sexta-feira, 28 de março de 2008

Viúva Ambrósia

Sol com chuva; casamento de viúva...Sol com chuva; casamento de viúva...Esse rifão mais parecido com uma cantinela, ciranda de gente grande, acompanhou toda a infância e adolescência de Carmem. Nunca houvera em toda a história dos tempos modernos uma família de tantas tias viúvas, como a de Carmem. Mas eram viúvas recidivas; enviuvavam, casavam, enviuvavam, casavam...Em uma delas, Ambrósia do Carmo, a viuvez parecia cármica. Já estava na quarta, mas não desistia nunca e confiava piamente no rifão gasto, mas certeiro do sol com chuva. A viúva era mesmo um manjar dos deuses aos olhos dos moçoilos de todas as idades e jeitos. Andava gingado, sempre de saias no joelho bem justas ou vestidinhos floridos, que sorriam junto com seu rebolar. O primeiro marido foi ajuntamento de conveniência, coisa de ‘desejos’ da família. Contraiu doença grave, irremediável, morreu. Ambrósia nem sentiu tanto. O segundo marido conhecera em um dia de finais de março, quando o sol teima em não se despedir e a chuva se intromete copiosa, exagerada. Nesses tempos de antagonismo harmonioso é que Ambrósia conheceu Adalberto. Tudo por culpa de uma carona de guarda-chuva e um roçar de braços adoráveis, a que eles se refeririam mais tarde como “sem malícias”. Adalberto como não poderia deixar de ser, morreu de solicitude junto com um ceguinho, a quem atrapalhadamente tentava dar os braços para atravessar a rua. Um carro virou à toda e não houve salvação. O terceiro, contrariando o rifão, veio em um dia de verão sem chuva mesmo, na sorveteria do Seu Amaro, numa paquera desenfreada, com lambidas insinuantes e uma aproximação cremosa, açucarada. As altas taxas de açúcar no sangue, potencializadas pelos sucessivos encontros para tomar sorvete, acabaram por levar Roque para o lado de lá. Os casamentos de Ambrósia, não se sabe o porquê, duravam pouco; assemelhavam-se a tramas novelescas de início e final marcado. O quarto esposo então; esse deu ao rifão todas as odes. Chamava-se Último o último. Casaram-se em um dia coroado de pingos de ouro de um dia 28 de março. Mas Ambrósia tinha medo mesmo era do nome Último, porque pelas estatísticas dos seus casamentos, a chance de encontrar um amor em dia de sol com chuva era mesmo grande, e nesses dias ela se esforçava mais nos caprichos da conquista. A sobrinha Carmem, já muito adiante da idade esperada de se casar, passava horas conversando com Tia Ambrósia. Quem sabe não pegava sua forma de ser e se livrava de inaugurar uma nova era na família, a das solteironas. E quem sabe o rifão Sol com Chuva não podia também ajudar no seu caso.

terça-feira, 25 de março de 2008

Brumas e Bruxas

Lembranças, às vezes, nenhumas;
Às vezes, algumas;
Ânsias;
Intrusas;
Sem tempo;
A qualquer tempo;
Lembrumas;
Do que se foi, saudades;
E não foi;
Enganos na mente;
Falhas;
Rasuras;
Rasas;
Profundas;
Por vezes, realidades;
Ficcionalidades;
Lembruxas.

quarta-feira, 19 de março de 2008

Sonora Amargura

Tudo começou de madrugada, logo depois da ingestão forçada de uma imensa cápsula de tetraciclina. Lara nunca entendera o motivo de cápsulas tão gigantescas para cobrir uma quantidade ínfima de pó; só mesmo para agarrar na garganta, no esôfago e dar aquela sensação ilusória de que tamanho remédio, tamanha cura. O sono vinha, ela dormia. O sono ia, ela sentia aquela tetra volumosa, inconveniente, que não deslizava nem a poder de reza.

Finalmente aproximava-se as seis da manhã. Foi ao quarto da mãe se queixar da noite terrível, do estômago, enrolada no lençol e com travesseiro na mão. A mãe a olhou com a aquela cara de quem já conhecia a cena. ‘Lá vem essa menina...meu Deus o que será...ou vem por insônia ou dor...é sempre assim.’ - “Que que é Lara?” – “Passei uma noite de cão, tô passando muito mal, é o estômago; desse jeito como vou passar o dia, resolver tudo que preciso hoje? A cada ‘drama’ exposto um movimento doloroso na boca do estômago. – “Espera aí...vou preparar um chá de boldo.” Mãe é uma maravilha, e de filha dramática então, muito mais.

Veio então o famoso chá morninho, carregado pelas mãos solicitas de Rute. Adentrou o quarto e encontrou Lara sentada na beirada da cama com a costumeira cara de desespero; não pôde conter as gargalhadas. Enquanto isso, Lara esbravejava contra o sorriso fácil da mãe em face de tamanha tragédia. Pegou o copo e começou a engolir aos poucos. Não era nada fácil, os goles queimavam a cada escorregadela goela abaixo. Aquela amargura escorrendo e Lara cada vez mais amargurada. E Rute tranqüila, sempre crédula dos poderes mágicos do boldo; eles nunca falharam; não seria desta vez. E não foi mesmo. O estômago de Lara permaneceu meio dolorido por algumas boas horas, mas não tão indomável que a impedisse de realizar as tarefas do dia.

Boldo! Agora Lara percebia a sonoridade nem tanto amargurada do exclamar do Boldo. Boldamos nós, boldam vocês e segundo uma amiga de família de Lara, de muitos anos: “minha mãe sempre disse, se está se sentindo mal, toma Boldo, porque ele serve pra curar sete tipos de mal.” Coincidência ou não Naildes fez uma visita à casa de Lara exatamente na tarde depois da manhã terrível, em que seu estômago se contorcia, ardia, fazia nós.

O chá de Boldo foi parar até em página da Bíblia de Rute, justamente, em cima de uma oração que fazia referência a umas dores que ela sentia e não conseguia explicar. O restinho do líquido ficara sobre a mureta da janela do quarto e desabou sobre o livro sagrado no salmo 102, que dizia entre outras lamentações: “Pois meus dias desaparecem como fumaça; meus ossos queimam como ardor de brasa” e “Por causa do meu suspiro dolorido, meu osso adere em minha carne.” Rute deu por definitivo o milagre boldal e finalmente pôde levar o texto descritivo detalhado para a próxima consulta médica ortopédica.

quarta-feira, 12 de março de 2008

Quixote Pança; Sancho de La Mancha

Há algum tempo tento decifrar os segredos do cavaleiro andante e do escudeiro de Cervantes. Um cavaleiro triste, esquálido, sempre a sofrer arranhões e feridas de performances em batalhas imaginárias, e além de tudo eternamente apaixonado por Dulcinéia Del Toboso. Um escudeiro pançudo, ‘experimentando’ ser governador da Ilha Baratária. Os dois tão juntos; misturados na loucura ou na ilusão? Andam tão próximas essas duas; praticamente irmãs gêmeas. Dizem por aí que o que as separa é apenas o tempo. A loucura seria um estado permanente. A ilusão, inevitavelmente, refém da lucidez. Ou ainda, que a loucura seria uma sucessão de ilusões. Como andam juntas as duas, femininas e confidentes, a separação é mesmo improvável. Por loucura ou ilusão, La Mancha e Pança eram extremados, e o excesso é mesmo coisa da imaginação, posto que o equilíbrio se dá muito mais com a razão. Quando têm dores de amores, dizem as pessoas: “estava louco, foi pura ilusão.” E quando sonham com o sucesso, a felicidade plena, dizem: “isso não existe, a felicidade é pura ilusão.” Outro dia desses vi um andarilho fazendo um solilóquio, ou seria um diálogo imaginário? Ele se deliciava em gargalhadas e gestos exagerados, no seu mundo paralelo. E tem tanta gente aí que se delicia em pensamentos tresloucados, e as vemos tão comedidas, controladas. Vivemos assim, cercados por essas femininas deusas; Loucura, Ilusão e Razão. Todas as três desarazoadas, sustentáculos da existência, as responsáveis pela mistura da pândega e do comedimento, da alegria e da tristeza, das panças e manchas, dos Quixotes e Sanchos.

terça-feira, 11 de março de 2008

A luz de Vagner

Tem gente que faz a gente sorrir por dentro; que deixa a gente boquiaberto mesmo de boca fechada e que faz a gente pensar, pensar...e se encantar. Roberta nunca achara a profissão de motoboy das mais gratas. Pelo contrário, sempre pensara que “rimava” com caos, espaços estreitos, tempos corridos, contados, entrega isso, busca aquilo, quase sempre, sem sequer um olhar. Mas Vagner mudou tudo. Tornou-se em poucas semanas o preferencial no escritório onde ela trabalhava. Tinha uma delicadeza, um sorriso no rosto, que não vira em sua vida muitas vezes. Não era uma norma de comportamento. O sorrir era leve, fácil, sem nenhum esforço. A fala era baixa, pausada, sem os respiros da correria. Se demorava a chegar, desculpava-se. Vagner exalava gentileza, tanto que um dia ligou do correio e perguntou: o dinheiro que me deu não é suficiente para despachar a encomenda, quer que eu pague e depois acertamos? Luísa, que também trabalhava no escritório e atendera o telefone, ficou visivelmente afetada: Não Seu Vagner...pode não...o valor é alto...não tenho essa quantia no meu caixa. As meninas olharam umas para as outras, desta vez, boquiabertas de verdade. E esse foi só um dos episódios atenciosos de Vagner. Toda vez que o Vagner vinha, todos se sentiam tranqüilos pelo serviço bem feito, mas Roberta pensava: será que quem recebe as encomendas tem idéia de quem faz a entrega? Outro dia desses Roberta solicitou (era impossível mandar) a Vagner que levasse uma luminária. Ele demorou a chegar, pediu mil desculpas e se foi com o sorriso de sempre...Roberta sabia que o baú da moto de Vagner era uma espécie de compartimento do coração. Que o que Vagner levava jamais seria uma entrega qualquer. Que aquela luminária adquirira a partir daquele momento outra luz, a luz do gentil Vagner.

quarta-feira, 5 de março de 2008

O dia do Pacabá

Sacola cheia é uma agonia. Tem dia que chega tudo novinho, fresquinho. Tem dia que estraga; e dia de domingo estraga mais ainda. Os preços caem; tem gente que sabe.Tem gente que não sabe e presencia todo o ritual. Tem gente que participa, tem gente que olha. Foi assim com Dona Carmem e Lucinha, sua filha. Domingo é dia do “Pacabá”; não tem placa avisando, mas todo mundo vai lá encher a sacola. O dia ficou célebre depois que Toninho, funcionário mais comunicativo da rede ABC, virou porta-voz da promoção imperdível. Funciona assim: as bancas vão esvaziando com o preço do sacolão, mas têm frutas e legumes que por estarem fora de safra são cotados lá em cima e a banca fica cheia. Domingo já viu, até empregado de sacolão descansa um pouco, sai mais cedo. Resultado: tudo perece e o povo padece. Assim, Toninho ficava de olho no movimento das bancas até que escolhia estrategicamente o momento e gritava com aquele ar meio risonho, sarcástico, incitando a “boiada”: Vamo lá pessoal, uva itália por apenas um real o cacho, vamo lá gente, é Pacabá....O Pacabá entrava vertiginosamente nos ouvidos e todos se amontoavam. Era uva, pêra e cenoura baroa pra todo lado. As donas mais cheiinhas liderando, as mais magrinhas e tímidas, forjando uma educação pra lá de relativa, mas atordoadas por perderem a competição. E Carmem? Atrasada, decepcionada com a banca vazia, enquanto Lucinha balançava a cabeça horrorizada com a cena e dizia: já falei mãe, hoje não é dia de vir ao sacolão. Foi sempre assim; quando iam as duas, justamente, no Domingo, não aproveitavam o Pacabá, mas o resto dos ‘sacoleiros’ saíam orgulhosos da economia, de sacola cheia e cheios de esperança para o próximo Pacabá.

terça-feira, 4 de março de 2008

No bolo

Passamos olhamos não vemos
Tantos iguais diferentes
Uns dançantes outros parantes
Estátuas móveis móveis estátuas
Olhares harmônicos dissonantes
Serão ninguéns? Serão alguéns?
A objetiva mira registra
O existir frágil sem ágio
De sorriso largo apertado
Tantos iguais diferentes
Uns dançantes outros parantes
Serão ninguéns? Serão alguéns?

domingo, 2 de março de 2008

Aura

Para Walter Benjamin, “Aura” é tudo aquilo que por mais próximo que esteja permanece distante. É uma espécie de atmosfera que paira em torno de um objeto. Enfim, algo que se percebe, mas não se toca. Diz respeito ao intangível, intocável, sagrado, mágico. Esse conceito está ligado à obra de arte, à sua concepção como tal e como figurava em tempos passados.

Vive-se hoje em meio a um turbilhão de imagens, as quais os olhos humanos sequer conseguem codificar, quem dirá refletir, sentir, apreender. Será o triunfo ou o fracasso dos tempos modernos? Tal qual como a arte, nós, seres desse mundo, somos revestidos por uma “aura”. Os avanços da tecnologia permitiram fotografar a “aura” e definir um tipo de mapa energético que reflete o estado psíquico, e por que não dizer o espírito de uma pessoa. Ora, segundo o sentido dicionarizado, espírito pode ser humor, graça, imaginação, o que foge ao material.

Sendo a expressão da genialidade, da criação, o objeto de arte é parte da natureza humana, portanto, confunde-se com o ambiente coletivo, com a vivência e a cultura do indivíduo. Talvez fosse mais fácil entender a arte por meio da complexidade do homem. Da mesma forma que a arte, o homem é sacralizado, vira uma espécie de semi-deus, metade matéria, metade alma.

Quando a alma se perde, dando lugar ao predomínio do racional, perde-se a dimensão da percepção, os sentimentos tornam-se fracos, banais. Fazer uma ode à “aura” seria um passo para a humanização. Perceber o outro como original é cobri-lo de energia, aura. É o espaço da concessão e do respeito, como outrora eram vistas as pinturas e as esculturas.

O caso do relógio

Um dia desses, estava eu a caminhar pela rua;
Passou alguém por mim: quantas horas são?
Bruscamente levei o braço ao alcance dos olhos;
O pulso estava vazio;

É que outro dia desses, lancei as horas ao ar;
Perdi a máquina do tempo;
O tempo se fora com uma comemoração, num súbito menear de membros;
Desde então estive relutante;
Não quis mais possuir as horas;

Qual a razão do interlocutor?
Por que querer saber quantas horas?
Se horas nunca são,
Apenas se vão?