sexta-feira, 12 de dezembro de 2008

Meros expedientes

É o meio que nos apavora. A simples idéia de que qualquer ação ou palavra seja um meio de intenções não nobres, ‘morais’; não um fim, uma verdade, assusta, intriga. Por isso, nego-me ao expediente? Por vezes, rendo-me a ele? E esse perfil ao lado, essa descrição ainda que escorregadia de quem pretende alguma autoria, não é um expediente? Por momentos, pode até ser que eu seja o expediente, o mentor desses textos já escritos, ligeiramente modificados na minha ânsia literária. Por outros instantes, chego a crer no expediente inexistente, no layout copiado, doado pelo google; chego a crer na perfusão de histórias e textos que me assolam, que entram em mim, que eu ingênuo, creio tomar de mim mesmo, já esquecido de onde vieram, do lastro original. De todos os tipos, estilos, de tema vário, os textos vêm, assombram-me, fazem tumulto em mim. Vejo-me mero expediente de assombração. E tudo que se diz, que se faz, quase sempre não é mero expediente? De cálculo quase preciso, e até obtusos, intuitivos, os expedientes são fantasmas inevitáveis, institutos de sobrevivência, de convivência. Onde está o fim, a verdade? Tudo não é mero recurso, expediente?

quarta-feira, 10 de dezembro de 2008

A rosa

Nunca havia dado uma rosa. Comprou uma vermelha forte, de pétalas rijas e reluzentes. Preferiu as sem espinhos. No caminho, teve dúvidas sobre a entrega, mas seguiu. Postou-se no portão da moça irrequieto, num vai e vem de quem quer mais é ir sem deixar rastros. Não foi. Apertou reticente a campainha. Colocou a rosa quase no chão da porta e se foi com o pulmão paralisado e o coração em suspense. Se fosse rosa andante entraria feito gato que afina o corpo pra passar em qualquer greta e se alojaria nas delicadas mãos de moça. Mas a rosa sem espinhos e ousadia ficou ali a mercê, um delicado sinal, prestes a desaparecer. Continuou vívida, quase ansiosa na cor, porém, imóvel até a porta se abrir. E aí foi pétala pra todo lado e caule machucado; a rosa ‘desconcertada’. A moça, num suspiro reprimido, olhou o chão de pétalas de sangue. A primeira rosa recebida na vida, assim despedaçada, mas sem os tropeços do caminho futuro, sem idas e voltas de quem chega e nunca sabe se fica.

terça-feira, 9 de dezembro de 2008

Lobo Judas

Oi?
Por que me olha assim desse jeito?
Desse jeito benevolente?
De olhos semi cerrados?
Por que esse olhar de compadecimento?
E essa calma?
E essas mãos eternamente ocupadas?
Uma bíblia e um cajado nas mãos?
Por que insiste?
E eu?
Por que o olho assim curioso?
E não consigo sentir conforto?
Por que voltou?
Saiu do santinho?
Incorporou a imagem?
Por que essa delicada forma?
Essas vestes verdes de esperança?
Esse manto vermelho contundente?
E esses cabelos que lhe caem na face?
Feito véu, feito chuva mansa?
E essas barbas lisas?
Entristecendo os limites do lábio?
A inibir o sorriso pleno de boca e dentes?
Ou o encolhimento de tristeza?
Por que insisto em mantê-lo aqui?
Diante de mim?
Se não creio com fervor?
Se me confundo na expectativa do existir?
Para que serve essa sua base sólida?
Esses membros ocupados?
Realizados?
Enquanto minhas mãos estão soltas?
Por que não me responde?
Por que me obriga a retornar a pergunta?
A mim mesmo?
Eu que não tenho respostas?

sábado, 6 de dezembro de 2008

Comadre

Há ainda hoje quem cultive as comadres...os compadres. Há quem não os chame mais assim; mas eles continuam presentes. Há quem um dia precise de uma ‘comadre’; aquela de acrílico duro, irritantemente arredondada em forma de semi-prancha para abarcar o que durante anos se tentou esconder nos vasos, latrinas, e canos invisíveis por trás das paredes, para depois levar o conteúdo exatamente para esses mesmos lugares esconderijos. Etelvina tinha horror de toda sorte de necessidades fisiológicas e alimentava-se periodicamente de bananas ‘de vez’ pra evitar descargas sólidas em curtos espaços de tempo. Quantos aos líquidos não controlava tanto, porque eram informes e o cheiro nem tão imediato. Até que um dia sofreu um acidente paralisante; teve que suportar o convívio com a comadre, objeto inanimado, obrigado a se animar, e como...

A comadre ficava lá na beira da cama, parcialmente descoberta pelo balde vermelho, onde Margarida, a enfermeira, depositava o que Etelvina tanto rejeitava durante a noite. Encarregada de trazer e levar a comadre, dar aquele banho de desinfetante e ajustá-la no traseiro da convalescente, e ver o nascedouro de todo aquele resíduo alimentar, Margarida não se importava; já estava acostumada. Mas Etelvina se constrangia de tal forma, que não podia evitar o sentimento de decepção de a virem assim, expelindo o que a humanidade durante tantos anos se aperfeiçoou em esconder, como de forma tão adequada Milan Kundera descreveu na ‘Insustentável Leveza do Ser’. Etelvina era leitora ávida de diversas literaturas, e essa em especial a fez pensar sobre o que tanto a afligia. Aliás, a leitura a deixou parcialmente conformada, porque não era somente ela quem tentava esconder até de si mesma o caráter humano perecível, que já dá suas demonstrações durante toda a vida.

Passada a fase crítica de recuperação, Etelvina não precisou mais usar a comadre. Quase se esqueceu dela. Retomou as rotinas higiênicas modelo. Só de vez em quando mirava a comadre bem ao lado da pia, parcialmente aposentada. Contudo, continuou invocada e incomodada com as excrecências humanas, mas agora muito mais com aquelas escondidas não nos canos por trás das paredes e sob o solo, mas percorrendo nervos e mentes.

sexta-feira, 5 de dezembro de 2008

Gestação

Gang, Gango, Gangor, Gangorra
Gangorra, Gangor, Gango, Gang
Modorra, Modor, Modo, Mod
Mod, Modo, Modor, Modorra
Modorra na Gangorra
Palavras fatais
Abismais
Balanços
Movimentos fatais
Gestacionais

'Fotopictóricos'

Sempre achei que as paredes estavam lá para darmos um sentido a elas. Brancas ou de outra cor exata, prestes a receberem um quadro, um pôster, um artefato qualquer; não simplesmente para quebrar a monotonia e dar um ar decor. Conheço até quem goste de parede nua, sem inscrições aparentes, à espera de um sentido esperado ou inesperado. Cultivei algumas fotos emolduradas nesta vida; permiti que sprays coloridos manchassem os limites da minha intimidade. Montei quase um quebra-cabeça dos meus gostos musicais, cinematográficos e da realidade cotidiana, personagens da minha vida, eu mesmo. Encontrei o exato espaço na parede, onde meus olhos percebiam um significado compreensível, uma lógica incompreensível para outros. Ainda restam muitos brancos que não gostaria de preencher. A localização de cada um dos ‘fotopictóricos’ não é de uma exposição; eles não têm tempo marcado para ir embora, nem estão em busca de uns centímetros mais adequados para visitante ver. Seus lugares nasceram de um sentimento intuitivo de organização dos significados, fazem parte do meu entendimento do mundo. Não me importa que as pessoas se dediquem a contemplá-los longamente e até mesmo que fiquem injuriadas, mas de contragosto civilizado. Não me importo também que cheguem mansamente e me ajudem a montar os sentidos dos meus lugares, do meu lugar, desde que eu não perceba o desmontar de mim mesmo. Tudo o que está inscrito aqui nestas 'paredes minhas' tem um quê de 'seminudez minha', quase um conjunto de fragmentos para que eu me situe, mesmo de forma incompleta, nos momentos de acolhimento de mim mesmo, e até de desencontro.