quarta-feira, 27 de fevereiro de 2008

Biquinho

Desde o dia em que experimentara a primeira vez gostara. Aquele ardor adocicado feito aperitivo, estalado e molhado a inundar toda boca. O biquinho vinha assim naturalmente como sinal de quero mais ou, então, em um ansioso apertar, para não perder o gosto. Foi quando surgiu a boa nova: Clarisse ia ter um pé em casa. Sua mãe havia preparado um canteiro bastante adubado, que já tinha dado alface e almeirão, verdes e macios. A couve é que nunca foi essas coisas; criava mofo antes de crescer, ficava ‘engruviada’ como dizia dona Ruth. Agora o pé de pimenta biquinho; esse fez história naquela casa e em outras também. As colheitas se sucediam após repetidas floradas; branquinhas e pequeninas, as florzinhas iam ficando graciosamente avermelhadas e atrevidas; faziam bicos de todos os tamanhos e foram parar na mesa de toda a família. Cada colheita para Ruth e Clarisse era como se fosse a última. Não era uma ‘biquinho’ qualquer, tinha ares de biquinho, mas personalidade de malagueta. Todos se encantaram com a pimenta biquinho de Ruth, e se encabulavam com uma produtividade tão duradoura; até que um dia o pé de biquinho começou a ‘engruviar’. Agora, todos esperam as pimentas dos brotinhos daquele primeiro pé; fazem encomendas e torcida para que o gosto seja doce e ardido, deliciosamente intrigante como das primeiras ‘biquinhos’.

sexta-feira, 22 de fevereiro de 2008

Pequeno ensaio sobre prosa e poesia

Para essa já repetida discussão me coloco, ou melhor, não me coloco. Se por vezes ouço falar de prosa e poesia me confundo sobre o estatuto do verso e dos parágrafos, e não julgo quem faz prosa poética ou poesia prosaica, se é que alguém já instituiu essa última categoria. Curiosamente, a poesia caberia na prosa e a prosa não caberia na poesia. Seriam compartimentos compatíveis e incompatíveis, matematicamente o contém e o não contém. Ora, poderíamos então dizer que a prosa é comum, vulgar, ordinária? E assim elevaríamos os poetas, como fazedores de combinações mágicas, surpreendentes? E o comum da fala, do prosear tão humano ficaria totalmente distanciado dos ditos metafóricos, das comparações inevitáveis, do sentimento que nomeia, do nome, que antes de tudo é um arremedo da razão sem razão? Vamos supor assim a prosa limpa, a poesia limpa; uma tentativa vã, porque até o silêncio é a poesia do nada e do tudo, é a prosa do não e do sim. O que diremos então dos gestos e dos ditos que anunciam e que silenciam? E das rimas do dia-a-dia, do acaso como “Bom Dia Maria!” E a poesia concreta que se legitima pelo vazio no papel, pela repetição, às vezes irritante dos zumbidos Tum, Tum, Tum, Tumumumumummmm????!!!! E onde ficam os diálogos, a imaginação algumas vezes dúbia, fruto do desejo, do sonho inevitável que preenche os vazios de poesia? Desse falar com o outro tão “prosaico”, calculado, e que de tão medido revela a si, em si o que se quer esconder? Impossível não pensar nas fronteiras, na delicadeza das fronteiras, no que elas têm de mais belo, porque são a tentativa mais humana e desumana de separar, de fazer compreender algo, para depois se desfazerem em sua fragilidade.

quinta-feira, 21 de fevereiro de 2008

Sexta Treze

Um pra cá, um pra lá... Dois pra cá, dois pra lá... Mais ou menos assim se deu o curioso encontro entre Lara e Juan. Tentavam dançar o forró nordestino, “amineirado” até demais. Tudo começou quando Larinha recusou conceder sua companhia, em princípio, nem tão dançante assim, a um aparentemente digno cavalheiro. Juanito ficou um tanto indignado com a recusa da moça. Então, propôs a ela dançarem, claro, depois que se beneficiasse de uma bebidinha, já que não tinha um tão bom julgamento de seus movimentos ritmados. Uma conversa um tanto inusitada, desprentesiosa, avolumou-se e a pista foi encolhendo cada vez mais. Lara e Juanito aprenderam a rodopiar feito pião.

Lara e Juanito dançavam um ritmo próprio, indefinido. Juanito era todo hormônios; Larinha, pensamentos e algumas provocações. A noite foi passando, o salão de corpos envolventes foi se esvaziando, e Juanito ansioso pelo desfecho. Chegou a hora de ir embora. Larinha e Juanito foram na frente; Terezinha, amiga de Larinha, no banco de trás do automóvel. Terezinha aportou. Larinha e Juanito seguiram, ou melhor, pararam em uma dessas ruas mal iluminadas. Aí começaram os amassos, mãos e pernas desordenados, algumas lutas, até que um grande clarão invadiu o espaço erótico-cômico; coisas da vida. Um “milita” parou rente ao vidro do condutor e solicitou a descida do vidro. Lá vinha a tal advertência, e pior, o constrangimento: “melhor vocês se dirigirem a um drive-in ou a um motel para namorar”. Juanito, antes todo tesão, teve que acomodar coisas, elogiar a ‘boa vontade’ do policial, mostrar os documentos. Graças a Deus, eles existiam.

Seguiram caminho em direção à casa de Larinha. Após o corte abrupto da cena, ficaram desanimados. Foi quando Juanito acabou de parar o carro, paralelo ao portão da moça. Pensou: já que estou aqui mesmo, melhor tentar um outro final. Iniciou-se a nova batalha. Juanito sempre abusado, Larinha recuando, recuando, até que deu a história por encerrada: olhou para fora e viu que a primeira luz do dia já se insinuava. - Melhor ir dormir! - Não...não, podemos ir para outro lugar..., sugeriu Juanito. Larinha pôs-se a descer do carro, quando Juanito fez a última pergunta: - Nunca estive por essas bandas, como faço para voltar? Larinha indicou o caminho. Juanito já sonolento e insatisfeito com o término da questão tomou a direção contrária e passou horas tentando chegar em casa. Chegou, dormiu um pouco e quando acordou lembrou-se da noite, do dia da semana, do número: treze. Coincidência ou não...conheceu Larinha naquele dia, pelejou a noite inteira, perdeu o caminho de volta para casa...Nunca mais viu Larinha.

quarta-feira, 20 de fevereiro de 2008

Foco invertido

Ei...? Onde você está? A frase se repetia sucessivas vezes; saía pela boca de Gusmão; produzia ecos sem resposta. Enquanto isto, Irene procurava desesperadamente aparecer no visor da máquina digital. Ela era uma bela mulher, nem tanto pelos atributos físicos, mas pelo olhar brilhante e a postura elegante. Ganhara a vida sempre às custas da imagem, tal qual Gusmão. O espaço para a imagem era razoável e o fotógrafo atuava, aparentemente, como recomendavam os manuais de qualquer máquina fotográfica: focalize o objeto com o visor, enquadre–o, reserve espaços relativamente equilibrados no entorno, clique! Irene fazia de tudo, mas cada vez que se colocava no foco sua imagem fugia para os lados, para baixo, para cima, e a angústia se espalhava pelo ambiente.

De repente, um susto: da lente da máquina projetava-se um olho de pálpebras estáticas, negro, sem cílios aparentes; insinuava-se por todos os cantos da máquina como um zoom extremamente flexível; um olho contorcionista procurava Irene. Ela custava entender o que acontecia. Será o olho de Gusmão? Nunca havia visto uma máquina assim...pensava ela. Até que resolveu mudar a tática: e se eu sair do foco? Mas para que lado eu vou? Qual o espaço desta sala estará ao alcance de Gusmão ou será o zoom que me fotografa? – Gusmão? – Sim Irene? – Segure a máquina em uma única posição...vou percorrer todo espaço; enquanto isso veja se eu apareço no visor. – Combinado, respondeu Gusmão, meio incrédulo do sucesso da tentativa da moça.

Irene mapeou o espaço e chegou à conclusão que não poderia esgotar todas as possibilidades, a menos que pudesse voar pela sala, ocupar toda aquela atmosfera. Então começou pelo chão mesmo, mas nunca sabia o quanto deveria de deslocar. Havia também uns móveis, que sofregamente ela afastava para que não houvesse sequer algum lugar em que ela não tivesse se posicionado. – Gusmão? – E aí? – Apareço no visor? – Não Irene...nada...A tensão aumentava, até que Irene, já exausta, foi em direção a ele. – Deixe-me ver se consigo fotografar você. Irene pegou a máquina, colocou-a na altura do rosto Gusmão, clicou; olhou o visor e ficou aterrorizada com o que viu: Era a imagem dela mesma; Irene de sorriso largo, de contornos precisos, o entorno equilibrado...Gusmão não aparecia no visor! Desde aquele dia, o fotógrafo nunca mais conseguiu fotografar, nem a modelo Irene foi fotografada, salvo algumas vezes quando ousou tentar focar alguém.

segunda-feira, 18 de fevereiro de 2008

A casa da novena

Era um quadrado a casa da novena. Quatro lados iguais, nem um milímetro a menos, nem a mais. Duas janelas caindo na rua, portão lateral e fronte alta. Iam lá quatro senhoras todas as tardes, quase ao sair do crepúsculo. Levavam terço na mão e fôlego para quase centena de Ave Marias, Pai Nossos, Salve Rainhas e Glórias ao Pai no estilo mais católico. As irmãs Dora, Flora e Aurora sempre de vestidinhos floridos, colo e joelhos bem protegidos, eram convictas de sua missão junto a Deus Pai todo poderoso. Acreditavam no poder da reza e achavam mesmo que quanto mais numerosa a ladainha mais graças viriam. Marieta, prima meio desgarrada, aderira à novena fazia poucas semanas. Não descuidava de exibir seu colo amplo, mamas insinuantes e pedaços das pernas, nem na casa da novena. Aderira também a centros espíritas de mesa, umbanda, seitas, cartomantes, beberagens de ervas, Jesus cristos ressuscitados e pastores empresários. Tinha todos os motivos possíveis. Ia mal de dinheiro, de amor. As irmãs carolas a olhavam com compaixão, como se fosse uma ovelha recém recuperada, com vícios ainda vivos e desejos nada nobres, beirando o pecado. Mas a aceitavam mesmo assim, para fortificar a reza e chegar mais alto aos ouvidos de Deus Pai todo poderoso.

quinta-feira, 14 de fevereiro de 2008

Mar vermelho na TV

Focinho comprido vivia num mar de rosas. Acompanhava sua mamãe desde o nascimento junto com um bando de outros pequenos e outras mães. Davam cambalhotas no ar, tudo sincronizado; cantavam música “quebradinha”, com ritmo de conversa interrompida pela água. Um dia desses o mar se anuviou e Focinho Comprido não viu mais sua mãe. Só lá fora do mundo de água, onde ele puxava o ar, ela foi vista. Estava suspensa a pouca distância do barco de homens de olhos puxados. Um arpão atravessava seu corpo generoso e flexível; saía muito sangue. Sua dança não era mais a de poucos momentos atrás; era um contorcionismo incômodo, uma fuga daquele objeto intruso, daqueles seres do mundo de ar. Os olhos puxados tentavam se esconder da lente da câmera; queriam que o sangue da mãe de Focinho Comprido não fosse vermelho. Não houve como disfarçar: a mancha púrpura concentrada estava lá naquele pedaço do mundo de água logo abaixo dela, e Focinho Comprido não cantava mais música de sorriso na água; ficou com medo do mundo de ar. Homens do mundo de ar com olhos de todos os formatos viram o mar vermelho na TV.

quarta-feira, 13 de fevereiro de 2008

Poeminha do não

Não estava lá
Não era aquele o lugar
Não! Não era não!
Era tanto não
Não!
Olho de não
Forma de não
Brilho de não
Imóvel não
Redondo não
Abrir de boca
Circular ão, ou não?
Direita
Esquerda
Retão do não
Sem fim do não
Largo não
Imprecisão
Sem dizer não
Estava não
Sintético não
Droga de não!
Por que não?

Pontos nas pontas

Estava ali sob seus olhos
Acabara de encontrar
Nas pontas dos dedos

Pele, pêlos, temperatura
Tudo ali
Nas voltas
Nos caminhos sem volta
Nas pontas dos dedos

Os tum-tuns do peito
As pernas de caminhar vacilante
O engolir da saliva
A boca
Nas pontas dos dedos

O ar do respiro
O diafragma tenso
O ressonar turbulento
O giro dos caracóis
Nas pontas dos dedos

Quem diria
Que caberia
Tanta coisa naqueles pequeninos coxins
Dendritos da alma

Quem suporia
Pudessem lembrar
Cada textura
Cada burburinho
E movimento de testa
Ah! As pontas dos dedos!

Ficaram todos
Escultura viva
Escritos
Eternizados
Pontos indeléveis nas pontas dos dedos

terça-feira, 12 de fevereiro de 2008

Picos

Há alguns anos a família Silveira fez uma longa viagem para o Sul. Não foi a única, mas, sem dúvida, uma das mais memoráveis. Na melhor das hipóteses, o percurso levaria cerca de trinta e seis horas de ônibus. Como o destino era de uma estadia de cerca de seis meses a um ano, as bagagens eram significativas; quase todos os objetos pessoais e roupas iam nelas. Os ‘baldeamentos’ eram freqüentes, entretanto, um deles, o da Rodoviária de Picos, marcou mais. Picos era uma cidadezinha mais ou menos próspera do Piauí, se é que se pode falar em prosperidade naqueles lados do sertão. No entorno da cidade havia muitas palmeiras do tipo babaçu, que além da palha rendia um óleo bastante valorizado. Mas para Dona Iolanda, a matriarca do clã, pouco importavam os babaçus e seu destaque na região. Quando aportavam, o que interessava mesmo era desembarcar as pesadas malas.

Enquanto isso, chegavam outros ônibus, como o da viação Princesa do Agreste, vindo de Crato, interior do Ceará. Para surpresa de Iolanda, a mala principal, que trazia todos seus pertences, não estava lá. Começou então a choramingar: - Tudo estava lá; os presentes da minha nora, minhas melhores roupas. Os olhos grandes marejados e os dedinhos grossos pequeninos calejados pela face. Quem escutava tudo atento era seu Turíbio, já matutando sobre quais providências iria tomar. Primeiro, acreditaram piamente que a mala havia sido roubada, e foi com muito custo que cogitaram a possibilidade de que ao esquecimento poderia ter se seguido uma ‘boa alma guardadeira’, lá mesmo em Floriano, de onde partiram.

Em meio a toda confusão, desciam várias pessoas de todas as bandas nordestinas, entre eles Felisberto, figura bastante típica, de fronte e nuca abauladas, e conversa bem esticada. Era um cearense cratense bastante conversador, mas seu forte mesmo era a paquera. Fixou-se imediatamente em Mariazinha, a caçula dos Silveira. Falava qualquer coisa, desde “o ônibus está demorando a chegar, a sair”, até o natural “o tempo está quente”, e lançava olhares namoradeiros e sorriso largo. E Mariazinha? Nada de ceder aos seus gracejos.

Enquanto isso, seu Tu se dirigia à direção da rodoviária, com o intuito de descobrir o que realmente havia acontecido. Seguiu magrinho, de andar tombado, meio desequilibrado, envergando-se. Foi então que soube da boa notícia: alguém em Floriano havia guardado a mala de Dona Ió. Assim, tudo se acalmou. O número de bagagens nessas paragens do sertão nordestino era sempre um exagero; elas se amontoavam de tal forma umas sobre as outras, que esquecê-las e extraviarem era mais que esperado. Somava-se a isso, os inúmeros vendedores ambulantes de todos os tipos, aos gritos de ‘castanha de caju’, ‘doce de buriti’,‘umbu’...

Aliviados com a informação sobre o paradeiro da bagagem, os Silveira embarcaram. Marieta, outra filha, essa mais velha, foi tomada de súbito por enjôo incontrolável que perduraria toda a viagem. Passou quase todo o trajeto pendente na janela, tentando expulsar os corpos alimentícios que nem existiam mais. Mariazinha sofreu novo assédio, desta vez de Ariovaldo, moço ruivo, gordinho e também gracejador. Ari beijaria Mariazinha se ela aceitasse até o seu último destino, onde teria que desembarcar malas, geladeira, TV...presentes para sua mãe. Ele passou horas sobre a poltrona da frente olhando para Mariazinha e falava sem parar. Para variar, a moça não fez bom julgamento do moço. Achou Ari feio e bobo. Resultado: não deu a mínima para ele; não por falta de incentivo de dona Ió que dizia: - Firma namoro minha filha...desse jeito vai terminar sozinha...

Nesse ônibus teve até casal que se conheceu na viagem e que não se largava por nada. Nas paradas levantavam meio preguiçosos de boca inchada e vermelha. A comida, que vinha em marmitas e até em sacos plásticos, era o ‘frito’, espécie de farofa com carne de frango ou carne seca bem fritos que inchavam no estômago. Alguns desciam nas paradas, tomavam aquele banho fresquinho para aliviar o calor inclemente, e voltavam de sorriso aberto a pentear os cabelos que respingavam. Iam também crianças choronas, em tempo de fraldas, e o cheiro do banheiro não era nada convidativo. Alguns iam com as pernas intumescidas pela longa viagem. Mas todos seguiam cantantes e falantes, numa animação de dar gosto; e a ‘floresta de mandacarus’ lá fora margeando os viajantes. Em Picos, tudo eram Picos: picos de gente, picos de bagagem, picos de enjôos, picos do gritos, picos de galanteios, picos de beijos....

domingo, 10 de fevereiro de 2008

As gavetas de Dalí

“O corpo humano neo-platônico, puro na época dos gregos, está hoje repleto de gavetas secretas que somente a psicanálise pode abrir”. Deparei-me com esses dizeres há algum tempo, registrados em um folheto que convidava profissionais e estudantes a participarem da XVII Jornada de Estudos Psicanalíticos. Contudo, a ilustração do folder, uma obra do pintor surrealista Salvador Dalí, puxou meus olhos empacados de suas órbitas.

A pintura de Dalí centrava-se na figura de uma mulher longilínea e oscilante. Apesar de disforme, seu corpo era incrivelmente sensual e sua cabeça quase alcançava o céu. Sua face parecia um esboço de argila, cor de terra, e os traços somente se insinuavam. O equilíbrio frágil só se dava graças a aparatos de sustentação ligados por espécies de forquilhas que a mantinham de pé. A tal “Dalila”, com licença do Dalí, estava coberta por um vestido azul transparente que deixava ver nuances do corpo. Os seios apontavam para o céu e a cintura quase se rompia de tão fina. Seus longos braços pareciam buscar um abraço e a ponta do queixo voltava-se para cima como se procurasse um pedaço de azul, ou quem sabe um objeto perdido. Ao longo de sua coxa carnuda abriam-se várias gavetas e logo abaixo de suas altivas glândulas mamárias, na altura do diafragma, saía uma gaveta maior. O curioso é que esses compartimentos não continham nada visível.

Certa vez escrevi sobre gavetas. Talvez por isso a figura tenha me impressionado tanto. Na ocasião, eu falava sobre datas, lembranças e gavetas na mente. Então, ao ver a intrigante mulher, percebi que cometia simplificações. Meus incipientes escritos não tinham nada de original. A Dalila que pensei era a de Sansão. Tinha caprichos demais; fazia suposições e ousava delimitar os sentimentos. Era reta, avessa às contradições. A “Dalila” de Dalí me mostrou que gavetas estão por toda parte, dilacerando epiderme, músculos e coração.

terça-feira, 5 de fevereiro de 2008

Interessada e Modesto

Modesto passava horas em frente à televisão, assistindo novelas e futebol. Lucimara não suportava mais a "paredeza" e sua "falta de interesse" por tudo. O casal se conheceu em um desses barzinhos com música ao vivo. Começaram o flerte, a conversa, os amassos, até que decidiram dormir juntos. Desto se mudou definitivamente para a casa de Luci. Ela achava mesmo que Modesto era o pior que ela conhecera em se tratando de homens, mas com o tempo as coisas foram se ajeitando, e a apatia do companheiro acabou por se tornar um desafio para ela. Tudo parecia entrar nos eixos. E após seu casamento fracassado, Lucimara achava mesmo que devia ter modéstia.

Mulher esbelta, de corpo rijo, bem torneado, falante e "interessada", Lucimara começou a desenvolver uma antipatia incontrolável por Modesto. Era sempre assim: chegava em casa depois de um cansativo dia de trabalho e encontrava o homem lá, estirado no sofá, absorto na telinha, nas tramas novelescas e naqueles homens chutando bola. - Vamos ao teatro? - ela perguntava. Modesto não movia sequer uma parte do corpo, só levantava suavemente as pálpebras, indeciso, desanimado.

– Eu faço tantas coisas, dizia certa vez Luci a sua amiga Consola. Iam juntas no coletivo lotado e Lucimara desabafava. – Já falei com ele para juntar as coisas, não agüento mais aquele homem parado; e todas pessoas no ônibus atentas à história. – O casamento serviu de lição para mim, argumentava Luci. Consola quase sempre calada, com movimentos de face alternados, assertivos e negativos. Quando falava, era com voz baixa, mas a despeito do nome Consola, não tentava consolar a amiga. Luci falava alto, com rigores nas descrições. – Outro dia desses cheguei em casa, fiz jantar, pintei cerâmica, faço tudo e Modesto parado.

Lucimara queria que Modesto fosse um homem engajado, afeto às atrações culturais de toda sorte, mas que, principalmente, a acompanhasse. Os dias de Desto na casa de Luci estavam contados. – Já falei tudo isto com ele, mas ele fica parado, não reage. Hoje ligou para mim: - Luci, meu amor, está com raiva de mim? – Não acreditei na coragem dele...ele não entende...- Acredita Consola? É um cara estranho...ninguém liga para ele e o convida para tomar uma cerveja...coisa estranha, não tem amigos...bem que eu notei desde o início...nunca se interessava por nada...nem sexo sabia fazer....mas ajudei e ele foi melhorando...agora não dá mais...não agüento mais! Consola se despediu e desceu antes da amiga. Luci seguia e pensava...Estava no limite de sua modéstia; os dias estavam contados.

Recém conhecido

Só ontem soube de uma versão mais completa da história. Tratava-se de um garoto assassinado na última terça-feira no meu bairro, morador da minha rua. O acontecimento chegou-me aos ouvidos de variadas formas.

A primeira versão foi da minha mãe: “foi morto próximo ao mercado e parece, por drogas”. Aquela velha história de gente marcada para morrer nos tempos modernos por consumo ou venda de anestésicos alucinógenos. O fato é: passamos um bom tempo discutindo sobre quem seria o garoto, se da terceira ou da sexta casa na seqüência da nossa.

Ficamos sinceramente indignadas com o fato, mas com muitas dúvidas sobre a veracidade das informações, quando veio a segunda versão: “Tinha 19 anos, retornava do cursinho pré-vestibular e teria sido arrancado do ônibus e morto nas proximidades do mercado; levou um tiro na cabeça e morreu na hora.”

Tudo levava a crer que o rapaz poderia estar envolvido com devaneios ilícitos, embora o pai tivesse afirmado que o menino era pacato, ficava horas em frente ao computador, estudava para o vestibular de medicina e nos fins de semana ia ao shopping.

Hoje pela manhã meu tio nos contou a última versão, que sempre soa como a mais verdadeira: “realmente era estudante de cursinho, levou um tiro ao descer do ônibus depois de andar uns vinte metros na rua salinas, perpendicular à rua do mercado”. De fato era um menino estudioso e tranqüilo, afeto mais aos devaneios naturais...foi abordado e atiraram nele, supostamente por motivo de fuga ou por não possuir nenhuma moeda de troca pela vida.

Minha mãe chegou a escutar um choro na terça à noite, mas não sabia bem de onde vinha. Era da terceira casa depois da nossa. Ninguém lá em casa se lembrava de ter visto o menino; somente duas moças. O menino havia nascido depois. Parece que não andava muito à pé. A mãe, provavelmente, está se culpando de não tê-lo buscado no cursinho, justo naquele dia, já que isto era uma rotina. E nós cada vez mais envolvidos nas nossas rotinas. Enfim: só conhecemos o garoto esses dias, protagonista de uma história trágica, vítima de um final incompreensível.

Ossinhos

Resolveram fazer a reforma do túmulo da família. Desde o primeiro óbito, o inaugural, a construção pós-mortem tinha recebido uma substituição parca de reboco para não ruir de vez. Essa tal reconstituição não foi das mais bem sucedidas. Ocorreu por iniciativa de um familiar agregado, que tomou as mínimas providências e mandou a conta para os titulares dos falecidos.
O "rebu" se formou. A atitude parecia nobre, mas mandar a conta assim... Foi então que, nos últimos dias, três homens da família Ferreira Alves se puseram a encaminhar o projeto de forma mais efetiva.

Realizaram então uma visita de campo e verificaram que a tumba não estava nada boa; quase um descaso com seus entes de outrora, bem ou mal queridos. Havia rachaduras e ervas daninhas por todos os lados, embrenhando -se pelas frestas e tornando-as ainda mais evidentes. É verdade que os "de cujos" já estavam do outro lado mesmo e embora não soubessem, de fato, que destino esperava os mortos, achavam de "bom tom" fazer o trabalho, já que a eminência do dia final era sempre presente. Além disso, como os executores da empreitada eram os Ferreira Alves mais velhos do clã, talvez já estivessem preparando o seu leito do lado de lá.

Saudades a parte, os falecidos não haviam auferido lucros aos familiares, salvo uma irmã que deixou um apartamento não quitado e umas pequenas economias. Mas ainda assim foram depositados no Cemitério da Saudade e tinham sim admiradores do lado de cá. Lá foram então os Ferreira Alves tratar da questão com a administração da Casa dos Mortos. A reforma era por conta da casa, considerados, é claro, os gostos e as posses dos proprietários.

Deu-se então a segunda vistoria, a da retirada dos restos mortais para verificação da melhor forma de acomodá-los. A idéia era suprimir aquele velho ritual de sete palmos sob a terra por uma "civilizada" urna. Dessa maneira, diriam alguns: "assim ficarão menos sufocados, os pobrezinhos."


De volta ao ar livre, os restos causaram certa decepção e espanto aos espectadores. Havia apenas uns pequenos ossinhos carcomidos, mínimos. Couberam todos, as três pessoas numa pequena caixinha. Ferreira Alves, o primogênito, passou a semana toda incucado com o fim desastroso que havia se abatido sobre os seus. Olhava para as pernas, mais precisamente para a coxa direita e não entendia como o fêmur, um osso tão grande e forte, um dos sustentáculos mais nobres do corpo humano podia ter se reduzido tanto...Tinha ficado pequenino, escuro, prestes a não existir mais.

Acertos

Luzia já estava no limite de sua benevolência. O velho decrépito não ia mais ao banheiro, não se alimentava sozinho e ainda dava uns urros, sua mais nova aquisição lingüística após o último acidente vascular cerebral. Além disso, era vítima do esquecimento, até dos pequenos gestos mais cotidianos. A esposa de Constantino, dona Amélia, também já acometida pela fraqueza óssea, tinha um andar vagaroso, um pescoço sempre pendendo para o lado esquerdo devido às tortuosidades da coluna cervical e reflexos das outras. Ainda assim, ia ao mercado quase todos os dias fazer as compras da casa, sempre caminhando pelo meio fio para evitar as irregularidades dos passeios. Levava sempre a sacola riscada pendurada em um dos braços e uns óculos de lente espessa no rosto.

Os dois velhos moravam sozinhos. O último filho solteiro, taxista, foi trabalhar em outra cidade e deixou a incumbência ao irmão Augusto: gerenciar a vida dos velhos. Foi aí que Luzia completou a cena. Ela era o que se podia chamar faz tudo, inclusive arrumação de babadores, troca de fraldas e muleta ambulante de seu Constantino. Dona Amélia não dava conta mais de cuidar do marido e eram freqüentes os gritos estridentes que vertia sobre ele cada vez que ele tentava se levantar da cama ou da cadeira de rodas. Dizia-se na vizinhança que Amélia batia no velho e, de fato, ouviam-se uns sons altos e secos, parecendo socos e, é claro, os berros. Todos ficavam imaginando, compadecidos da judiação. A verdade é que ninguém compreendia muito bem como a velha Amélia, tão debilitada, podia fazer isto com Constantino. A “tortura”, geralmente, acontecia à tarde, e naquelas mais modorrentas a sensação era de sufoco, tamanhos os grunhidos que escapavam corridos e abafados.

A rotina seguia sempre assim: compras para casa em todos os supermercados da redondeza, lidas na casa silenciosa, salvo os ‘bate-bocas’ entre o casal. Foi quando chegou Luzia, um alento para Amélia, que mal se ajeitava sobre as pernas e tinha que fazer de um tudo. Os dias foram se passando e os vizinhos passaram a não ouvir mais as tragédias pós-matinais. Até que em um dia desses de inverno seco, Constantino contraiu uma forte gripe e precisou ir ao médico. Dona Amélia ligou para Augusto e pediu que ele levasse o pai. O filho chegou, fez o custoso deslocamento do pai até o carro, depois de descerem alguns degraus, que pareciam infinitos dada a dificuldade da manobra. Enquanto isso Luzia matutava: os velhos não têm dinheiro mesmo; a aposentadoria do velho mal dá para o aluguel e as despesas da casa...e afinal de contas, o filho é quem ficou responsável por acertar as contas comigo. O combinado era o pagamento por dia, que nunca vinha.

Assim que Augusto chegou e acomodou o dono da casa, Luzia pôs-se a fazer a cobrança. – Augusto, vocês me devem sete dias. – Não posso...hoje não posso pagar....- Mas como? - Vou pagar, mas hoje não posso...Luzia começou a alterar a voz, Augusto também. Iam em direção ao corredor de entrada do predinho como que anunciando a discórdia. - Preciso do dinheiro, retrucava Luzia. - Hoje não posso, pago no final do mês...batia o pé Augusto. Até que Luzia lançou seu doloroso impropério: e eu vou ficar limpando bosta de velho sem ganhar nada? A discussão durou cerca de duas horas seguidas e alternava-se entre Luzia e Augusto, Augusto e a mãe, a mãe e o filho. Nem um dos três se entendiam; as mágoas aflorando. E Constantino lá, feito criança, mal sabendo das sombras de corpos e de vozes...De vez em quando, vinha uma parca lembrança do tempo em que saía para a farra, bebericava, pitava seu cigarrinho, enquanto Amélia arrependia-se dia após dia do ajuntamento. Constantino sempre distante envolvido com tudo menos com ela. Antes na rua, nos festejos solenes e reclusos; hoje na fragilidade insistente e nos devaneios sem nexo.