sexta-feira, 30 de maio de 2008

'Chats'

Les Chats, Os Gatos;
Os Gatos, Les Chats;
‘Doçuras e poderes’,
Baudelairianos,
Outros anos;
Esses anos,
Reinventamos;
Os Chats,
Conversamos,
Les Chats, Os Gatos,
Les Gatos, Os Chats,
Seduzidos,
Amamos,
Intrigamos,
Chatos, chats, cats,
Gatos de unhas e dentes,
Pêlos escondidos;
Impenetráveis Les chats,
Baudelairianos ‘olhos místicos’;
Passos na escuridão.

“Les Chats” (Os Gatos) de Charles Baudelaire:

http://fleursdumal.org/poem/155

quarta-feira, 28 de maio de 2008

'Obscenidade'

Obsceno não é o menino com dedo em riste,
De sorriso maroto sarcástico,
E destino esquecido;
Obscena é a presença,
Até na ausência;
É a cena continuada,
Mesmo na mente,
Que de tão inconveniente,
Faz-se necessária,
Parasitária.

sexta-feira, 23 de maio de 2008

Chamava-se

Nasceu com facilidade. Todos ficaram abobados com um parto tão natural e eficiente. Gonçala sentiu aquelas pontadas anunciadoras, deitou-se na cama e a criança apressada já se insinuou por entre suas pernas; escorregou imersa naquela baba sanguinolenta com uma rapidez assustadora. Mas no rosto da recém-nascida não havia nenhum sinal de pressa, e sim um tom azulado, desmaiado, plácido ao extremo. Todos que acompanharam o nascimento esperavam um bebê quase desesperado, que iria urrar sem parar com ou sem tapinha. Tia Gardênia, a aprendiz de parteira, não teve uma experiência das mais instrutivas, tamanha a fluidez do acontecimento, mas cuidou de olhar bem para aquela carinha lívida e sugerir um nome. Achava no tom de pele e nos traços preguiçosos um quê de lirismo insistente. Então, lembrou-se dos lírios, presentes do namorado Rosalvo. Mas como não podia ser Lírio, convenceu Gonçala de que Líria era um nome adorável, pois remetia aos lírios do campo, tinha ares femininos e delicados. A criança cresceu envolta em atenção e proteção. Na adolescência idealizou rapazes, sonhou príncipes e amor eterno. Posto que nenhum dos ideais tornaram-se realidade, a moça Líria pôs-se resoluta em conhecer o lado mais prático, instintivo dos encontros. Foi quando conheceu Jaime, moço obtuso, de cabelos compridos, ligeiramente ondulados e assanhados, mandíbulas fortes, quadradas, quase eqüinas. A despeito de caracteres tão masculinos, os músculos eram discretos, sem grandes proeminências; um corpo imberbe, um rosto duro, pré-histórico. Marcaram um encontro em uma cidade de nome rimado com poema, mas que fora o ar interiorano, não tinha nada de poética. O quarto ficava em um hotelzinho simples e da janela dava para ver os limites do vale onde estavam; vale sem frescor, sem lírios. Os olhos de Jaime percorriam Líria com curiosidade, sem nenhum afeto. Dizia que nunca havia gostado de ninguém e que, certamente, não seria desta vez. Sem lirismo, mas sem agressividade, Jaime retirou lentamente as roupas de Líria e olhou -a ávido, de nervos a artérias tensas, prestes a explodir. Enquanto isso, Líria contemplava Jaime e se concentrava para o início e o desfecho da cena. Procurava nele o frescor dos campos, o olhar consentido. Passaram dois dias completos se rodeando, nus, de almas incompreendidas, numa constante interrogação. Líria voltou para casa; não viu Jaime mais. Com o passar dos anos seu rosto corou, perdeu a lividez. Desde aquele encontro ela temeu reconhecer desafetos, arriscar-se em momentos forjados; assumiu de vez a evocação de tia Gardênia, inscrita no seu nome.

terça-feira, 20 de maio de 2008

Anonimato

O anonimato não está no mato
Está no ato
No passeio-cimento
Dito civilizado
Na fala e no gesto
No relance
No susto passante
No ouvido errante
“- Cara... outro dia desses um chegado meu foi lá em casa.
Fiquei bobo! Já tem dois filhos e só tem vinte anos. E sabe
o que é pior? A mulher dele é feia feito o diabo.”

quarta-feira, 14 de maio de 2008

"Brucutu"

Brucutu. Vocábulo cheio de “us”, fortes “us”, naturalmente agudos. A palavra veio numa sugestão de vídeo, num e-mail encaminhado por um amigo. O termo contempla várias acepções, desde o midiático global "Brucutu Garanhão" de uma novela das sete, até o carro Blindado da Ditadura Militar, o "Brucutu Camburão". E para maior surpresa, é nome também de música do cantor Roberto Carlos, uma referência ao “Brucutu das Cavernas”: “Olha o Brucutu, Bru-cu-tu! Nas histórias em quadrinhos, Das revistas, dos jornais...- Olha o Brucutu, Bru-cu-tu!” Poderíamos aventar um “Brutus Brucutu”, adversário do espinafrado herói Popeye dos animados televisivos. Contudo, o mote do vídeo não era nenhum desses “Brucutus”, mas a validade da fé de alguns frente à vaidade de outros. A grande personagem é mesmo a “Mina de Brucutu”, proeminente preposto minerador, que decidiu inundar de rejeitos o Vale da Serra do Tamanduá, localizado no município de São Gonçalo do Rio Abaixo, em Minas Gerais. Tamanha é a capacidade de espoliação da mina, tamanha sua produção de restos insustentáveis, tamanha sua grandiosidade frente à população espoliada na paisagem, no ar, na história inscrita na rocha e marcada no solo, na lembrança e nos ritos que ali têm lugar; não poderia deixar de ser a personagem, tal qual, um dia, Émile Zola retratou tão bem em "Germinal". O célebre livro "As Veias Abertas da América Latina", do historiador Eduardo Galeano, continua inacabado, tão poderosas são as minas, a esfacelar nossas terras, nossos eus.

O vídeo:

http://br.youtube.com/watch?v=tU0HH7fW2zk

quinta-feira, 8 de maio de 2008

Um lugar no antes

Velozmente,
Bate o coração;
Involuntário,
Mio,
Cárdio,
Bomba,
Explosão!
Vertigem!
Oração!
Deus! Nossa senhora!
Todos os santos!
Louvação!
Acabam de nascer,
Asas na solidão!
Estão em queda,
As cores da razão!
Lusco-fusco,
Imprecisão!
Nem lua,
Nem sol;
Riso,
Dor,
Clamor!
Clarabóia,
Extintor,
Onde estarão?
No alto,
No profundo,
Na folha sob a brisa?
Redemoinho,
Inspiração,
Oxigênio!
Bate à porta lucidez!
Não tem chave!
Ficou tudo escondido,
No fundo do mar,
No susto do naúfrago,
No teto azul,
De pássaros,
De vôos!

Rio

Um velho andava,
Um velho e sua mente,
Trazia cãs e escamas de peixe,
Era um rio;

Cada choque na rocha,
Um tilintar nos ouvidos;
Uma lembrança,
Um recomeço;

As margens despencando,
Assoreando;
E o velho?
Amontoado,
Receptáculo;

O correr sem fim;
A matéria fluida;
Inevitavelmente sem freio;
Um recuo impossível.

domingo, 4 de maio de 2008

Dendera

Às vezes sinto saudades, aquelas alegres, de lembranças boas, vivas ainda. Sinto também “sôdades”, de lembranças apertadas, do querer bem que não está mais por perto. Em noites de insônia, tenho a nítida impressão de que ela está em algum canto da casa, com seus olhos enormes, profundos. Ela chegou pequenina lá em casa, rajadinha, barrigudinha, apinhada de pulgas. Toda vez que dávamos a ela mingau de fubá, ela espumava copiosamente com aquela cara de falecimento iminente, numa tristeza profunda. Aparecida, uma vizinha e amiga, vinha a nossa casa e dizia: “ela tá magrinha demais; tem que dar muito mingau para ela”. Que idéia! Curiosamente, Dendera custou revelar seus dotes felinos; morria de medo de pular; não para o alto, mas para baixo; dava-lhe aquela sensação de vertigem, talvez a mesma da mistura desastrosa do leite com o fubá. Mas depois que começou suas aventuras de escaladora, era bagulho de estante caindo no chão; eu e mamãe ralhando; e pior, escondia-se atrás da porta, na surdina para agarrar nossos tornozelos.

Cresceu, as rajas alargaram; ela clareou de vez, tanto que começou suas incursões pelos muros, suas caçadas a pardais, borboletas e até asquerosas baratas. A gente ficava indignada: “Como pode Denda, fazer uma coisa dessas; coitada da borboleta, tão linda...” Quando era barata: “Que nojo Dendera; faz isso não!” A infância foi assim, cheia de peripécias, corridas de arrepiar o pêlo e enrolar a cauda, naquele estilo pra lá de descontraído, cheio de charme. No tempo de moça, foi um tormento. Os cios eram agitados; os olhos vidrados; bastava um trisco no corpo para soltar o gemido. Chegou até a se encontrar com um vira-lata em uma construção perto lá de casa. Retornava com os dedos da patas colados de cimento, com aquele ar de gozo eterno e de ‘ele vai vir atrás de mim’. O sem-vergonha não vinha e Dendera sofria; a gente indignada com aquele amor vagabundo e aquelas reações escandalosas. Mamãe dizia: “Uma gata tão bonita dessas cruzando com vira-lata...” Tudo só ficou mais ou menos resolvido quando adotamos o Lu; esse era garanhão de primeira. Com seis meses já deu um sossego relativo nela. Mas ela tinha uma má vontade danada com ele; o gozo era discreto. Resumindo: a coisa era meio forçada. Deduzimos então que ela tinha gosto mesmo era pelos vira-latas. O primeiro parto foi meio atabalhoado, desajeitado. Dendera levava aquelas bolinhas de pêlo pra nossa cama como que pra fazer festa. Nas próximas crias, não sei se por ciúmes ou madureza, resguardava-os mais, ficava esticadinha na caixinha, e tinha um prazer imenso naquelas boquinhas desdentadas e naquelas unhinhas frenéticas no seu abdômen. Os veterinários diriam: “essa tem mesmo habilidade materna”. Nós dizíamos: “ela é uma ótima mãe”.

Os anos se passaram, muitos cios e crias. Em casa era uma festa de gatinhos fazendo estripulias. O amor da Dendera pela mamãe aumentando, tanto que dormiam até juntas; uma esticada do lado da outra, e eu dizia que era o ‘casal vinte’ da casa. Era um afeto tranqüilo, sem arroubos. Já o meu por ela, era exagerado, forçado, a gente brigava feito algumas irmãs. Agarrava Denda à força pra dar aqueles beijos estalados e ela rosnava para mim na sua maneira gatuna, exibindo os caninos e louca para me enfiar a unha. Mas pensava duas vezes ‘essa menina é doida coitada’ e não fazia nada. Quando a colocava no chão abanava o rabo meio nervosa e eu falava com a mamãe: Ta vendo mãe; ela gosta de mim...sei que ela gosta...Nunca tive certeza. Os últimos dias foram tristes. Denda foi acometida por uma virose muito grave e todas as tentativas de salvá-la foram vãs. Teve desespero no último dia, não queria morrer perto da gente. Mas foi embora e deixou-me pensamentos e sabedorias, embora muitos eu ainda não saiba usar. Sabia viver com uma naturalidade invejável, cultivou por minha mãe um sentimento nobre, sem egoísmos, mas de uma possessão delicada. Denda no início tinha medo do pulo do gato, mas depois foi mestre, nos mostrou que o pulo a gente dá aos poucos, na espreita.

sexta-feira, 2 de maio de 2008

Caixa prioritário

Na fila da Caixa,
Na fila do caixa,
No caixa prioritário,
Não tem Zé menino;
Zé menino nem se lembra,
Virou Zé de outro tempo,
Não da mocidade, meninice,
Mas do futuro esquecido;
Não vai mais à Caixa,
Não chega ao caixa,
Não tem mais soldo;
Na fila da Caixa,
Na fila do caixa,
Tem o amigo do Zé menino,
Aposentado, sentado;
E o amigo de pé,
Na falta do assento prioritário;
E a figura do leão da receita,
No pôster da parede ao lado;
Leão sentado, glamuroso;
E Zés de pé,
Na fila prioritária;
Insuficiente;
Na senha nome de milhar,
1024, 1025, 26, 28...
Na confusão do nome dito em alta voz,
Do Zé e do Antônio;
No corpo amarrado,
De engrenagens já gastas,
De líquidos escassos;
Mas de pé os Zés, as Marias de sorrisos cacoetes,
Se preciso for,
Até virar Zé menino de outro tempo;
Esquecido,
Não vai mais à Caixa,
Deu adeus à fila prioritária.