrio. O entrelugar está em todos os lugares. Nada mais angustiante, desafiador e mágico que o entrelugar.

quinta-feira, 31 de julho de 2008

Lamento

Perdeu o pé,
Ficou sem fé,
Perdeu o chão,
Ficou na mão,
Andou de banda,
Forçou a anca,
Foi-se o pedaço,
Base de traços,
De sangue e veias,
Doeu no coração,
Teve jeito não.

Sobre cartas e amizade

As palavras em mim são feitos, de feitio vário vão entrando no pensamento e criam o momento, e o pretexto da escrita. Esses dias um amigo disse da formalidade, da minha formalidade. ‘Incuquei’ com a palavra e fui buscar o sentido pra mim. Procurei o motivo e descobri que ainda está vivo, tem guelrras de letras, com espaços pro ar e água densa. O motivo talvez seja as tantas cartas que recebi, que escrevi. Quando ainda era criança, quase adolescente, firmei amizade com uma prima já moça. Fui criança de conversar longo com gente mais vivida. Prima Ana Márcia morou aqui um tempo, foi embora pra longe, voltou de novo. Mas quando estava distante, chegavam-me numerosas cartas, grossas, com até oito folhas daquelas de caderno grande. O assunto variado, percorria movimentos do cotidiano, de fora, de dentro dela, das angústias, dos sonhos. Ela também se debruçava sobre poemas quilométricos; era uma escrita quase fisiológica. Tenho a impressão de que ela podia até morrer se não escrevesse. A letra era cursiva, apressada pra não perder o fio do pensar. E eu recebia orgulhosa, aqueles calhamaços vindos de longe, ansiosos por alcançar meus olhos, minha alma. Na escola aprendi formato de carta formal, gostei, apliquei. A data e a cidade no topo, o cumprimento respeitoso, caro, prezado; carinhoso, querido. O que mais me encantava era a vírgula e o espaço em branco depois do cumprimento, como que dando chance, do respiro, da resposta, do reconhecimento. Tudo manual, com as irregularidades da escrita, a firmeza, os tremores, a pressa, a ansiedade, o contentamento. Depois tinha o envelope, o remetente, o destinatário, a ida ao correio e o eterno pensamento: será que vai chegar? Respondia Ana Márcia com certa economia, confesso. Custava preencher uma página completa; chateava-me, mas cuidava de ser atenciosa e precisa nas palavras. Hoje, minha prima não escreve tanto, a fisiologia dela mudou; a minha também. Amizade entra na gente.

quarta-feira, 30 de julho de 2008

Ajuda

Tenho saudade daquele tempo,
Tempo Momento,
Emendo;
Não me lembro exato ,
Invento;
Ajudo o querer lembrar,
Ele vai crescendo,
Crescendo...

quarta-feira, 23 de julho de 2008

Sem jeito

Corta Neguete! Assim não...desse jeito o bambu vai cair em cima de você...Neguete exagera o sorriso, como quem não precisa de orientação alguma. Dá as costas pro bambu, todo superior. Fosse ela fazer então. Luciana lá em baixo do lote repleto de touceiras, continua as instruções para a festa junina, até que Neguete se distrai novamente. Passa uma mocinha trigueira, de nariz empinado lá em baixo e Neguete não resiste. Ei gatinha...? Quer ser meu par hoje à noite? A mocinha aperta o passo, vira em direção ao morro íngreme. Lu indignada esbraveja: Eh Neguete sem jeito; devia era ser encoberto por dezenas de bambus. E não é que os bambus desabam mesmo? Desce à toda com Neguete e tudo. Corre todo mundo pra ver. Luciana se exalta, grita: Eu falei...esse Neguete...Retiram os bambus de cima do rapaz meio bambo, de sorriso bambo...Lu, ainda tô sem par pra hoje e agora temos bambu de sobra....Eh Neguete sem jeito Meu Deus, sorri Luciana...Vê lá se vou dançar com você...sem jeito do jeito que é...já tenho hora marcada hoje com outro peguete.

sexta-feira, 18 de julho de 2008

Vela

Fogueira pequena na favela é vela,
De chama fria de fumaça,
Nublada pelo vento;
A fruta vermelha pela metade,
Assa,
Disfarça,
Vira brasa morna,
Desce goela abaixo;
A pele ‘cinzenteia’,
Esfria,
Esquenta velada;
O abano na mão desespera,
Cúmplice da ventania,
Ironiza o fogo;
Fogueira pequena na favela,
Vela sem reza,
Acende e apaga um pouco.

quarta-feira, 16 de julho de 2008

Com ão, sem ão?

Inspiração é adoção,
Erupção;
Ficar sem inspiração,
É abandono,
Hibernação,
Reticências,
Interrogação,
Sei não...
Continua um tanto ão.

sábado, 12 de julho de 2008

Avesso nexo

Pequeno sem nexo,
No plexo,
Circunflexo,
Sem flexo,
Agudo,
É o verso;
Lágrima cai por fora,
Por dentro;
Lágrima escondida,
É rio no avesso do corpo,
Vermelho,
Rio de fogo;
A lágrima clama o verso,
Trama o verso,
No plexo,
Circunflexo,
Aguda,
Sem flexo;
Arde Chama,
Reclama,
Proclama;
Lágrima,
Desalento,
Contentamento,
Momento,
Fomento,
Avesso do nexo sem nexo.

'Estrela'

“Esse aí tem estrela”, dizem de quem tem de sorte. Cavalo ‘Estrela’ nasceu com estrela branca na fronte, bem destacada do pêlo castanho escuro, nem tão curto, nem tão comprido. Crina longa brilhante pra fazer trança, cauda cabeluda pra afastar pequenos seres voadores. Ganhou vida num campo amplo, em tarde fresca com pôr do sol. Pintor de natureza encheria os olhos e as mãos do clima bucólico, poético. As perninhas magrinhas, desequilibradas; levantou e caiu sucessivas vezes até o terceiro dia. Sugou leite, comeu erva. As pernas engrossaram, ganhou ferraduras. Veio a carroça, foi-se a estrela. Nas primeiras vezes relinchou, levou chicote. Depois calou, empacou, chorou e ninguém viu. Nem ele viu ninguém; colocaram vendas nos olhos, rédeas curtas, sobrepeso de coisa e de gente. As articulações incharam, calejaram. Um dia subiu gente sem conta, duas, três, quatro e pilhas de coisas na carroça. ‘É burro de carga, nasceu pra isso”, diziam. Até espora que “pinicava” o dono usava. Na subida o peso dobrava, o assombro paralisava; Estrela empacava, apanhava. Viveu assim vinte anos, com a estrela escondida; bicho de carga do homem de carga sem amor, bruto pela carga, de faces murchas, insones, sem brilho. Na velhice foram os dois: cavalos velhos sem dentes, com o sentimento da carga nos músculos, nos ossos, no coração; sem estrelas.

sexta-feira, 11 de julho de 2008

'Noite'

Olharam pra ela, profetizaram: “Noite”. Tinha pele escura feito sombra, cabelos e olhos negros, quase azulados. A menina era miudinha, estreita como o alcance da visão noturna. Traços finos, nariz aquilino, inquisidor da cor da noite. Era daquelas pessoas sem nuances, de uma definição precisa. Tinha temperamento discreto, sorriso alvo sem largura, comedido. Enquanto bem pequena não ligava; o nome era apenas uma representação sonora que lhe remetia, lhe sugeria a brincadeira, o alimento, a voz familiar.

Lá pelos idos dos sete anos de idade, a palavra, o nome, o seu nome começou soar estranho. Noite pensava na imagem da noite, no escuro, nas imagens sôfregas, imprecisas em busca de um pontinho de luz para se revelarem. Poderiam tê-la chamado Lua. Se fosse nova seria um pensamento. Se minguante, um apelo. Se crescente, um alento. Se cheia, contentamento. Nunca conhecera ninguém que se chamasse Noite, mas não via nessa originalidade nada de vantajoso. Ainda se fosse Dia, terminava como Maria e iniciava com a luz do sol. Não ligava também de ser Sol. Mas já tinha aquela sensação do nome, que pega a gente misteriosamente; não se via Lua, Dia, nem Sol. Tinha medo mesmo era de se confundir com a noite, se misturar nela, e nunca mais a encontrarem.

Quem deu o nome foi o pai; mineiro, colocava poesia em tudo. Jovelino achava a noite muito mais interessante que o dia. Achava que mistério da noite era mistério nada, era sim uma hora de escutar o silêncio, de enxergar com agudez, de dançar tango, bolero, de cortejar moças, de sonhar histórias reveladoras. Não pensou fosse constranger Noite com as perguntas e observações descabidas: “Ela se chama noite? Como pode se chamar assim?” Um dia Noite, já adolescente, recebeu um verso que dizia: “Se não chamasse Noite não seria Noite; Noite que me encanta, que me nina, que me afaga. Se não fosse Noite, quem seria?” Não soube quem mandou. Porém, desde esta data Noite soou de outra forma. Não compreendera completamente a escolha do pai Jovelino, mas sentiu uma ligação profunda com a noite, com o pai, com aquela invenção que se tornara real, ela era “Noite”; não havia nenhuma impropriedade nem sofreguidão nisto.

sexta-feira, 4 de julho de 2008

'Cenimétricas'

Desceu as escadas, doze degraus, três metros e meio. Abriu o portão, saiu, fechou; milímetros. Virou à direita, subiu, trinta metros. Deparou-se com uma castanheira gigante, de tronco abraçado por colar de flores. Parou, leu a árvore, as flores, o dizer no bilhete desenhado, a súplica de oração pela árvore. Observou, sorriu no coração, orou por centímetros de tempo. Apressou o passo, virou à direita de novo, subiu de novo, dez metros. Atravessou a primeira rua, andou mais um pouco, quase metro. Atravessou a segunda rua, caiu na praça, fez um quase meio círculo e deu de frente para a banca de revista, escondeu-se da rua por milímetros de segundo. Ouviu o motor do ônibus, correu centímetros. Não era o ônibus, era o caminhão da Nestlé, fez curva, ganhou a reta, confundiu sem intenção. Depois veio o caminhão Alimentos Pachá, passou, sumiu. Sentou-se no banco coberto, bem no meio, espaços largos à direita, à esquerda. Chegou alguém, disse boa tarde, sentou-se ofegante, queixou-se do morro íngreme, agudíssimo, longuíssimo. Concordaram e olharam para a pomba ciscando no meio da rua. Não voava, dava corridinhas, rebolava a cada carro; voltava centimétricamente insistente pelo cisco. Chegou o ônibus; deu o sinal, subiu, pagou, sentou, deixou árvore, caminhão, pomba, cenimétricos para trás.

quinta-feira, 3 de julho de 2008

Lantana sedutora

Beija-flor adora flor de lantana,
Lantana multicor,
De matizes incontáveis;
Pequeno buquê de lantana,
Lânguido,
Mentolado,
Amarelado,
Alaranjado,
Avermelhado;
Rosado;
E o bico do beija-flor,
Comprido,
Delicado,
Lá dentro da florzinha,
Sugando mel;
Pequenina lantana,
Sedutora lantana;
Beijo do beija-flor,
Na flor de lantana.

quarta-feira, 2 de julho de 2008

"Mora ao lado?"

A morte mora ao lado?
Não, ela está de frente,
Escancarada, na casa da frente;
Ficou lá durante uns três dias,
Rondando o ar que ela respirava,
Tirando a força de suas pernas,
O controle de seus músculos,
Estava lá pra dizer que o esquecimento é amigo da morte,
Do esquecimento que faz o tempo ser malvado,
Esse tempo, o outro tempo,
O tempo amante da solidão e da morte,
Do desinteresse pelo outro,
Tão perto, na presença discreta,
Na vida,
Na luz de penumbra refletida na janela;
A vida escassa, se dispersando,
Até que alguém arromba a porta,
Descobre excrementos, secreções,
Sinais da vida que não quer escapulir,
Gritos com seus cheiros fortes, revoltos,
Chega o socorro,
Levam a vida de maca,
Para retomar as luzes acesas,
As rotinas higiênicas,
A vida sugada pela morte.

quarta-feira, 18 de junho de 2008

"Goiabinha"

Nunca pensei fosse encontrar em São Paulo o “Goiabinha”. Foram centenas, de casca durinha, no estilo mais caseiro; aquele doce molinho em porções quase diminutas, caprichosamente envolvidas em trigo e muito carinho. Cada um uma cara, não de feitio totalmente regular, mas de uma individualidade pensada, delicada, distante do mundo das fábricas. As mãos moradoras paulistanas que conheci, ainda guardam o jeito mineiro das goiabas, dos quintais, das cozinhas aquecidas e cheirosas. Tudo sem complicação, de um comum incomum; comida de coração, pegada no fogão, lembrança do chão.

domingo, 1 de junho de 2008

"E agora José?"

Ele nasceu em um lugarejo chamado Tabocas, distrito de Rio Grande, pertencente ao município de Floriano, Estado do Piauí. “Morávamos em uma casa coberta de capim”, conta José Alves da Silva. Durante a conversa que tivemos, ele permaneceu de olhos baixos quase todo o tempo, como se um filme estivesse passando em sua mente. A voz firme, só algumas vezes saía embargada. Pequenino, mais ou menos 1,65 de altura, 69 anos, cabelos grisalhos, fronte ampla e uma postura de elegância invejável.

O Alves ou Zeca, como sempre foi chamado, diz não ter nenhuma saudade do lugar onde nasceu. “Minha infância foi de muita pobreza, não existia espaço para brincar, havia muita doença e nenhum atendimento médico”. Para Zeca, o que mais marcou sua fase de menino foram as constantes brigas entre seus pais. Permaneceu na roça até os 10 anos de idade, quando foi estudar na cidade de Floriano. Ficou hospedado na casa de um amigo de seu pai. Esse amigo possuía várias propriedades.

A adolescência quase não existiu. Enquanto concluía o curso primário, trabalhava em mais de 30 fazendas, viajando e fiscalizando o trabalho dos vaqueiros até completar os 14 anos de idade. Nesse tempo, voltou para o campo. Chegando lá, a família recebeu a visita de um primo chamado “Odaque”, filho do “Zuca”. O visitante observou que Zeca era um menino muito inteligente e que era um desperdício ele ficar na roça. Então, resolveu levar o menino para Anápolis, no Estado de Goiás, para terminar os estudos.

Em Anápolis, Zeca conseguiu um emprego na loja de “Tecidos Buri S. A.” e fez o Exame de Admissão para ingressar no curso ginasial. Trabalhava durante o dia e estudava à noite. “O sonho de todo estudante em Goiás era estudar em Belo Horizonte”, conta Zeca. O pai de um dos hóspedes da pensão onde Zeca morava, tinha uma casa na rua Iguaçu, no bairro Concórdia, em Belo Horizonte. Em 24 de dezembro de 1954, Zeca chega no aeroporto da Pampulha.

Ficou uns 10 dias no bairro Concórdia e depois foi morar no Edifício “Balança mas não cai”, na rua Tupis, 749, onde moravam vários estudantes do Piauí. “Eu me sentia em casa”. Matriculou-se no Colégio Anchieta para cursar o Científico. Dentro de um mês, o estudante piauiense se empregou na Mesbla S.A., “uma das firmas mais importantes do país”. Começou como vendedor na seção de artigos eletrônicos. Três meses mais tarde, com 20 anos de idade, já era chefe do setor de eletrônicos. Coordenava funcionários de 40 a 50 anos de idade, com anos de serviços prestados à empresa.

“Você, todo de terno branco, aqui nessa loja empoeirada! Você merece coisa melhor,” diziam os companheiros de trabalho da Importadora Mesbla. Ele dizia: “Eu dou todo o meu esforço”. O “Senhor Alves” foi convidado para ser chefe de departamento. Para isso teria que abandonar os estudos, já que iria fazer viagens. Ele aceitou e teve um bom aumento no salário. Nessa época, lembrou-se da família que deixara no nordeste. “Meu irmão Pedro que estava muito bem financeiramente, mandou buscar meus pais e meus outros sete irmãos para morar em Anápolis.” Seis meses depois de morar em Goiás, a família de Zeca voltou para o Piauí. Pedro alegava dificuldade de adaptação dos familiares, uma vez que ele só “freqüentava a alta sociedade.”

“Eu estava morando no Hotel Majestique, rua Espírito Santo com Caetés, quando resolvi trazer minha família para Minas. Aluguei um barracão em Santa Tereza e trouxe meus pais e meus irmãos, todos com menos de 15 anos. Continuei trabalhando na Mesbla e meu pai começou a trabalhar, primeiramente, como feirante." Depois, Zeca alugou um ponto na Rua Amianto com Pouso Alegre, em Santa Tereza, onde montou um bar para o pai. Assim os dois puderam cuidar da família.

Enquanto isso, o irmão de Zeca “quebrou” em Anápolis devido à bebida. Quando chegou a Belo Horizonte, Zeca propôs que ele retornasse e trouxesse um capital para que os dois se estabelecessem no ramo do comércio de cereais na capital Mineira. Passados dois anos, o irmão retornou e eles fundaram a Cerealista Irmãos Alves, na rua dos Guaicurus. A empresa se tornou uma das mais importantes firmas de atacado de cereais do Estado.

"Ganhamos um bom dinheiro, fechamos a cerealista e aplicamos todo o capital em ações. O mercado de ações sucumbiu durante o governo Sarney e nós perdemos todo o recurso financeiro que tínhamos. Pedro precisou voltar ao trabalho e eu hoje sou aposentado e não dependo de ninguém,” conta Zeca. E agora José? Agora José, solteiro, pai de todos seus irmãos, diz que é uma pessoa feliz e de muita coragem. Essa pergunta foi feita a ele em todos os momentos de sua vida e ele não se calou.

Do Galba

Estava lá. Grandalhona, espalhada, enviesada na calçada do quarteirão do quartel. Roupa colada nos membros inferiores, cobrindo-os só até os joelhos. Blusa curta com folga, menos no abdômen protuberante. Antebraço ralado com sangue já coalhado de listras em alto relevo, irregulares. Passaram uma, duas, três pessoas; uns de olhos estatelados e pescoços girados voltados para baixo; outros, só viravam os olhos. Parar mesmo...só a quarta de cabelo pretinho, curtinho, com um cãozinho Dachshund na coleira, também pretinho; cara de uma, focinho de outro. Perguntou: - Posso ajudar? Os olhos entreabertos, prestes a fechar de vez, em vão buscavam a imagem da “moça Dach”, até que balbuciou um gemido. Depois veio a quinta pessoa; cabelos longos, apressada; parou assim mesmo. Não havia como rejeitar uma imagem tão indiscreta. Acertaram então as duas: chamar um policial, afinal de contas, era território deles.

Lá se foi então Mônica, a dona do lingüicinha, em direção à guarita do quartel. Chegando lá deparou-se com um policial fardado, de quepe, sentado com olhar no vazio. – Por favor senhor...tem uma mulher caída no chão, logo ali...pode ajudar? – Agora não posso. Enquanto isso, Marta tentava obter alguma informação, mas sem sucesso. Até que percebeu que na mão da “criatura” havia um papel enrolado, e sobre ele o nome DORA, em caneta pincel azul. De repente a mão da moça começou a desenrolar o papel e o conteúdo veio à tona: seis comprimidos, de tamanhos e cores variadas. Foi quando chegou Mônica e disse que o policial não viria. Marta visivelmente perturbada esteve a ponto de arrumar uma confusão com a polícia, e manifestou sua indignação: - Pra que serve ter um quartel aqui? Decidiu, então, que ia lá falar com o policial de novo. Chegou nesse momento mais um grupo de três mulheres; todas manifestaram o interesse em ajudar. Uma delas se prontificou e foi na frente de Marta...Desta vez o milita não teve salvação. Veio com aquela cara de Meu deus eu mereço, mas veio.

Curiosamente, a chegada do guarda deixou a moça bem mais interativa. – Onde você mora? perguntou Orestes. - Na lagoinha... – Você quer ir pra onde? – Para o Pronto Socorro, João XXIII; e apenas três dentes espaçados na boca. Marta interveio: - Tem uns remédios com ela. – Você quer ir para o Raul Soares? destilou “brilhantemente” Orestes. – Não...para o Galba...- Quer ajuda para assentar? – Sim. Orestes não só ajudou a moça a aprumar o corpo em posição de assento, como levantou-a com certa dificuldade...- Uma viatura leva você...Seguiram os dois; Orestes um pouco mais atrás verificou com olhar fixo o volume e a consistência das ancas da moça. Marta pensou: - Será que fizemos a coisa certa? Imaginou na seqüência cenas nem tão amenas, mas que aquela que vira não se repetiria tão facilmente. Enganou-se. Ao passar alguns dias depois pelo mesmo lugar, estava lá a Moça do Galba num diálogo, nem tão amigável, com um guarda. Ele dizia: esse negócio de levá-la até o Galba já está virando brincadeira...

sexta-feira, 30 de maio de 2008

'Chats'

Les Chats, Os Gatos;
Os Gatos, Les Chats;
‘Doçuras e poderes’,
Baudelairianos,
Outros anos;
Esses anos,
Reinventamos;
Os Chats,
Conversamos,
Les Chats, Os Gatos,
Les Gatos, Os Chats,
Seduzidos,
Amamos,
Intrigamos,
Chatos, chats, cats,
Gatos de unhas e dentes,
Pêlos escondidos;
Impenetráveis Les chats,
Baudelairianos ‘olhos místicos’;
Passos na escuridão.

“Les Chats” (Os Gatos) de Charles Baudelaire:

http://fleursdumal.org/poem/155

quarta-feira, 28 de maio de 2008

'Obscenidade'

Obsceno não é o menino com dedo em riste,
De sorriso maroto sarcástico,
E destino esquecido;
Obscena é a presença,
Até na ausência;
É a cena continuada,
Mesmo na mente,
Que de tão inconveniente,
Faz-se necessária,
Parasitária.

sexta-feira, 23 de maio de 2008

Chamava-se

Nasceu com facilidade. Todos ficaram abobados com um parto tão natural e eficiente. Gonçala sentiu aquelas pontadas anunciadoras, deitou-se na cama e a criança apressada já se insinuou por entre suas pernas; escorregou imersa naquela baba sanguinolenta com uma rapidez assustadora. Mas no rosto da recém-nascida não havia nenhum sinal de pressa, e sim um tom azulado, desmaiado, plácido ao extremo. Todos que acompanharam o nascimento esperavam um bebê quase desesperado, que iria urrar sem parar com ou sem tapinha. Tia Gardênia, a aprendiz de parteira, não teve uma experiência das mais instrutivas, tamanha a fluidez do acontecimento, mas cuidou de olhar bem para aquela carinha lívida e sugerir um nome. Achava no tom de pele e nos traços preguiçosos um quê de lirismo insistente. Então, lembrou-se dos lírios, presentes do namorado Rosalvo. Mas como não podia ser Lírio, convenceu Gonçala de que Líria era um nome adorável, pois remetia aos lírios do campo, tinha ares femininos e delicados. A criança cresceu envolta em atenção e proteção. Na adolescência idealizou rapazes, sonhou príncipes e amor eterno. Posto que nenhum dos ideais tornaram-se realidade, a moça Líria pôs-se resoluta em conhecer o lado mais prático, instintivo dos encontros. Foi quando conheceu Jaime, moço obtuso, de cabelos compridos, ligeiramente ondulados e assanhados, mandíbulas fortes, quadradas, quase eqüinas. A despeito de caracteres tão masculinos, os músculos eram discretos, sem grandes proeminências; um corpo imberbe, um rosto duro, pré-histórico. Marcaram um encontro em uma cidade de nome rimado com poema, mas que fora o ar interiorano, não tinha nada de poética. O quarto ficava em um hotelzinho simples e da janela dava para ver os limites do vale onde estavam; vale sem frescor, sem lírios. Os olhos de Jaime percorriam Líria com curiosidade, sem nenhum afeto. Dizia que nunca havia gostado de ninguém e que, certamente, não seria desta vez. Sem lirismo, mas sem agressividade, Jaime retirou lentamente as roupas de Líria e olhou -a ávido, de nervos a artérias tensas, prestes a explodir. Enquanto isso, Líria contemplava Jaime e se concentrava para o início e o desfecho da cena. Procurava nele o frescor dos campos, o olhar consentido. Passaram dois dias completos se rodeando, nus, de almas incompreendidas, numa constante interrogação. Líria voltou para casa; não viu Jaime mais. Com o passar dos anos seu rosto corou, perdeu a lividez. Desde aquele encontro ela temeu reconhecer desafetos, arriscar-se em momentos forjados; assumiu de vez a evocação de tia Gardênia, inscrita no seu nome.

terça-feira, 20 de maio de 2008

Anonimato

O anonimato não está no mato
Está no ato
No passeio-cimento
Dito civilizado
Na fala e no gesto
No relance
No susto passante
No ouvido errante
“- Cara... outro dia desses um chegado meu foi lá em casa.
Fiquei bobo! Já tem dois filhos e só tem vinte anos. E sabe
o que é pior? A mulher dele é feia feito o diabo.”

quarta-feira, 14 de maio de 2008

"Brucutu"

Brucutu. Vocábulo cheio de “us”, fortes “us”, naturalmente agudos. A palavra veio numa sugestão de vídeo, num e-mail encaminhado por um amigo. O termo contempla várias acepções, desde o midiático global "Brucutu Garanhão" de uma novela das sete, até o carro Blindado da Ditadura Militar, o "Brucutu Camburão". E para maior surpresa, é nome também de música do cantor Roberto Carlos, uma referência ao “Brucutu das Cavernas”: “Olha o Brucutu, Bru-cu-tu! Nas histórias em quadrinhos, Das revistas, dos jornais...- Olha o Brucutu, Bru-cu-tu!” Poderíamos aventar um “Brutus Brucutu”, adversário do espinafrado herói Popeye dos animados televisivos. Contudo, o mote do vídeo não era nenhum desses “Brucutus”, mas a validade da fé de alguns frente à vaidade de outros. A grande personagem é mesmo a “Mina de Brucutu”, proeminente preposto minerador, que decidiu inundar de rejeitos o Vale da Serra do Tamanduá, localizado no município de São Gonçalo do Rio Abaixo, em Minas Gerais. Tamanha é a capacidade de espoliação da mina, tamanha sua produção de restos insustentáveis, tamanha sua grandiosidade frente à população espoliada na paisagem, no ar, na história inscrita na rocha e marcada no solo, na lembrança e nos ritos que ali têm lugar; não poderia deixar de ser a personagem, tal qual, um dia, Émile Zola retratou tão bem em "Germinal". O célebre livro "As Veias Abertas da América Latina", do historiador Eduardo Galeano, continua inacabado, tão poderosas são as minas, a esfacelar nossas terras, nossos eus.

O vídeo:

http://br.youtube.com/watch?v=tU0HH7fW2zk

quinta-feira, 8 de maio de 2008

Um lugar no antes

Velozmente,
Bate o coração;
Involuntário,
Mio,
Cárdio,
Bomba,
Explosão!
Vertigem!
Oração!
Deus! Nossa senhora!
Todos os santos!
Louvação!
Acabam de nascer,
Asas na solidão!
Estão em queda,
As cores da razão!
Lusco-fusco,
Imprecisão!
Nem lua,
Nem sol;
Riso,
Dor,
Clamor!
Clarabóia,
Extintor,
Onde estarão?
No alto,
No profundo,
Na folha sob a brisa?
Redemoinho,
Inspiração,
Oxigênio!
Bate à porta lucidez!
Não tem chave!
Ficou tudo escondido,
No fundo do mar,
No susto do naúfrago,
No teto azul,
De pássaros,
De vôos!

Rio

Um velho andava,
Um velho e sua mente,
Trazia cãs e escamas de peixe,
Era um rio;

Cada choque na rocha,
Um tilintar nos ouvidos;
Uma lembrança,
Um recomeço;

As margens despencando,
Assoreando;
E o velho?
Amontoado,
Receptáculo;

O correr sem fim;
A matéria fluida;
Inevitavelmente sem freio;
Um recuo impossível.

domingo, 4 de maio de 2008

Dendera

Às vezes sinto saudades, aquelas alegres, de lembranças boas, vivas ainda. Sinto também “sôdades”, de lembranças apertadas, do querer bem que não está mais por perto. Em noites de insônia, tenho a nítida impressão de que ela está em algum canto da casa, com seus olhos enormes, profundos. Ela chegou pequenina lá em casa, rajadinha, barrigudinha, apinhada de pulgas. Toda vez que dávamos a ela mingau de fubá, ela espumava copiosamente com aquela cara de falecimento iminente, numa tristeza profunda. Aparecida, uma vizinha e amiga, vinha a nossa casa e dizia: “ela tá magrinha demais; tem que dar muito mingau para ela”. Que idéia! Curiosamente, Dendera custou revelar seus dotes felinos; morria de medo de pular; não para o alto, mas para baixo; dava-lhe aquela sensação de vertigem, talvez a mesma da mistura desastrosa do leite com o fubá. Mas depois que começou suas aventuras de escaladora, era bagulho de estante caindo no chão; eu e mamãe ralhando; e pior, escondia-se atrás da porta, na surdina para agarrar nossos tornozelos.

Cresceu, as rajas alargaram; ela clareou de vez, tanto que começou suas incursões pelos muros, suas caçadas a pardais, borboletas e até asquerosas baratas. A gente ficava indignada: “Como pode Denda, fazer uma coisa dessas; coitada da borboleta, tão linda...” Quando era barata: “Que nojo Dendera; faz isso não!” A infância foi assim, cheia de peripécias, corridas de arrepiar o pêlo e enrolar a cauda, naquele estilo pra lá de descontraído, cheio de charme. No tempo de moça, foi um tormento. Os cios eram agitados; os olhos vidrados; bastava um trisco no corpo para soltar o gemido. Chegou até a se encontrar com um vira-lata em uma construção perto lá de casa. Retornava com os dedos da patas colados de cimento, com aquele ar de gozo eterno e de ‘ele vai vir atrás de mim’. O sem-vergonha não vinha e Dendera sofria; a gente indignada com aquele amor vagabundo e aquelas reações escandalosas. Mamãe dizia: “Uma gata tão bonita dessas cruzando com vira-lata...” Tudo só ficou mais ou menos resolvido quando adotamos o Lu; esse era garanhão de primeira. Com seis meses já deu um sossego relativo nela. Mas ela tinha uma má vontade danada com ele; o gozo era discreto. Resumindo: a coisa era meio forçada. Deduzimos então que ela tinha gosto mesmo era pelos vira-latas. O primeiro parto foi meio atabalhoado, desajeitado. Dendera levava aquelas bolinhas de pêlo pra nossa cama como que pra fazer festa. Nas próximas crias, não sei se por ciúmes ou madureza, resguardava-os mais, ficava esticadinha na caixinha, e tinha um prazer imenso naquelas boquinhas desdentadas e naquelas unhinhas frenéticas no seu abdômen. Os veterinários diriam: “essa tem mesmo habilidade materna”. Nós dizíamos: “ela é uma ótima mãe”.

Os anos se passaram, muitos cios e crias. Em casa era uma festa de gatinhos fazendo estripulias. O amor da Dendera pela mamãe aumentando, tanto que dormiam até juntas; uma esticada do lado da outra, e eu dizia que era o ‘casal vinte’ da casa. Era um afeto tranqüilo, sem arroubos. Já o meu por ela, era exagerado, forçado, a gente brigava feito algumas irmãs. Agarrava Denda à força pra dar aqueles beijos estalados e ela rosnava para mim na sua maneira gatuna, exibindo os caninos e louca para me enfiar a unha. Mas pensava duas vezes ‘essa menina é doida coitada’ e não fazia nada. Quando a colocava no chão abanava o rabo meio nervosa e eu falava com a mamãe: Ta vendo mãe; ela gosta de mim...sei que ela gosta...Nunca tive certeza. Os últimos dias foram tristes. Denda foi acometida por uma virose muito grave e todas as tentativas de salvá-la foram vãs. Teve desespero no último dia, não queria morrer perto da gente. Mas foi embora e deixou-me pensamentos e sabedorias, embora muitos eu ainda não saiba usar. Sabia viver com uma naturalidade invejável, cultivou por minha mãe um sentimento nobre, sem egoísmos, mas de uma possessão delicada. Denda no início tinha medo do pulo do gato, mas depois foi mestre, nos mostrou que o pulo a gente dá aos poucos, na espreita.

sexta-feira, 2 de maio de 2008

Caixa prioritário

Na fila da Caixa,
Na fila do caixa,
No caixa prioritário,
Não tem Zé menino;
Zé menino nem se lembra,
Virou Zé de outro tempo,
Não da mocidade, meninice,
Mas do futuro esquecido;
Não vai mais à Caixa,
Não chega ao caixa,
Não tem mais soldo;
Na fila da Caixa,
Na fila do caixa,
Tem o amigo do Zé menino,
Aposentado, sentado;
E o amigo de pé,
Na falta do assento prioritário;
E a figura do leão da receita,
No pôster da parede ao lado;
Leão sentado, glamuroso;
E Zés de pé,
Na fila prioritária;
Insuficiente;
Na senha nome de milhar,
1024, 1025, 26, 28...
Na confusão do nome dito em alta voz,
Do Zé e do Antônio;
No corpo amarrado,
De engrenagens já gastas,
De líquidos escassos;
Mas de pé os Zés, as Marias de sorrisos cacoetes,
Se preciso for,
Até virar Zé menino de outro tempo;
Esquecido,
Não vai mais à Caixa,
Deu adeus à fila prioritária.

terça-feira, 29 de abril de 2008

Pa(lavras) ciscos

Riscos, ciscos nos olhos;
Fatos, carimbos na mente;
Mentem, desmentem;
Dizem somente;
Escapam semente;
Engalfinham-se na gente, entre a gente;
De mãos dadas;
Separadas;
Sem senso;
No senso;
Impartilháveis às vezes;
Edificam colossais;
Lavras, pavoneiam;
Quebráveis, quebra-cabeça;
Abismais;
Sem mais, freio;
Na ponta, no meio;
Entremeio;
Até mais!

sábado, 19 de abril de 2008

"Enrigelados"

Na ponta da lâmina,
O músculo, o sangue,
Os vasos rompidos na carne,
Os vasos crescidos,
No volumoso bíceps, no tríceps;
O corte preciso,
De olhos congelados,
Na câmara que refrigera,
“Enrigela” a alma;
O boi no cercado,
Depois da linha, fila,
Fim de linha,
Tombado pela carne,
Na marreta, no choque,
No susto sem susto,
Na cena banal,
No ambiente frigorífico,
Terrífico;
A vida morte magarefe,
A morte vida do boi,
Sangue e carne,
Na mesa,
No morno bucho;
E magarefe lá,
No frio corpo,
No rosto rijo,
No olho fixo, na carne.

sexta-feira, 11 de abril de 2008

Sobejo

Grãos de arroz, feijão,
No prato, no lixo
Restos de emoção,
Na alma,
No coração corroído,
Sobras inevitáveis,
E tão evitáveis,
Comíveis,
Amáveis,
Amarguráveis,
Esquecíveis,
Inesquecíveis.

segunda-feira, 7 de abril de 2008

Métrica metroviária

Não é uma janela qualquer,
É uma multiplicada,
Aberta para um pedaço de mundo generoso ‘escaposo’,
É abertura andante por sobre os trilhos,
De imagens multiplicadas,
Andantes ao passar dos olhos;
Ficando diminutas,
Se agigantando,
Feito a vida,
Pequeninas, grandes, pequeninas,
Sumindo, aparecendo, sumindo....

domingo, 6 de abril de 2008

Ver o som

Quero ver seu som;
Quero ver seu silêncio;
Degustá-los com papilas indiscretas;
Tocá-los com pontas de dedos;
Dendritos da alma.

De olhos fechados,
Construir imagens;
Receber cúmplice,
Sem constrangimentos, os sinais inesperados.

Ser morcego;
Seu eco, meu guia;
Cega,
Visionária do som,
Do seu som...

quarta-feira, 2 de abril de 2008

À francesa

- Ei? Você podia me ajudar? Nenhuma resposta.
- É sobre as pastas...chegaram? - Je ne parle pa portugais...seguido de absolutamente nenhuma expressão ou gesto; os olhos fixados no laptop escondido atrás do balcão...Eu latina embasbacada, humilhada...Depois pensei: poderia ter dito Oui Madame, pardon...Pelo menos isso eu saberia dizer, mas não...virei-me ofendida; cabisbaixa fui embora. Poderia ter feito um barraco; ela não entenderia nada, mas quem sabe esboçaria algum movimento de face. A Francesa estava ali na minha casa e do outro lado do continente Europeu, e eu era obrigada a saber quem ela era, falar sua língua, ou no mínimo, não importuná-la naquele momento só dela, da Francesa. A grande divisória que nos separava aumentou ainda mais. O lado de lá do balcão sediava momentos antes, poucos momentos, a entrega de material para o III Simpósio Internacional de Lingüística. A tal pasta com os folhetos tinha acabado e fui reivindicá-los momentos depois. Talvez esse tenha sido meu erro; tudo mudou de lugar. Antes era ocupado por estudantes brasileiras, falantes fluentes do português...mas a Francesa ocupou o espaço momentos depois e eu tinha que saber que seu momento era único, ela era única, por isso, a resposta foi mínima, sem olhar ou movimento...Eu na posição dela, certamente, teria feito caras e bocas, esboçado gestos de sim e não, o que fosse necessário, sem contar a comiseração por não saber sua língua...O tema do encontro era Análise do Dircurso: emoções, ethos e argumentação. O ethos da Francesa falou mais alto e eu saí à francesa.

sexta-feira, 28 de março de 2008

Viúva Ambrósia

Sol com chuva; casamento de viúva...Sol com chuva; casamento de viúva...Esse rifão mais parecido com uma cantinela, ciranda de gente grande, acompanhou toda a infância e adolescência de Carmem. Nunca houvera em toda a história dos tempos modernos uma família de tantas tias viúvas, como a de Carmem. Mas eram viúvas recidivas; enviuvavam, casavam, enviuvavam, casavam...Em uma delas, Ambrósia do Carmo, a viuvez parecia cármica. Já estava na quarta, mas não desistia nunca e confiava piamente no rifão gasto, mas certeiro do sol com chuva. A viúva era mesmo um manjar dos deuses aos olhos dos moçoilos de todas as idades e jeitos. Andava gingado, sempre de saias no joelho bem justas ou vestidinhos floridos, que sorriam junto com seu rebolar. O primeiro marido foi ajuntamento de conveniência, coisa de ‘desejos’ da família. Contraiu doença grave, irremediável, morreu. Ambrósia nem sentiu tanto. O segundo marido conhecera em um dia de finais de março, quando o sol teima em não se despedir e a chuva se intromete copiosa, exagerada. Nesses tempos de antagonismo harmonioso é que Ambrósia conheceu Adalberto. Tudo por culpa de uma carona de guarda-chuva e um roçar de braços adoráveis, a que eles se refeririam mais tarde como “sem malícias”. Adalberto como não poderia deixar de ser, morreu de solicitude junto com um ceguinho, a quem atrapalhadamente tentava dar os braços para atravessar a rua. Um carro virou à toda e não houve salvação. O terceiro, contrariando o rifão, veio em um dia de verão sem chuva mesmo, na sorveteria do Seu Amaro, numa paquera desenfreada, com lambidas insinuantes e uma aproximação cremosa, açucarada. As altas taxas de açúcar no sangue, potencializadas pelos sucessivos encontros para tomar sorvete, acabaram por levar Roque para o lado de lá. Os casamentos de Ambrósia, não se sabe o porquê, duravam pouco; assemelhavam-se a tramas novelescas de início e final marcado. O quarto esposo então; esse deu ao rifão todas as odes. Chamava-se Último o último. Casaram-se em um dia coroado de pingos de ouro de um dia 28 de março. Mas Ambrósia tinha medo mesmo era do nome Último, porque pelas estatísticas dos seus casamentos, a chance de encontrar um amor em dia de sol com chuva era mesmo grande, e nesses dias ela se esforçava mais nos caprichos da conquista. A sobrinha Carmem, já muito adiante da idade esperada de se casar, passava horas conversando com Tia Ambrósia. Quem sabe não pegava sua forma de ser e se livrava de inaugurar uma nova era na família, a das solteironas. E quem sabe o rifão Sol com Chuva não podia também ajudar no seu caso.

terça-feira, 25 de março de 2008

Brumas e Bruxas

Lembranças, às vezes, nenhumas;
Às vezes, algumas;
Ânsias;
Intrusas;
Sem tempo;
A qualquer tempo;
Lembrumas;
Do que se foi, saudades;
E não foi;
Enganos na mente;
Falhas;
Rasuras;
Rasas;
Profundas;
Por vezes, realidades;
Ficcionalidades;
Lembruxas.

quarta-feira, 19 de março de 2008

Sonora Amargura

Tudo começou de madrugada, logo depois da ingestão forçada de uma imensa cápsula de tetraciclina. Lara nunca entendera o motivo de cápsulas tão gigantescas para cobrir uma quantidade ínfima de pó; só mesmo para agarrar na garganta, no esôfago e dar aquela sensação ilusória de que tamanho remédio, tamanha cura. O sono vinha, ela dormia. O sono ia, ela sentia aquela tetra volumosa, inconveniente, que não deslizava nem a poder de reza.

Finalmente aproximava-se as seis da manhã. Foi ao quarto da mãe se queixar da noite terrível, do estômago, enrolada no lençol e com travesseiro na mão. A mãe a olhou com a aquela cara de quem já conhecia a cena. ‘Lá vem essa menina...meu Deus o que será...ou vem por insônia ou dor...é sempre assim.’ - “Que que é Lara?” – “Passei uma noite de cão, tô passando muito mal, é o estômago; desse jeito como vou passar o dia, resolver tudo que preciso hoje? A cada ‘drama’ exposto um movimento doloroso na boca do estômago. – “Espera aí...vou preparar um chá de boldo.” Mãe é uma maravilha, e de filha dramática então, muito mais.

Veio então o famoso chá morninho, carregado pelas mãos solicitas de Rute. Adentrou o quarto e encontrou Lara sentada na beirada da cama com a costumeira cara de desespero; não pôde conter as gargalhadas. Enquanto isso, Lara esbravejava contra o sorriso fácil da mãe em face de tamanha tragédia. Pegou o copo e começou a engolir aos poucos. Não era nada fácil, os goles queimavam a cada escorregadela goela abaixo. Aquela amargura escorrendo e Lara cada vez mais amargurada. E Rute tranqüila, sempre crédula dos poderes mágicos do boldo; eles nunca falharam; não seria desta vez. E não foi mesmo. O estômago de Lara permaneceu meio dolorido por algumas boas horas, mas não tão indomável que a impedisse de realizar as tarefas do dia.

Boldo! Agora Lara percebia a sonoridade nem tanto amargurada do exclamar do Boldo. Boldamos nós, boldam vocês e segundo uma amiga de família de Lara, de muitos anos: “minha mãe sempre disse, se está se sentindo mal, toma Boldo, porque ele serve pra curar sete tipos de mal.” Coincidência ou não Naildes fez uma visita à casa de Lara exatamente na tarde depois da manhã terrível, em que seu estômago se contorcia, ardia, fazia nós.

O chá de Boldo foi parar até em página da Bíblia de Rute, justamente, em cima de uma oração que fazia referência a umas dores que ela sentia e não conseguia explicar. O restinho do líquido ficara sobre a mureta da janela do quarto e desabou sobre o livro sagrado no salmo 102, que dizia entre outras lamentações: “Pois meus dias desaparecem como fumaça; meus ossos queimam como ardor de brasa” e “Por causa do meu suspiro dolorido, meu osso adere em minha carne.” Rute deu por definitivo o milagre boldal e finalmente pôde levar o texto descritivo detalhado para a próxima consulta médica ortopédica.

quarta-feira, 12 de março de 2008

Quixote Pança; Sancho de La Mancha

Há algum tempo tento decifrar os segredos do cavaleiro andante e do escudeiro de Cervantes. Um cavaleiro triste, esquálido, sempre a sofrer arranhões e feridas de performances em batalhas imaginárias, e além de tudo eternamente apaixonado por Dulcinéia Del Toboso. Um escudeiro pançudo, ‘experimentando’ ser governador da Ilha Baratária. Os dois tão juntos; misturados na loucura ou na ilusão? Andam tão próximas essas duas; praticamente irmãs gêmeas. Dizem por aí que o que as separa é apenas o tempo. A loucura seria um estado permanente. A ilusão, inevitavelmente, refém da lucidez. Ou ainda, que a loucura seria uma sucessão de ilusões. Como andam juntas as duas, femininas e confidentes, a separação é mesmo improvável. Por loucura ou ilusão, La Mancha e Pança eram extremados, e o excesso é mesmo coisa da imaginação, posto que o equilíbrio se dá muito mais com a razão. Quando têm dores de amores, dizem as pessoas: “estava louco, foi pura ilusão.” E quando sonham com o sucesso, a felicidade plena, dizem: “isso não existe, a felicidade é pura ilusão.” Outro dia desses vi um andarilho fazendo um solilóquio, ou seria um diálogo imaginário? Ele se deliciava em gargalhadas e gestos exagerados, no seu mundo paralelo. E tem tanta gente aí que se delicia em pensamentos tresloucados, e as vemos tão comedidas, controladas. Vivemos assim, cercados por essas femininas deusas; Loucura, Ilusão e Razão. Todas as três desarazoadas, sustentáculos da existência, as responsáveis pela mistura da pândega e do comedimento, da alegria e da tristeza, das panças e manchas, dos Quixotes e Sanchos.

terça-feira, 11 de março de 2008

A luz de Vagner

Tem gente que faz a gente sorrir por dentro; que deixa a gente boquiaberto mesmo de boca fechada e que faz a gente pensar, pensar...e se encantar. Roberta nunca achara a profissão de motoboy das mais gratas. Pelo contrário, sempre pensara que “rimava” com caos, espaços estreitos, tempos corridos, contados, entrega isso, busca aquilo, quase sempre, sem sequer um olhar. Mas Vagner mudou tudo. Tornou-se em poucas semanas o preferencial no escritório onde ela trabalhava. Tinha uma delicadeza, um sorriso no rosto, que não vira em sua vida muitas vezes. Não era uma norma de comportamento. O sorrir era leve, fácil, sem nenhum esforço. A fala era baixa, pausada, sem os respiros da correria. Se demorava a chegar, desculpava-se. Vagner exalava gentileza, tanto que um dia ligou do correio e perguntou: o dinheiro que me deu não é suficiente para despachar a encomenda, quer que eu pague e depois acertamos? Luísa, que também trabalhava no escritório e atendera o telefone, ficou visivelmente afetada: Não Seu Vagner...pode não...o valor é alto...não tenho essa quantia no meu caixa. As meninas olharam umas para as outras, desta vez, boquiabertas de verdade. E esse foi só um dos episódios atenciosos de Vagner. Toda vez que o Vagner vinha, todos se sentiam tranqüilos pelo serviço bem feito, mas Roberta pensava: será que quem recebe as encomendas tem idéia de quem faz a entrega? Outro dia desses Roberta solicitou (era impossível mandar) a Vagner que levasse uma luminária. Ele demorou a chegar, pediu mil desculpas e se foi com o sorriso de sempre...Roberta sabia que o baú da moto de Vagner era uma espécie de compartimento do coração. Que o que Vagner levava jamais seria uma entrega qualquer. Que aquela luminária adquirira a partir daquele momento outra luz, a luz do gentil Vagner.

quarta-feira, 5 de março de 2008

O dia do Pacabá

Sacola cheia é uma agonia. Tem dia que chega tudo novinho, fresquinho. Tem dia que estraga; e dia de domingo estraga mais ainda. Os preços caem; tem gente que sabe.Tem gente que não sabe e presencia todo o ritual. Tem gente que participa, tem gente que olha. Foi assim com Dona Carmem e Lucinha, sua filha. Domingo é dia do “Pacabá”; não tem placa avisando, mas todo mundo vai lá encher a sacola. O dia ficou célebre depois que Toninho, funcionário mais comunicativo da rede ABC, virou porta-voz da promoção imperdível. Funciona assim: as bancas vão esvaziando com o preço do sacolão, mas têm frutas e legumes que por estarem fora de safra são cotados lá em cima e a banca fica cheia. Domingo já viu, até empregado de sacolão descansa um pouco, sai mais cedo. Resultado: tudo perece e o povo padece. Assim, Toninho ficava de olho no movimento das bancas até que escolhia estrategicamente o momento e gritava com aquele ar meio risonho, sarcástico, incitando a “boiada”: Vamo lá pessoal, uva itália por apenas um real o cacho, vamo lá gente, é Pacabá....O Pacabá entrava vertiginosamente nos ouvidos e todos se amontoavam. Era uva, pêra e cenoura baroa pra todo lado. As donas mais cheiinhas liderando, as mais magrinhas e tímidas, forjando uma educação pra lá de relativa, mas atordoadas por perderem a competição. E Carmem? Atrasada, decepcionada com a banca vazia, enquanto Lucinha balançava a cabeça horrorizada com a cena e dizia: já falei mãe, hoje não é dia de vir ao sacolão. Foi sempre assim; quando iam as duas, justamente, no Domingo, não aproveitavam o Pacabá, mas o resto dos ‘sacoleiros’ saíam orgulhosos da economia, de sacola cheia e cheios de esperança para o próximo Pacabá.

terça-feira, 4 de março de 2008

No bolo

Passamos olhamos não vemos
Tantos iguais diferentes
Uns dançantes outros parantes
Estátuas móveis móveis estátuas
Olhares harmônicos dissonantes
Serão ninguéns? Serão alguéns?
A objetiva mira registra
O existir frágil sem ágio
De sorriso largo apertado
Tantos iguais diferentes
Uns dançantes outros parantes
Serão ninguéns? Serão alguéns?

domingo, 2 de março de 2008

Aura

Para Walter Benjamin, “Aura” é tudo aquilo que por mais próximo que esteja permanece distante. É uma espécie de atmosfera que paira em torno de um objeto. Enfim, algo que se percebe, mas não se toca. Diz respeito ao intangível, intocável, sagrado, mágico. Esse conceito está ligado à obra de arte, à sua concepção como tal e como figurava em tempos passados.

Vive-se hoje em meio a um turbilhão de imagens, as quais os olhos humanos sequer conseguem codificar, quem dirá refletir, sentir, apreender. Será o triunfo ou o fracasso dos tempos modernos? Tal qual como a arte, nós, seres desse mundo, somos revestidos por uma “aura”. Os avanços da tecnologia permitiram fotografar a “aura” e definir um tipo de mapa energético que reflete o estado psíquico, e por que não dizer o espírito de uma pessoa. Ora, segundo o sentido dicionarizado, espírito pode ser humor, graça, imaginação, o que foge ao material.

Sendo a expressão da genialidade, da criação, o objeto de arte é parte da natureza humana, portanto, confunde-se com o ambiente coletivo, com a vivência e a cultura do indivíduo. Talvez fosse mais fácil entender a arte por meio da complexidade do homem. Da mesma forma que a arte, o homem é sacralizado, vira uma espécie de semi-deus, metade matéria, metade alma.

Quando a alma se perde, dando lugar ao predomínio do racional, perde-se a dimensão da percepção, os sentimentos tornam-se fracos, banais. Fazer uma ode à “aura” seria um passo para a humanização. Perceber o outro como original é cobri-lo de energia, aura. É o espaço da concessão e do respeito, como outrora eram vistas as pinturas e as esculturas.

O caso do relógio

Um dia desses, estava eu a caminhar pela rua;
Passou alguém por mim: quantas horas são?
Bruscamente levei o braço ao alcance dos olhos;
O pulso estava vazio;

É que outro dia desses, lancei as horas ao ar;
Perdi a máquina do tempo;
O tempo se fora com uma comemoração, num súbito menear de membros;
Desde então estive relutante;
Não quis mais possuir as horas;

Qual a razão do interlocutor?
Por que querer saber quantas horas?
Se horas nunca são,
Apenas se vão?

quarta-feira, 27 de fevereiro de 2008

Biquinho

Desde o dia em que experimentara a primeira vez gostara. Aquele ardor adocicado feito aperitivo, estalado e molhado a inundar toda boca. O biquinho vinha assim naturalmente como sinal de quero mais ou, então, em um ansioso apertar, para não perder o gosto. Foi quando surgiu a boa nova: Clarisse ia ter um pé em casa. Sua mãe havia preparado um canteiro bastante adubado, que já tinha dado alface e almeirão, verdes e macios. A couve é que nunca foi essas coisas; criava mofo antes de crescer, ficava ‘engruviada’ como dizia dona Ruth. Agora o pé de pimenta biquinho; esse fez história naquela casa e em outras também. As colheitas se sucediam após repetidas floradas; branquinhas e pequeninas, as florzinhas iam ficando graciosamente avermelhadas e atrevidas; faziam bicos de todos os tamanhos e foram parar na mesa de toda a família. Cada colheita para Ruth e Clarisse era como se fosse a última. Não era uma ‘biquinho’ qualquer, tinha ares de biquinho, mas personalidade de malagueta. Todos se encantaram com a pimenta biquinho de Ruth, e se encabulavam com uma produtividade tão duradoura; até que um dia o pé de biquinho começou a ‘engruviar’. Agora, todos esperam as pimentas dos brotinhos daquele primeiro pé; fazem encomendas e torcida para que o gosto seja doce e ardido, deliciosamente intrigante como das primeiras ‘biquinhos’.

sexta-feira, 22 de fevereiro de 2008

Pequeno ensaio sobre prosa e poesia

Para essa já repetida discussão me coloco, ou melhor, não me coloco. Se por vezes ouço falar de prosa e poesia me confundo sobre o estatuto do verso e dos parágrafos, e não julgo quem faz prosa poética ou poesia prosaica, se é que alguém já instituiu essa última categoria. Curiosamente, a poesia caberia na prosa e a prosa não caberia na poesia. Seriam compartimentos compatíveis e incompatíveis, matematicamente o contém e o não contém. Ora, poderíamos então dizer que a prosa é comum, vulgar, ordinária? E assim elevaríamos os poetas, como fazedores de combinações mágicas, surpreendentes? E o comum da fala, do prosear tão humano ficaria totalmente distanciado dos ditos metafóricos, das comparações inevitáveis, do sentimento que nomeia, do nome, que antes de tudo é um arremedo da razão sem razão? Vamos supor assim a prosa limpa, a poesia limpa; uma tentativa vã, porque até o silêncio é a poesia do nada e do tudo, é a prosa do não e do sim. O que diremos então dos gestos e dos ditos que anunciam e que silenciam? E das rimas do dia-a-dia, do acaso como “Bom Dia Maria!” E a poesia concreta que se legitima pelo vazio no papel, pela repetição, às vezes irritante dos zumbidos Tum, Tum, Tum, Tumumumumummmm????!!!! E onde ficam os diálogos, a imaginação algumas vezes dúbia, fruto do desejo, do sonho inevitável que preenche os vazios de poesia? Desse falar com o outro tão “prosaico”, calculado, e que de tão medido revela a si, em si o que se quer esconder? Impossível não pensar nas fronteiras, na delicadeza das fronteiras, no que elas têm de mais belo, porque são a tentativa mais humana e desumana de separar, de fazer compreender algo, para depois se desfazerem em sua fragilidade.

quinta-feira, 21 de fevereiro de 2008

Sexta Treze

Um pra cá, um pra lá... Dois pra cá, dois pra lá... Mais ou menos assim se deu o curioso encontro entre Lara e Juan. Tentavam dançar o forró nordestino, “amineirado” até demais. Tudo começou quando Larinha recusou conceder sua companhia, em princípio, nem tão dançante assim, a um aparentemente digno cavalheiro. Juanito ficou um tanto indignado com a recusa da moça. Então, propôs a ela dançarem, claro, depois que se beneficiasse de uma bebidinha, já que não tinha um tão bom julgamento de seus movimentos ritmados. Uma conversa um tanto inusitada, desprentesiosa, avolumou-se e a pista foi encolhendo cada vez mais. Lara e Juanito aprenderam a rodopiar feito pião.

Lara e Juanito dançavam um ritmo próprio, indefinido. Juanito era todo hormônios; Larinha, pensamentos e algumas provocações. A noite foi passando, o salão de corpos envolventes foi se esvaziando, e Juanito ansioso pelo desfecho. Chegou a hora de ir embora. Larinha e Juanito foram na frente; Terezinha, amiga de Larinha, no banco de trás do automóvel. Terezinha aportou. Larinha e Juanito seguiram, ou melhor, pararam em uma dessas ruas mal iluminadas. Aí começaram os amassos, mãos e pernas desordenados, algumas lutas, até que um grande clarão invadiu o espaço erótico-cômico; coisas da vida. Um “milita” parou rente ao vidro do condutor e solicitou a descida do vidro. Lá vinha a tal advertência, e pior, o constrangimento: “melhor vocês se dirigirem a um drive-in ou a um motel para namorar”. Juanito, antes todo tesão, teve que acomodar coisas, elogiar a ‘boa vontade’ do policial, mostrar os documentos. Graças a Deus, eles existiam.

Seguiram caminho em direção à casa de Larinha. Após o corte abrupto da cena, ficaram desanimados. Foi quando Juanito acabou de parar o carro, paralelo ao portão da moça. Pensou: já que estou aqui mesmo, melhor tentar um outro final. Iniciou-se a nova batalha. Juanito sempre abusado, Larinha recuando, recuando, até que deu a história por encerrada: olhou para fora e viu que a primeira luz do dia já se insinuava. - Melhor ir dormir! - Não...não, podemos ir para outro lugar..., sugeriu Juanito. Larinha pôs-se a descer do carro, quando Juanito fez a última pergunta: - Nunca estive por essas bandas, como faço para voltar? Larinha indicou o caminho. Juanito já sonolento e insatisfeito com o término da questão tomou a direção contrária e passou horas tentando chegar em casa. Chegou, dormiu um pouco e quando acordou lembrou-se da noite, do dia da semana, do número: treze. Coincidência ou não...conheceu Larinha naquele dia, pelejou a noite inteira, perdeu o caminho de volta para casa...Nunca mais viu Larinha.

quarta-feira, 20 de fevereiro de 2008

Foco invertido

Ei...? Onde você está? A frase se repetia sucessivas vezes; saía pela boca de Gusmão; produzia ecos sem resposta. Enquanto isto, Irene procurava desesperadamente aparecer no visor da máquina digital. Ela era uma bela mulher, nem tanto pelos atributos físicos, mas pelo olhar brilhante e a postura elegante. Ganhara a vida sempre às custas da imagem, tal qual Gusmão. O espaço para a imagem era razoável e o fotógrafo atuava, aparentemente, como recomendavam os manuais de qualquer máquina fotográfica: focalize o objeto com o visor, enquadre–o, reserve espaços relativamente equilibrados no entorno, clique! Irene fazia de tudo, mas cada vez que se colocava no foco sua imagem fugia para os lados, para baixo, para cima, e a angústia se espalhava pelo ambiente.

De repente, um susto: da lente da máquina projetava-se um olho de pálpebras estáticas, negro, sem cílios aparentes; insinuava-se por todos os cantos da máquina como um zoom extremamente flexível; um olho contorcionista procurava Irene. Ela custava entender o que acontecia. Será o olho de Gusmão? Nunca havia visto uma máquina assim...pensava ela. Até que resolveu mudar a tática: e se eu sair do foco? Mas para que lado eu vou? Qual o espaço desta sala estará ao alcance de Gusmão ou será o zoom que me fotografa? – Gusmão? – Sim Irene? – Segure a máquina em uma única posição...vou percorrer todo espaço; enquanto isso veja se eu apareço no visor. – Combinado, respondeu Gusmão, meio incrédulo do sucesso da tentativa da moça.

Irene mapeou o espaço e chegou à conclusão que não poderia esgotar todas as possibilidades, a menos que pudesse voar pela sala, ocupar toda aquela atmosfera. Então começou pelo chão mesmo, mas nunca sabia o quanto deveria de deslocar. Havia também uns móveis, que sofregamente ela afastava para que não houvesse sequer algum lugar em que ela não tivesse se posicionado. – Gusmão? – E aí? – Apareço no visor? – Não Irene...nada...A tensão aumentava, até que Irene, já exausta, foi em direção a ele. – Deixe-me ver se consigo fotografar você. Irene pegou a máquina, colocou-a na altura do rosto Gusmão, clicou; olhou o visor e ficou aterrorizada com o que viu: Era a imagem dela mesma; Irene de sorriso largo, de contornos precisos, o entorno equilibrado...Gusmão não aparecia no visor! Desde aquele dia, o fotógrafo nunca mais conseguiu fotografar, nem a modelo Irene foi fotografada, salvo algumas vezes quando ousou tentar focar alguém.