quinta-feira, 31 de julho de 2008

Lamento

Perdeu o pé,
Ficou sem fé,
Perdeu o chão,
Ficou na mão,
Andou de banda,
Forçou a anca,
Foi-se o pedaço,
Base de traços,
De sangue e veias,
Doeu no coração,
Teve jeito não.

Sobre cartas e amizade

As palavras em mim são feitos, de feitio vário vão entrando no pensamento e criam o momento, e o pretexto da escrita. Esses dias um amigo disse da formalidade, da minha formalidade. ‘Incuquei’ com a palavra e fui buscar o sentido pra mim. Procurei o motivo e descobri que ainda está vivo, tem guelrras de letras, com espaços pro ar e água densa. O motivo talvez seja as tantas cartas que recebi, que escrevi. Quando ainda era criança, quase adolescente, firmei amizade com uma prima já moça. Fui criança de conversar longo com gente mais vivida. Prima Ana Márcia morou aqui um tempo, foi embora pra longe, voltou de novo. Mas quando estava distante, chegavam-me numerosas cartas, grossas, com até oito folhas daquelas de caderno grande. O assunto variado, percorria movimentos do cotidiano, de fora, de dentro dela, das angústias, dos sonhos. Ela também se debruçava sobre poemas quilométricos; era uma escrita quase fisiológica. Tenho a impressão de que ela podia até morrer se não escrevesse. A letra era cursiva, apressada pra não perder o fio do pensar. E eu recebia orgulhosa, aqueles calhamaços vindos de longe, ansiosos por alcançar meus olhos, minha alma. Na escola aprendi formato de carta formal, gostei, apliquei. A data e a cidade no topo, o cumprimento respeitoso, caro, prezado; carinhoso, querido. O que mais me encantava era a vírgula e o espaço em branco depois do cumprimento, como que dando chance, do respiro, da resposta, do reconhecimento. Tudo manual, com as irregularidades da escrita, a firmeza, os tremores, a pressa, a ansiedade, o contentamento. Depois tinha o envelope, o remetente, o destinatário, a ida ao correio e o eterno pensamento: será que vai chegar? Respondia Ana Márcia com certa economia, confesso. Custava preencher uma página completa; chateava-me, mas cuidava de ser atenciosa e precisa nas palavras. Hoje, minha prima não escreve tanto, a fisiologia dela mudou; a minha também. Amizade entra na gente.

quarta-feira, 30 de julho de 2008

Ajuda

Tenho saudade daquele tempo,
Tempo Momento,
Emendo;
Não me lembro exato ,
Invento;
Ajudo o querer lembrar,
Ele vai crescendo,
Crescendo...

quarta-feira, 23 de julho de 2008

Sem jeito

Corta Neguete! Assim não...desse jeito o bambu vai cair em cima de você...Neguete exagera o sorriso, como quem não precisa de orientação alguma. Dá as costas pro bambu, todo superior. Fosse ela fazer então. Luciana lá em baixo do lote repleto de touceiras, continua as instruções para a festa junina, até que Neguete se distrai novamente. Passa uma mocinha trigueira, de nariz empinado lá em baixo e Neguete não resiste. Ei gatinha...? Quer ser meu par hoje à noite? A mocinha aperta o passo, vira em direção ao morro íngreme. Lu indignada esbraveja: Eh Neguete sem jeito; devia era ser encoberto por dezenas de bambus. E não é que os bambus desabam mesmo? Desce à toda com Neguete e tudo. Corre todo mundo pra ver. Luciana se exalta, grita: Eu falei...esse Neguete...Retiram os bambus de cima do rapaz meio bambo, de sorriso bambo...Lu, ainda tô sem par pra hoje e agora temos bambu de sobra....Eh Neguete sem jeito Meu Deus, sorri Luciana...Vê lá se vou dançar com você...sem jeito do jeito que é...já tenho hora marcada hoje com outro peguete.

sexta-feira, 18 de julho de 2008

Vela

Fogueira pequena na favela é vela,
De chama fria de fumaça,
Nublada pelo vento;
A fruta vermelha pela metade,
Assa,
Disfarça,
Vira brasa morna,
Desce goela abaixo;
A pele ‘cinzenteia’,
Esfria,
Esquenta velada;
O abano na mão desespera,
Cúmplice da ventania,
Ironiza o fogo;
Fogueira pequena na favela,
Vela sem reza,
Acende e apaga um pouco.

quarta-feira, 16 de julho de 2008

Com ão, sem ão?

Inspiração é adoção,
Erupção;
Ficar sem inspiração,
É abandono,
Hibernação,
Reticências,
Interrogação,
Sei não...
Continua um tanto ão.

sábado, 12 de julho de 2008

Avesso nexo

Pequeno sem nexo,
No plexo,
Circunflexo,
Sem flexo,
Agudo,
É o verso;
Lágrima cai por fora,
Por dentro;
Lágrima escondida,
É rio no avesso do corpo,
Vermelho,
Rio de fogo;
A lágrima clama o verso,
Trama o verso,
No plexo,
Circunflexo,
Aguda,
Sem flexo;
Arde Chama,
Reclama,
Proclama;
Lágrima,
Desalento,
Contentamento,
Momento,
Fomento,
Avesso do nexo sem nexo.

'Estrela'

“Esse aí tem estrela”, dizem de quem tem de sorte. Cavalo ‘Estrela’ nasceu com estrela branca na fronte, bem destacada do pêlo castanho escuro, nem tão curto, nem tão comprido. Crina longa brilhante pra fazer trança, cauda cabeluda pra afastar pequenos seres voadores. Ganhou vida num campo amplo, em tarde fresca com pôr do sol. Pintor de natureza encheria os olhos e as mãos do clima bucólico, poético. As perninhas magrinhas, desequilibradas; levantou e caiu sucessivas vezes até o terceiro dia. Sugou leite, comeu erva. As pernas engrossaram, ganhou ferraduras. Veio a carroça, foi-se a estrela. Nas primeiras vezes relinchou, levou chicote. Depois calou, empacou, chorou e ninguém viu. Nem ele viu ninguém; colocaram vendas nos olhos, rédeas curtas, sobrepeso de coisa e de gente. As articulações incharam, calejaram. Um dia subiu gente sem conta, duas, três, quatro e pilhas de coisas na carroça. ‘É burro de carga, nasceu pra isso”, diziam. Até espora que “pinicava” o dono usava. Na subida o peso dobrava, o assombro paralisava; Estrela empacava, apanhava. Viveu assim vinte anos, com a estrela escondida; bicho de carga do homem de carga sem amor, bruto pela carga, de faces murchas, insones, sem brilho. Na velhice foram os dois: cavalos velhos sem dentes, com o sentimento da carga nos músculos, nos ossos, no coração; sem estrelas.

sexta-feira, 11 de julho de 2008

'Noite'

Olharam pra ela, profetizaram: “Noite”. Tinha pele escura feito sombra, cabelos e olhos negros, quase azulados. A menina era miudinha, estreita como o alcance da visão noturna. Traços finos, nariz aquilino, inquisidor da cor da noite. Era daquelas pessoas sem nuances, de uma definição precisa. Tinha temperamento discreto, sorriso alvo sem largura, comedido. Enquanto bem pequena não ligava; o nome era apenas uma representação sonora que lhe remetia, lhe sugeria a brincadeira, o alimento, a voz familiar.

Lá pelos idos dos sete anos de idade, a palavra, o nome, o seu nome começou soar estranho. Noite pensava na imagem da noite, no escuro, nas imagens sôfregas, imprecisas em busca de um pontinho de luz para se revelarem. Poderiam tê-la chamado Lua. Se fosse nova seria um pensamento. Se minguante, um apelo. Se crescente, um alento. Se cheia, contentamento. Nunca conhecera ninguém que se chamasse Noite, mas não via nessa originalidade nada de vantajoso. Ainda se fosse Dia, terminava como Maria e iniciava com a luz do sol. Não ligava também de ser Sol. Mas já tinha aquela sensação do nome, que pega a gente misteriosamente; não se via Lua, Dia, nem Sol. Tinha medo mesmo era de se confundir com a noite, se misturar nela, e nunca mais a encontrarem.

Quem deu o nome foi o pai; mineiro, colocava poesia em tudo. Jovelino achava a noite muito mais interessante que o dia. Achava que mistério da noite era mistério nada, era sim uma hora de escutar o silêncio, de enxergar com agudez, de dançar tango, bolero, de cortejar moças, de sonhar histórias reveladoras. Não pensou fosse constranger Noite com as perguntas e observações descabidas: “Ela se chama noite? Como pode se chamar assim?” Um dia Noite, já adolescente, recebeu um verso que dizia: “Se não chamasse Noite não seria Noite; Noite que me encanta, que me nina, que me afaga. Se não fosse Noite, quem seria?” Não soube quem mandou. Porém, desde esta data Noite soou de outra forma. Não compreendera completamente a escolha do pai Jovelino, mas sentiu uma ligação profunda com a noite, com o pai, com aquela invenção que se tornara real, ela era “Noite”; não havia nenhuma impropriedade nem sofreguidão nisto.

sexta-feira, 4 de julho de 2008

'Cenimétricas'

Desceu as escadas, doze degraus, três metros e meio. Abriu o portão, saiu, fechou; milímetros. Virou à direita, subiu, trinta metros. Deparou-se com uma castanheira gigante, de tronco abraçado por colar de flores. Parou, leu a árvore, as flores, o dizer no bilhete desenhado, a súplica de oração pela árvore. Observou, sorriu no coração, orou por centímetros de tempo. Apressou o passo, virou à direita de novo, subiu de novo, dez metros. Atravessou a primeira rua, andou mais um pouco, quase metro. Atravessou a segunda rua, caiu na praça, fez um quase meio círculo e deu de frente para a banca de revista, escondeu-se da rua por milímetros de segundo. Ouviu o motor do ônibus, correu centímetros. Não era o ônibus, era o caminhão da Nestlé, fez curva, ganhou a reta, confundiu sem intenção. Depois veio o caminhão Alimentos Pachá, passou, sumiu. Sentou-se no banco coberto, bem no meio, espaços largos à direita, à esquerda. Chegou alguém, disse boa tarde, sentou-se ofegante, queixou-se do morro íngreme, agudíssimo, longuíssimo. Concordaram e olharam para a pomba ciscando no meio da rua. Não voava, dava corridinhas, rebolava a cada carro; voltava centimétricamente insistente pelo cisco. Chegou o ônibus; deu o sinal, subiu, pagou, sentou, deixou árvore, caminhão, pomba, cenimétricos para trás.

quinta-feira, 3 de julho de 2008

Lantana sedutora

Beija-flor adora flor de lantana,
Lantana multicor,
De matizes incontáveis;
Pequeno buquê de lantana,
Lânguido,
Mentolado,
Amarelado,
Alaranjado,
Avermelhado;
Rosado;
E o bico do beija-flor,
Comprido,
Delicado,
Lá dentro da florzinha,
Sugando mel;
Pequenina lantana,
Sedutora lantana;
Beijo do beija-flor,
Na flor de lantana.

quarta-feira, 2 de julho de 2008

"Mora ao lado?"

A morte mora ao lado?
Não, ela está de frente,
Escancarada, na casa da frente;
Ficou lá durante uns três dias,
Rondando o ar que ela respirava,
Tirando a força de suas pernas,
O controle de seus músculos,
Estava lá pra dizer que o esquecimento é amigo da morte,
Do esquecimento que faz o tempo ser malvado,
Esse tempo, o outro tempo,
O tempo amante da solidão e da morte,
Do desinteresse pelo outro,
Tão perto, na presença discreta,
Na vida,
Na luz de penumbra refletida na janela;
A vida escassa, se dispersando,
Até que alguém arromba a porta,
Descobre excrementos, secreções,
Sinais da vida que não quer escapulir,
Gritos com seus cheiros fortes, revoltos,
Chega o socorro,
Levam a vida de maca,
Para retomar as luzes acesas,
As rotinas higiênicas,
A vida sugada pela morte.