quarta-feira, 29 de outubro de 2008

Oxalá abençoe

Opa...cheguei desavisada. E o velho sentado ali, num balanceio meio tonto, meio dançante, nem sei...Hum... grunhia ele, e os olhos vidrados, em seguida fechados e o corpo num movimento de náusea. Babalaô, Hum, Hum...repetia o preto velho. E eu ali esperando o vômito, afinal de contas a panela já estava lá à espera. O retorno estomacal não veio, mas cusparadas seguidas, milimetricamente forjadas, compassadas, de periodicidade certa. Oxalá abençoe e lá vai mais cuspe. Não entendia porque salivava tanto. Hum de novo...Agora vai vomitar, tem jeito não, pensei outra vez. Que nada...Mudou de voz; de arranhenta passou a fininha, feito de criança. Lia saiu correndo pra buscar os doces. Disse pra mim que eram Cosme e Damião, duas crianças inocentes.

'Peruqueiro'

O dinheiro já tinha acabado mesmo. Não tinha nem pro lanche. Nunca tinha sequer paquerado um careca, ainda mais de peruca. Margarida me incentivou; o senhor parecia ter boa situação. Eu poderia enrolá-lo, dar uns beijinhos e passaríamos aqueles últimos dias na praia sem apertos. Como se não bastasse o carro bem interessante, o peruqueiro tinha também um barco bacana, e dentro, um armário com a coleção de perucas. Era obcecado por elas. Mostrava-as como se fossem graciosas meninas de cabelos delicados. Alisava-as com carinho. E eu ali, de mira na cena dos olhos do peruqueiro nos cabelos postiços. Que linda essa, eu dizia, fingidamente. Na verdade, eu tinha horror de perucas, achava o limite que se formava entre a pele e elas indecente, mas o peruqueiro as tinha na cabeça e no coração, quê fazer...Confesso que tive que beijá-lo. A causa era nobre e ele era realmente uma figura distinta se não parecesse realmente patético com a peruca ruiva que usava naquele momento. Não fechei os olhos por garantia. Já pensou eu me envolver no beijo e esquecer que se tratava de um homem de peruca? Fiquei ali de olhos estatelados no beijo, até se fecharem, bem no terço final. Nem sei mais se foi o terço final mesmo; dizem que coisa boa dura o tempo do instante. Foi fato. Hoje, eu mesmo escolho as perucas do Ademar e nem acho o entrelugar da pele e da peruca tão obsceno como antes.

terça-feira, 28 de outubro de 2008

Quando ele vem

Como é bom sentir o vento de olhos fechados,
Como vem ele aterrador e delicado quando temos os olhos fechados,
Que presença passante que paira e fica e vai sem deixar dores e amores,
Que visita bem vinda, inesperada tão esperada,
Que gesto delicado em cada pedaço de pele ou no roçar de roupa forte e delicado,
Que frescor e que sentimento de mormaço aço forte feito brasa quando vem o vento;
Quando vem o vento tudo é sentido,
Tudo vai num ido, ido, ido...;
Tudo leva o vento,
O sentimento da pele,
O pulsar da vida;
Vento desgarrado,
Passante vento,
Sem amores,
De todos os amores;
Leva humores,
Calores,
Rumores;
Vento anestésico,
Vento vela,
Vento leva,
Vento adormece...

Volteio do tempo

Presinto que não há mais tempo. Presinto que há todo tempo. Sinto o tempo, todo momento; lamento o tempo, vanglorio o tempo. Vejo que o tempo é apenas a impossibilidade ou a possibilidade entranhada, enraizada no solo gente. O tempo não mente, mas é fingidor de tal maneira que engana a gente, porque lá dentro tem um tempo que não passa, o tempo aventureiro que nem sempre combina com o passar do tempo, do corpo de energias consumidas, retraídas; e das excessivas é refém, vai pro além, não contém. O tempo não volta, só dá mil voltas; revolve tempos idos, desfaz o presente todo momento; ignora o futuro, mas abre alas pra todo porvir. O tempo é vento brisa, é ventania, é prenúncio dentro da gente, é mente, não mente. O tempo é como fuligem e a gente é o próprio tempo, sem tempo ou com tempo. De todo jeito está lá o tempo a nos espreitar, sinuoso, afetuoso, amante, enganador. De todo jeito está ele a nos perguntar, porque fomos, porque não fomos, aonde vamos. O tempo nem sempre pergunta, intransigente. Nós, nem sempre respondemos, desatentos.

segunda-feira, 20 de outubro de 2008

Passo

Passo
Ninguém me vê
Passo, passei
Passo
Alguém acena
A cena me retém
Me contém
Passo e tudo bem
Passo e nada bem
Alguém me vê
E não me vê
Me desvê
Me revê
Passo de novo
Repito o passo
Vario o passo
Tonteio o passo
Quase caio
Atordôo o passo
Levanto o passo
Danço o passo
Confundo o passo
Descubro o passo
Esqueço o passo
Lembro o passo?
Quem me vê?
Quem me lê?
Na cadência do sentir
Na cadência do não sentir
Faço traço
Rastro passo
Passo assim mesmo
Passarei sempre
Com todos os passos

Pra frente, pra trás

Toda vez é assim. Liliana teima em ir devagar. Toda vez eu falo: vamos perder o ônibus. Coisa estranha, parece que ela anda pra trás. Ela diz pra mim que está indo é pra frente. Não entendo. Liliana caiu de amores pelo Júlio lá da escola. O menino tem mania de ficar plantado no portão de saída se exibindo. Outro dia falei com Lili: é por isso que anda pra trás né sua pra frente! Ela me olhou com jeito de não entendi, deu um sorriso brando e bocejou, com aquele ar de não dou conta de tomar pressa. Eu também nem sei porque tenho tanta pressa. Toda vez que chego em casa o almoço ainda está esquentando no fogão e não consigo fazer nada até encher a barriga. Outro dia desses corri tanto que revirei o estômago com a ajuda do velocista do coletivo, que dizem que é motorista. Liliana nem entrou nesse, ficou esperando o próximo pra cruzar com Júlio no ponto. Lili sempre diz que o tempo dá pra tudo, pro Júlio então ela dá todo o tempo. Eu continuo apressada, nem sei pra quê. Lili falou comigo que se eu continuar desse jeito ela vai é trombar com o Júlio todo dia no ponto e eu nem vou ver aquela belezura.

Vai vai

Vai vai vaidade,
Leviana, imponente vaidade;
Etrusca,
Busca?
Ofusca;
Clarão cego,
Será que vai com a idade?
Ou é por idade?
Ou ligada,
Irremediável,
Em todos os tempos?
Inesgotável,
Vã vaidade,
Doce e amarga;
Amarra,
De liames frouxos;
Arroubos,
Roubos tantos,
Fuga;
Procura insana,
Não irmana,
Profana;
Qual é mesmo a direção?
Vai vai...

terça-feira, 14 de outubro de 2008

De través

A gente é de través, tanto que cansa dentro da gente. Eu mesmo nem sei se indo ou se parando fico e penso e desvou desse ir que nem tinha ido. Esse negócio de ter certeza, ter mente firme, atinada...tem gente que teima com isso. De vez em quando me olham de través, na dúvida, parece que sabem; ali tudo dentro é incerto. A gente segue, tem volta no tempo não, segue de través mesmo. Tem um amigo meu, Justino, que se duvida comigo, de tanto falar e pensar e duvidar. Talvez fosse melhor nem pensar. Mas pensamento é grudado na gente, mesmo curto. Tem jeito de esvaziar não...só do outro lado! Quem sabe...?! Isso é que cansa dentro da gente; esse cheio indeciso, esse caminho que sobe e desce. Pior é quando de tão cheio parece tudo vazio. Eh través dentro da gente que não se cansa...

segunda-feira, 13 de outubro de 2008

Canto triste

Mais que desilusão,
Canto triste sem razão;
Desilusão é desanuviamento,
Esquecimento;
Desencanto não,
É um perder sem explicação,
É canto triste sem razão,
Falta o suspiro,
Vem o respiro,
Com dor no coração;
Ah! Tudo fosse desilusão;
Ah! Nunca fosse desencanto;
Canto triste sem razão...

quinta-feira, 9 de outubro de 2008

Fatal

Fatal
Tinha que acontecer?
Não tinha
Tinha
Por quê?
Sei lá
Fatal
Oh...Meu Deus...
Por quê?
Não sei
Tem que saber
Fatal e pronto
Não pode
Fatal é assim
Como assim?
Ido sem volta
Mas se nem tinha ido
Foi...tô dizendo
Por que foi?
Porque não foi ora...
Fatal e ponto

Ao vento...

Vento que combate
Abrace-me até o fim do caminho
Rodeie-me feito cortesão
Em volta, protetor
Dance comigo
Por ruas inesperadas
Inelutável, leve
Pegue-me por qualquer parte
Assalte-me pelo braço
Tufão
Afague-me silente
Brisa
Fale aos meus ouvidos
Alto
Baixo
Sinfonia persistente
Sopro
Arrepio
Deixe-me ouvir
Feche-me os olhos
Esqueça-me a visão
Faça-me sentir
Vento, vento, vento...

sexta-feira, 3 de outubro de 2008

'Urgência sem pressa'

Quanto em mim é urgente? E em ti? Saberia me dizer? E essa palavra tão apressada, é mesmo insustentável, grita em toda potência do som? Não seria ela, apenas um sopro delicado, uma melodia de flauta, doce e persistente? Não saberia dizer exato o status de nenhuma palavra, posto serem meras suposições, e se as pensamos repetidamente, vemo-las duvidosas, dependentes umas das outras, fluidas, rios, quase inconstantes. E nós mesmos não somos essas palavras que insistem em nós? Nesse momento, é a urgência da expressão...Deveríamos ter tanta pressa, sob pena de fazer de nossas urgências desatinos? Poderíamos então recair também na fluidez do desatino...Mas volto, sob pena de me perder indefinidamente. Será que a urgência sem pressa é só prerrogativa divina, tal qual anunciou Riobaldo em Grande Sertão Veredas? “Deus é urgente sem pressa.” Talvez...Agora me vem a urgência do quase certo, desse absoluto que se insinua na gente, feito planta trepadeira ou erva daninha. Segue-se ou antecede-se na urgência desatino, inimiga do saber do tempo. Tudo pelo medo das convicções; será que as temos? Se as tivéssemos certamente não seríamos urgentes apressados, teríamos a urgência convicta, amiga do tempo e de suas confirmações, até vir o grande acontecer, aquilo que esperamos verdadeiro, sem pressa.

quinta-feira, 2 de outubro de 2008

?.?.

Por que a angústia da palavra comum?
E a ilusão da palavra rara?;
Por que não o comum raro?;
E onde está o ponto desatinado?
Desfigurado em reticências?;
E as vírgulas?
Não seria melhor fossem pontos e vírgulas?
De caminho escrito no entrelugar?;
E as exclamações não seriam fabulosas?
Se pudessem reverberar feito gargalhadas?
Ou virassem de cabeça pra baixo?
Como is multiplicados de surpresa?;
E as interrogações?
Não poderiam assumir de vez suas afirmações?

Escrita minha?

Não insisto na escrita
Ela vem numa imagem
Num acontecer
Num não acontecer
Não há transpiração alguma
Talvez efeito de minha fisiologia
Um tanto anti-expirante
A inspiração me cutuca
Não a inspiração mágica
Cheia de imaginação
Mas a comezinha mesmo
Da mesmice da vida
Das pessoas e suas rotinas
Do real tão irreal
Meio atlântida perdida
Alma desencontrada
Tento encontrar o de dentro
Que dizem escondido
Mas é escancaro
Na face, no gesto, no não gesto
Não faço milagres com a escrita
E nem a escrita me milagra
Fico eu mesma escrita
Nos olhos de quem me lê
Fico esquecida também
De quem lê e não me lê

Saberá?

Olhos negros,
Pele de escuro brando,
Ligeiramente hepático,
O contraste exato;
Dois perfeitos arcos sobreolhos,
De mobilidade surpreendente,
Dançarinos do humor;
Simetria de face rara,
Ventas de vôo incansável;
Ossos marcados,
Quase matemáticos;
Músculos ágeis,
Imponentes,
De hipertrofia certa;
Insinuação de brotos escapulares,
Qual asas diminutas;
E pés insistentes,
Fincados,
Cadenciados,
Trotados;
Homem?
Pegasus?
Homem Pegasus?
Nem ele sabe...