sábado, 30 de agosto de 2008

Plano inclinado

Estava lá solto no sonho. Concreto sem pintura; inclinação discreta. Recostamo-nos ali sem termos marcado. Era possível alcançarmos o céu sem tirar os pés do chão, livres da posição ereta, impositiva do pensar lógico. Estávamos ali, os dois para o encontro, para olhar o alto teto azul sem descuidar do lado; o falar ao sabor do sentimento. Mãos e pernas livres, o entorno vazio, pareceu-me que sim. Talvez fosse início da manhã, ou fim de tarde; as luzes não ofuscavam, eram delicadamente brandas, acariciavam. Havia tempo de silêncio e a súbita palavra só para o momento. A despedida não teve hora, aconteceu suave, sem afagos exagerados, sem medos e perdas. Vida real boa é assim; sonho solto no plano inclinado, descanso de faróis brandos acesos, amizade sincera, amor amigo.

Seus olhos

Gosto do seus olhos,
Gosto porque são felinos,
Certos incertos,
Perguntam sem repostas,
Respondem sem perguntas,
São águas escuras de mata fechada,
Recebem chuva,
Inundação,
Recebem sol,
Cintilam ouro,
Angustiam,
Acalmam,
Obrigam,
Desobrigam,
Remanseiam,
Ondeiam,
Tiram o respiro...
São ar...

'Prosema' Verde

Aviso sem seta,
Rio sem freio,
Cachoeira entremeio;
Montanha caída no vale,
Folha dançante na brisa,
Queda outonal,
Ventania turbilhão;
Broto de primavera,
Lodo caminhante,
Plantas eras alpinistas,
Decidas;
Pedregulhos dissolvidos;
Mergulhos rasos,
Profundezas,
Águas vivas;
Mãos e terra inquietos,
Tremuras;
Pensamento de lembrança incompleta,
Desejo mente e coração,
Sentimento invenção;
Olhos densos, de faíscas perguntas e respostas inexatas,
Água misturada com terra carne;
Corpo pensamento,
‘Sonhação’;
Flor que espera verde o beija-flor;
Doce figo no estalar dos dentes;
Aonde vai dar?
Na vida prenúncio verde cor?

quinta-feira, 28 de agosto de 2008

Poti

Poti era pela metade,
Um olho na porta da cozinha,
O outro para o corredor dos quartos;
Poti nasceu incerta,
De mistura de pêlos assimétrica,
Um lado mais claro,
Outro mais escuro;
Poti pedia colo,
Poti subia em árvore,
Poti fazia carinho com arranhão,
Poti miava aos gritos,
Implorava o churrasco da barraquinha,
Sabia os dias, as horas, a mudança do dia pra noite;
Poti era precisão;
Potira virou Poti,
Veio para ti, para mim,
Não tinha dúvidas;
Mesmo de aparência duvidosa,
Titi queria queria queria...

quarta-feira, 6 de agosto de 2008

Pudim de leite moça

Ficara doente de caso meio grave. A família toda visitou, encheu o quarto, aumentou a temperatura, desatinou os ouvidos, quase comprometeu o coração de novo. Liliane se envolvera com ele por anos, a despeito do casamento. Não se importava, gostava dele, o que fazer...Chegou ao hospital meio sorrateira, de maneira que não topasse com a “família”. Poxa vida! Afinal tinha convivido tantos momentos bons, riscos, e pior, agüentado tanta rejeição...Esperou, esperou, até que se foram....Ufa! Gino estava lá, como que atordoado por tê-la esperado tanto. Sabia que ela iria de qualquer forma. Lili era ousada...era capaz de travar batalha com Catarina, sua esposa. O ‘caso’ espalhou-se por meia vizinhança e conhecidos dos conhecidos. Mas Lili foi assim mesmo; ela tinha o que dizer, ele também. Ela só não esperava que fossem falar de cozinha. Não levava o menor jeito. Gino desejava pudim de leite moça, daqueles repletos de furinhos, como a mãe dele fazia. Lili ficou orgulhosa, afinal de contas um paralelo com mãe é algo sublime, e o melhor de tudo; pedira para ela e não para Catarina. Lili tinha temperamento sincero. Confessou suas inabilidades culinárias, mas intuiu que não poderia ser pudim de padaria, aquela mistura sem personalidade. Descobriu uma doceira famosa no bairro, encomendou, levou para Gino, aprendeu. O segredo do pudim de leite moça está na clara que vira neve, que dá aquele aspecto de queijo adocicado e furadinho. Só assim o pudim flutua e se desfaz nas papilas da boca feito nuvem no céu. Os furos repletos de caramelo ligeiramente queimado dão aquele amargor discreto que equilibra o doce, dá a plenitude do sabor. Pudim de leite moça não era coisa simples, era preciso garfos e batedores ágeis, açúcar em fogo brando. O sentimento de Gino e Lili sempre pareceu vertigem. Depois do pudim de leite moça virou cuidado.

sexta-feira, 1 de agosto de 2008

Em todos os lugares

O desequilíbrio do humano assombra. O homem é o próprio entrelugar, e nem tem lugar. Vaga como ave migratória e retorna em desespero pelos humores do ambiente, pela suposta segurança. E se não volta? Continua com o lugar da lembrança. O ‘destino’ também é desequilibrado. E se falta o ‘tino’, o humano vê-se na eminência completa da imprevisão. E os outros olham abobados, a sorte inesperada, supostamente possível, indesejada por vezes. Mesmo se entrevê uma garantia e envolve-se com os bons ares da doação, o retorno é sempre duvidoso. A dúvida é também o próprio entrelugar. Se não se resolve então, vira angústia. Angústia é dúvida, incompreensão de si para si. E o si? O si é o entrelugar. O si alegre, exagerado de contentamento, culpa do momento sem perguntas e pensamentos. E o ‘bobo da corte’? O próprio entrelugar entre o tudo e o nada, felicidade sem justificativa, tristeza empedida. A sabedoria é o equilíbrio? A teoria diria que sim. Mas mesmo válida, a teoria é refém da que virá, é muleta que não engana alguns, mas satisfaz no tempo. A sabedoria também é o entrelugar, a negociação justa entre o sensato e o insensato. O exagero comedido, a contenção comedida, a ilusão do equilíbrio. O entrelugar está em todos os lugares. Nada mais angustiante, desafiador e mágico que o entrelugar.