sexta-feira, 30 de janeiro de 2009

A coleira do Fifi

Há anos perambulava longilínea pela noite com seu cachorrinho poodle. Trazia-o na coleira e destilava seus impropérios, seus diálogos com o tempo, com ela mesma. ‘Vou voltar e te mato, te mato com faca’ e outros fragmentos ininteligíveis. Retornava e encontrava seu marido paciente, sentado em frente à televisão, lendo um livro ou já dorminhoco na cama. Não tirou a faca pra ele; pelo menos não se soube. Tanaka era médico e teve sincera comiseração pela moça. Contraíram casamento e cada dia que passava, ela se transportava mais para os outros mundos. Tinha muitas fixações, mas a coleira do Fifi era mais, virou sua companheira constante. Não a tirava das mãos para nada e Fifi era só mais um pretexto para ficar mais tempo com ela. Um dia resolveu experimentar o apetrecho; olhou-se no espelho e achou que lhe ficava bem e não era tão desconfortável assim; sua garganta há muito já dava sinais de sufocamento. Foi pro outro mundo com a envolvente coleira do Fifi a três metros do chão. Nesse dia ainda era dia. Chegou Tanaka, chegou viatura, toda vizinhança para ver a enforcada. Quando acabaram de retirar a moça do ‘suspense’ e da coleira, tiveram que conter Fifi e o marido na disputa. Fifi latia e rosnava. Tanaka dizia enfático; ‘agora a coleira é minha!’

quinta-feira, 29 de janeiro de 2009

Ainda me lembro?

Ainda me lembro bem daqueles olhos injetados;
Daquele corpo todo irrigado, quase a verter sangue por todos os lados,
A transpirar impulsos áridos e úmidos;
Ainda me lembro do quarto,
Da janela fazendo moldura pra lua;
Ainda me lembro dos membros frágeis de menino,
E dos ossos arrogantes e maciços da face;
Ainda me lembro da luz que não entrou,
Da disfarçada penumbra de olhos atentos,
Dos movimentos em zigue-zague, tateantes;
Ainda me lembro da água escorregadia,
Dos corpos sedentos como rio,
Solitários como o vento;
Ainda me lembro do deserto das mãos,
Do tocar compassado e frio do coração,
E do meu coração nem me lembro mais...
Não me lembro mais...

Trama

Se todo tempo me vem com revelações,
Não digo, nem desdigo delas;
Se todo tempo me vem monótono,
Não desdenho, nem me desiludo;
Tudo espero e nada
Pelo tempo que virá,
Não faço trama,
Porque nem tenho fios de aranha,
Nem sei tramá-los tão fiados e certos;
Estou mesmo é dentro da trama,
E todo fio é também um desvio;
Eh trama que desfia a gente!
Desatina a gente,
Esquece a gente,
Qual é a trama mesmo?

terça-feira, 27 de janeiro de 2009

A verdade de Baldo

Esse trem de verdade e mentira sei lá, dá uma confusão na gente. Eu então, sempre juro; 'digo sempre a verdade, bem lá de dentro.' Outro dia desses o Teobaldo me encheu de dúvida. ‘Que verdade nada, você pensa que é, mas não é.’ ‘Baldo’ conseguiu me deixar mais confuso ainda. Fiquei até meio nervoso, descrente comigo mesmo, com um sentimento de traição entranhada de mim para mim. Coisa estranha essa, quando alguém fala de uma certa certeza da gente, põe em dúvida e a gente se põe a duvidar mesmo. No início dá revolta, depois é uma decepção, a gente acha até que é uma judiação. Aí a gente pensa, repensa e até entende o que antes achava puro descalabro. Baldo falava que a verdade era uma mentira cheia de manha e propriedade, que nem dá pra perceber de tão cabida. Resultado; me deixou ainda mais triste. Aquela história dele virou um bater de sino na minha cabeça, irritante, agudo. Matutei tanto que hoje consigo até entender o Baldo. É que ele tinha mente pra frente, sabia que gente é coisa que muda e a verdade fica lá coitada, deixada pra trás, vira é verdade de outro tempo.

sexta-feira, 23 de janeiro de 2009

Desculpe-me

Não percebe que estou assim, prestes a naufragar. Que envolta tem uma matéria liquefeita que me apavora, que não sei aonde vai dar. Não creio que crê assim, de fato, que tenho uma bússola nas mãos, que sei o caminho, que tenho alguma indicação. Tudo o que vejo é larguidão e sítios desconhecidos. Não insista na minha intuição. Preciso de instrumentos e de um guia até para afundar. Se me larga aqui na imensidão, posso contrariar as leis da física, posso boiar, suspirar e afundar, e nunca mais me encontrar. Posso sumir de mim mesma; e parar em um navio carcomido no fundo do mar, e fazer dele o meu paraíso e meu inferno aquático. Posso acompanhar um cardume, virar comida de peixe grande, ou então, esconder-me num coral multicolorido. Se me guiar, também não prometo nada, não pretendo nada, porque o meu desejo é feito a onda do mar, tem mansidão, tem destruição. Talvez devesse vendar meus olhos, cegar-me pra acender meu olfato, minha audição, meu tato. Quem sabe não encontraria o lugar ou ele viria até mim feito perfume que inebria, som encantado ou superfície delicada. Desculpe-me, são muitas curvas e reentrâncias no caminho; acho que queria mesmo um ninho de limites precisos, perfeitamente adequado para minha imprecisão. Desculpe-me, de verdade.

quinta-feira, 22 de janeiro de 2009

Simples assim

Se quer me agradar
Vá rápido e coloque uma música assim na vitrola
Deixe que ela chegue aos meus ouvidos
E caia no meu coração

Mas faça uma prece pra que eu retorne
Pra que eu não me perca no labirinto do som
Mas dê-me esse som
Pra acordar meu coração

Não interrompa a audição
Ouça comigo na mesma vibração
Não despreze o meu gosto
Que tem muito de emoção

Coloque por favor uma música assim
Que venha morar no meu coração
E que você queira ouvir também
Sem nenhuma reticência
Amante
Cúmplice da minha emoção

http://www.youtube.com/watch?v=sHQ_aTjXObs

quarta-feira, 21 de janeiro de 2009

Sutil entremeio

Já disse. Não quero que me olhe desse jeito, com esse olho de admiração, de reflexão; porque nada há em mim que transcenda o simples habitual. Prefiro e reivindico olhares de cobiça, sem motivos aparentes, ainda que determinados até pelo que vê. Porque a cobiça esconde uma finalidade alheia qualquer, não é de recheio esperado como o admirar. A cobiça é um abismo sem fim ou de fundo longíncuo, uma aventura quase interminável até chegar o fim. A admiração já é o próprio fim, mesmo sem ter fim. Talvez esteja enganado; a gente sempre se engana nos meandros do sentir, porque nada mais sublime do que admirar, mas sem distâncias respeitosas, sem medos tão visíveis. Talvez valha mais a operação admirar mais cobiçar que dizem é amar. Porém, estes entes tão distantes, brigam por qual atitude tomar. É no entre que eles se encontram, fazem festa e inundam o coração. É trivial e sofisticado assim. Cabem rotinas e improváveis, cabem beijos suaves e mordidas ferozes, cabe até o que não se contém; porque entre o admirar e o cobiçar tem um fetiche qualquer vestido e nu, como um carnaval de faces irreconhecíveis, fartas e sedutoras, de melindres e fortalezas. Se não me visita assim com o rosto coberto de todas as máscaras, fico confuso, descrente do absoluto, sempre improvável. Não o renego se só me admira ou só me cobiça, mas interpelo você, louco, incompreendido, magoado por tanta precisão, porque quero a indecisão definitiva, a sutileza do entremeio.

domingo, 18 de janeiro de 2009

Tem

Tem um diz que me diz que não diz
Tem um jeito sem jeito que me atiça
Tem uma bruma no olho que não condiz
E um brilho que diz e rediz e desdiz
Tem alguém que aparece assim
Nem tão de repente
Nem tão imponente
Mas premente
Não mente
Só desentende
Mas acende
O meu coração inocente, reticente, demente e indulgente...

Cada dia

Casara-se com Francisco há cerca de quarenta anos; homem forte, trabalhador, limpo. Agora ficava lá na cama, inerte, mas era bonzinho, aceitava tudo que lhe davam; banana amassada, sopa, alimentos previamente liquefeitos, para ajudar os movimentos peristálticos prejudicados. Wal fazia o que podia pelo marido, mas incomodava-se com aquela situação, vinha uma tristeza, um aperto no coração. Francisco não havia sido um marido desses exemplares, muito pelo contrário, porém tinha suas qualidades e era bom pai. Os filhos a ajudavam na lida com ele. Estranha doença o acometeu; segundo os médicos um tumor silencioso tomava conta do seu cérebro, e assim suas funções iam cada vez mais se perdendo, sem, contudo, lhe provocar dor física. A rotina era cansativa; banho de leito, troca de fraldas, alimento na boca, e na saída ele puxava a gola de Wal como que dizendo ‘fica’. Um dia também apertou com força a mão de Márcio, seu filho, no tom ‘gosto muito de você’. Wal dizia; a gente vai levando como pode, mas se assustava mesmo é quando o marido pegava no sono. Ficava olhando o pulsar da blusa que ele vestia, se o coração ainda batia. Todos os rancores naquele momento pareciam menores; ela não queria que Chico se fosse, ninguém queria. Sensação estranha essa do costume com a vida, mesmo frágil, quase a desaparecer. Todos na casa se revezavam nos cuidados, se consumiam nas incertezas dos gostos dele, se a temperatura e o sabor o satisfaziam, se o corpo estava bem acomodado. Ficavam mirando os olhos dele à procura de respostas. Faziam o que podiam, o que não era pouco. Mas a sensação era eterna impotência, mas ao mesmo tempo um viver pleno no cada dia.

sábado, 17 de janeiro de 2009

Compressão

Sempre tivera a mania de ficar parada, não em repouso contido, mas em inércia. Para que entrar em movimento, se nenhum impulso era forte o bastante, suficientemente sedutor? Por que mover sequer uma fração do dedo, um metacarpo? Diziam que era depressão, que não havia motivo, que tudo era tão cheio de beleza, que tanto havia pra fazer e acontecer. Mas ela queria ficar quieta, como se nada a atingisse, uma pedra, posta, assentada em seu destino mineral. Que se desfizesse assim com o passar do tempo, ao sabor do vento escultor, da água e do ar e retomasse um rumo natural, assim pensava. Juravam-lhe inerte, não entreviam o turbilhão lá dentro; o futuro sonhado, quase memória; o passado que queria esquecer, relembrado a todo instante, definitivo; o presente vazio, no entrelugar. A confusão do estar aqui e agora e não estar, mente solta presa nos idos e no porvir. Disseram-lhe para não pensar demais, para abstrair os insucessos, os infortúnios fatais, os desamores. Mas era tudo feito cria no ventre, de estágios embrionários e finais, provocando a compressão dos órgãos e da mente, fazendo entremeio, ligando pontas improváveis até, passado e futuro enlaçados, comprimindo o presente. Descubrira que a ausência de mover era o próprio entrelugar, o ínfimo instante entre o que foi e o que viria. Não o entrelugar móvel, passagem, sem paradeiro, mas o entre indeciso, alheio do presente, fincado entre memórias e expectativas.

terça-feira, 13 de janeiro de 2009

Entressonho

Sonhara de novo com ele. Não sabia bem se era ‘entresonho’, aquele no meio do acordar e dormir, no ‘entressono’. A presença veio assim exata, como verdade indiscutível. Entrara no carro abarrotado de coisas, ajeitara-se bem no cantinho que sobrara, enquanto na frente ele ia não se sabe pra onde, mas levando-a como um de seus pertences móveis; travesseiros e inúmeras lonas soltas. Ficara quieta por instantes, até que ele se virou brincalhão e começou a cobri-la com aqueles cacarecos todos. No meio da sufocação, ela o deteve, descobriu o rosto e olhou-o fixamente; ‘vim aqui pra te ver.’ Ele reclinou a face suavemente em busca de suas mãos e ela o acolheu; conteve aquela mandíbula e os maxilares fortes entre dedos e palmas, sentiu os pêlos brotando intrigantes, os olhos negros pequeninos e brilhantes, a fronte ampla úmida de suor. Não esperava aquele gesto de quem declinava sempre. Não conteve o impulso de beijá-lo até a eternidade, mas acordou quase que instintivamente, como uma negação à reação inesperada. O beijo que desejara roubar daquela imagem que nunca alcançara, aquela inclinação doce de quem pede um carinho ficaram no entressono.

terça-feira, 6 de janeiro de 2009

Provocação 'Beirut'

Rodar, Rodar, Rodar
Em corpo e membros
E parar remanso,
Dançar, Dançar, Dançar,
Crescer em dedos piano,
Em bocas sopros,
Em mãos percussivas,
Extensão e repressão
Sanfonas flexíveis,
Cordas e pulos,
Respirar sem ar,
Despejar suspiros cadentes,
Morcegos pendentes,
Sonar, Sonar, Sonar,
Solar, Luar,
Quedar,
Acalentar,
Jogar,
Resgatar,
Guerrear,
Mergulhar,
Naufragar.

'De onde veio?' 'De onde 'leio' 'ouvileio': http://www.myspace.com/beruit

Arraial

Sempre julguei o prenome de Arraial como algo pequenino, acolhedor, genuíno no jeito de falar, de postar-se diante de alguém como quem faz uma gentileza, um agrado desses do interior muito mais de dentro da gente do que de uma contingência geográfica. E assim parti para mais uma viagem com minha amiga Vi. Disseram-me que era Arraial D’Ajuda, mas confesso que o contingente turístico não permitiu tanta ajuda assim, embora não deva negar a ajuda de alguns. Disseram-me também que estava na Bahia, meu vizinho aqui de Minas, da maneira do Norte, dos sarapatéus, bobós, tapiocas, vermelhos e axés. Estive lá sim, porém senti falta do sotaque exagerado, preguiçoso baiano como ninar de rede em todos os cantos. Fiquei procurando a Bahia dos meus sonhos. Terminei ouvindo baianês, sons latinos e europeus; visitei avenida elegante de suveniers, roupagens e petiscos italianos, argentinos e tantos outros no arraial. Esperei um rodízio de massa na única mesa redonda do Mr. Pastas argentino; só esperei, mas comi um delicioso bolinho de aipim com camarão na barraca de um migrante mineiro lá em Pitinga. Vi pôr do sol na barraca do Parracho ao som axé ‘contaminado’ de tantos outros suingues, guitarras e tribo em festa. Mergulhei em mar de água mansa Mucugê, de onda que quebra em coral e vem balançar a gente em remanso leve. Vi azul de todos os tons de mar e céu, conheci gente do Albergue, da rua e do mar, do quarto de dormir, Marisa, Jana e Solange, gente de correr e subir a ladeira, gente de acolher e gritar e cantar. Não visitei um Arraial, visitei uma vereda de contingentes imensos, distantes, próximos; um sertão que virou mar, se perdeu mar por tantos que chegaram. E eu desavisada, não desesperei, esperei até o último instante o Arraial e ele estava lá imponente por trás, em detalhes que talvez me escaparam, na história que se fez. Agora, pensando bem, o Arraial está aqui, está lá...Arraial é dentro da gente mesmo, no desejo dos encontros de verdade, dos encantos. Confundi-me no entrelugar, nessa ânsia da procura de um único lugar que não existe, de nacionalidade precisa, de modo exato, que faz a gente querer congelar o instante, na busca de uma identidade que se desfaz em multiplicidade inevitável.