sexta-feira, 27 de março de 2009

Confesso

Confesso que já estava me achando um tanto teimosa e arcaica sobre as opiniões satisfatórias e mal argumentadas sobre a famigerada reforma ortográfica, até que li o texto primoroso de Glauco Mattoso, 'O orphanato inglez e o asylo portuguez', no site Cronópios. Confesso agora que encontrei explicações plausíveis que tocaram minhas faces práticas e poéticas...Texto bem escripto, sem apologias ao trema, mas acolhedor crítico dos hífens e da riqueza da língua...Por que apagar a história, a etimologia, confundir os dizeres, matar o entrelugar, a identidade com a palavra segura e expandida no tempo? A mutação das palavras é uma urgência tranqüila, uma inteligência da língua, um entrelugar...

Link:
http://www.cronopios.com.br/site/colunistas.asp?id=3880

segunda-feira, 23 de março de 2009

Cachoeira nua

Cai tão garbosa,
Enevoada de fumaça,
De barranco tão bem formado,
Que dá vontade é de olhar,
E quedar...

Canta seu som de sereia,
Quase exala suavidade,
E extravasa pingo forte,
De ardor delicado na pele,
Que dá vontade é de desaguar...

Queda tanto,
Sem medo,
Em ninho poço escuro,
Sem muros,
Até escorrer de novo,
E queda no sem fim,
Perene, nua sob o sol, sob a lua...
Que dá vontade é de ‘nudar’...

sexta-feira, 20 de março de 2009

Saudosa

A saudade nem sempre foi,
E nem sempre esteve no ponto certo,
Na lembrança pronta;
A saudade é visguenta,
Gruda até na expectativa,
Nos gestos indeléveis
E naqueles só rascunho,
De olhos sedentos de imaginação;
A saudade é premente,
É demente,
Mas se finge de ausente;
A saudade tem unhas afiadas,
De gatos manhosos e fugidios;
A saudade corre,
A saudade morre;
A saudade se compraz da chuva e do sol;
Aguça os ânimos calorosos e melancólicos,
E se o desanimo a pega,
Ela se põe a reviver em desatino,
E a gralhar fino de asas descompassadas,
Pela lembrança perdida,
Pela lembrança que desencontrou.

quinta-feira, 19 de março de 2009

Abandonou a cidadela

Ela andava reticente pelas ruas, sempre cabisbaixa, em uma linha quase reta, não fosse a premência das curvas pelo caminho. Pensava sobre o que haveria nas casas, quase fortalezas amuradas, reservadas. Envergonhava-se de incomodar alguém com o olhar. Pensava sobre si, incompreendida de si para si, voltada para o fim. Até que um dia começou a virar o rosto, ainda meio desconfiada da luz dos objetos e das pessoas. Olhou para o alto e percebeu árvores imensas, postes imponentes de luzes quase lua; tudo pareceu a ela tão elevado, mas não assustador. Percebeu seu espírito livre, que os caminhos não precisavam ser os mesmos, que poderia flanar, perambular sem destino, longe das tormentas que assolavam sua mente, seu corpo, seu caminhar. Resolveu se meter em qualquer lugar e sair sem dizer até logo, mesmo sabendo que não retornaria. Voltou-se para todos que passavam com sorriso e cumprimentos suaves e, por vezes, curiosos. Deixou-se sentar em quase todas as praças e contemplou todo o vai e vem, todo o lúdico e erótico dos passantes e dos ficantes. Chegou quase a se esquecer de onde morava, de onde viera, até que se cansou e se lembrou, e voltou, mas nunca mais na disposição do fim. Sua casa se tornou também meio, de conversas ávidas, fartas de histórias; e ela sempre reservou um tempo para flanar, robustecer-se com a beleza das trivialidades e das excentricidades, dos humores do ar e do céu, dos encontros previstos e inusitados. A cidadela de sua alma se perdeu e se achou no entremeio.

quarta-feira, 18 de março de 2009

(In)condicionado

Debaixo do ar condicionado
O menino se deliciava
Fugia do mormaço
Do ritmo fervente
Do funk da boate
Fazia a sua dança
Sob a brisa condicionada

Debaixo do ar condicionado
O menino escapava
E olhava
Quem o aprouvesse
Um par
Uma dança sob o ar
Sob a brisa condicionada

Debaixo do ar condicionado
O menino sorria
Balançava
Compartilhava a brisa
E interpelava alguém
E procurava alguém
E sonhava alguém
Sob a brisa condicionada


Debaixo do ar condicionado
Não tinha condição
Senão o a brisa condicionada
E a leve sensação
Do afeto incondicionado
Sob a brisa condicionada

Intruso bem vindo

Ninguém mais que Nietzsche tem me aproximado tanto do entrelugar. Minhas releituras de parte de sua obra me tocam agora de tal maneira, que a inquietação quase me sufoca. Talvez seja o ‘espírito livre nietzscheniano’ a me cutucar de forma insistente. E essa transmutação em direção ao desapego das coisas sem importância é dolorosa de fato, porque, simplesmente, não parecem sem importância; o sentir se confunde no entrelugar. E como o parecer nos assola nestes tempos de pós-modernidade ainda com mais força. O ser, de fato, cada vez menos importa, e isso é atualmente alavancado com força total pela difusão descontrolada das imagens e da reprodução de objetos de consumo, cada vez mais voláteis. Creio que seja um dos principais motes da psicanálise tratar exatamente dessas escalas de valores morais e da organização social que absorvemos durante a vida, e que, constantemente, enganam-nos, porque ‘se prestam’ a preencher falhas muito mais profundas, que negamos mesmo que inconscientemente existir. E a filosofia é esse ponto transdisciplinar estimulante do pensar além do orgânico, além do individual, para exatamente alcançar o indivíduo naquilo que ele tem de mais essencial. Todo o organismo se ressente e se abate por força até do pensamento do desligamento daquilo que os valores sociais engendraram e nós introjetamos de forma quase irremediável. E o espírito livre é esse ponto de instabilidade, de inconformidade para os olhos dos outros e até da gente mesmo. Talvez proximamente faça uma ode ao espírito livre, este intruso bem vindo do entrelugar contraditório, angustiante, doloroso, apaixonante e libertador.

terça-feira, 17 de março de 2009

"Niilistas Graças a Deus"

Se niilistas estamos é porque cremos sim, mas na conduta humana como a máxima culpa; não a malévola culpa, mas a conseqüência de escolhas e das responsabilidades sobre elas. Esse questionamento sobre o uso das ‘muletas’, quando Deus é invocado como agente fundamental, quase como se fôssemos marionetes, fez do niilismo um movimento quase sempre ligado à concepção divina. Talvez por isso mesmo Friedrich Nietzsche tenha apontado Deus como o responsável por sua própria morte e também da religião, embora essa idéia na época ficasse reduzida a um grupo pequeno de pessoas e que hoje ainda seja invocada com tanta força, porque a ânsia do divino é uma urgência própria do limitado ilimitado humano.

Deus é exatamente essa necessidade de origem, de um pai todo poderoso, da hierarquia consagrada com finalidade de ordenação social, da perpétua luta contra os ‘vícios morais’, das obrigações de condutas pré-estabelecidas, das ‘punições necessárias’ e muito mais, da tentativa de manter o poder institucional e de sairmos parcialmente ilesos das nossas próprias ações, sob pena de expiar eternamente. Mas no mundo ‘real’ nem sempre expiamos o que a sociedade julga como pecado. Porque a noção de pecado é variável e mesmo aquela tida como inquestionável como os crimes terríveis, está sob a mira das regras forjadas na própria sociedade; e Deus entra como ator coadjuvante, mesmo disfarçadamente. Quem decide mesmo é o humano com poderes divinos, inspirados na sabedoria ou na ignorância.

De fato, o Deus, freqüentemente aclamado, é uma das faces da luta pelo controle, pelo poder. Se invocamos o sagrado, de forma alguma devemos ser condenados. É permitido transcender, às vezes, até preciso, dada a nossa fragilidade ou inconseqüência de perceber e de mover. Mas é permitido também buscar provas mais concretas da nossa existência, formular perguntas sem respostas, acreditar na nossa capacidade de reunir argumentos, explicações possíveis, ainda que sempre nos escape um detalhe. O divino, que dizem estar em Deus, é muito mais uma forma de agir com nós mesmos e com os outros, a que devíamos chamar sabedoria. A entidade Deus, por vezes tão necessária, não é senão um jeito de buscar a melhor conduta. Por isso, é lícito invocá-lo, mas não como um mero dispositivo substitutivo para aquilo que não compreendemos. É justo humanizar o divino instituído, tal qual fez José Saramago em ‘O Evangelho Segundo Jesus Cristo’. É lícito também nos fiar em nós mesmos e em tudo aquilo que ilumine a visão.

Des(crer) humano

É preciso romper os laços frágeis,
Quase inexistentes;
Romper as ilusões;
Os contratos não firmados,
Sem fatos,
Incompreensíveis,
Ininteligíveis;
Cortar expectativas;
Esperanças falsas;
Sonhos tortos;
Imaginários forçados,
Nascidos mortos,
Esfarrapados,
Sob veste
Aveludada e protetora;
Desnudar o inconsciente;
Abarcar a antevisão;
Abrir o olho da fronte;
De cabeça baixa,
Escutar som,
Imagem,
E sensação;
Jamais olvidar-se
Dos entremeios certos
E das finalizações incertas;
Mas no ‘humano, demasiado humano’,
É preciso se desfaz,
Na crença
E na descrença,
Extorquidas
Pelo desejo latente,
Ou premente,
De (des)acreditar...

segunda-feira, 16 de março de 2009

Entrelugar ‘nietzscheniano’

Longe e perto de provocar-me encantamentos, a filosofia de Nietzsche traz-me senão um susto calmo, um remanso de inquietação. E agora, vendo-o mais humanizado em “Quando Nietzsche Chorou”, de Irvin Yalom, ponho a me perguntar de seu “Humano, Demasiado Humano” nos seus aforismos dispersos, quase a exaltar o devir humano, a inconstância, embora em constante busca do si por si mais verdadeiro. E se “Entre o Bem e o Mal” estamos, é exatamente nessa transmutação permanente que invocamos o destino da nossa existência, quase o prenúncio de um tombo ou de um surgir de asas. É essa constatação tão própria do entrelugar que tento por vezes devassar e ignorar que me emociona alegremente e também me entristece. Porque o caminho não está posto, embora permaneça lá para ser traçado, inquiridor, ameaçador e acolhedor. E o amor ‘nietzscheniano’? Será mesmo como um corpo relacional, quase político, nada mais que uma disputa de poder, a necessidade de contrair para si a segura crença na previsão, no controle da situação? Talvez. Contraditório? Talvez. Mas se é a contradição que mora no entrelugar e o devir é o próprio entrelugar, Nietzsche deve sim ter chorado lágrimas ferventes e gélidas com os lábios em movimentos de riso e solidão.

sexta-feira, 13 de março de 2009

Por que o nome?

Por que o nome?
Se nenhum está mesmo inscrito na lápide da alma?
Por que o nome?
Se são tantos e, por vezes, irreconhecíveis?
Porque o nome?
Se a identidade é senão um substrato a serviço das normatizações,
das identificações rasas?
Por que o nome?
Se tão frágil,
desfaz-se na multidão de repetições,
das palavras sempre ditas, ouvidas,
Por que o nome?
Se o personagem se encontra e se dispersa num emaranhado de sentimento,
no volátil do existir?
Porque o nome?
Se as alcunhas,
forjadas na surpresa e no carinho,
podem ser muito mais apropriadas,
embora engraçadas,
ilícitas
ou constrangedoras?
Por que o nome certificado, doutrinado?
Por que não os nomes?
Prontos para as transmutações dos corpos, dos gestos e do que os anima?

terça-feira, 10 de março de 2009

Sem fim

Hoje vi a lua gigante enfumaçada no céu de meio clarão,
Veio uma comichão de voar irreprimível,
De balançar de asas em sustenido,
Até todo corpo desfalecer em ninho de nuvem;

Hoje você passou perto e distante de mim,
Lançou o olhar ao longe,
Absorto,
Perdido no sem fim,
Nem ousou olhar pra mim...

Hoje eu nem quis mirar você,
Sob pena de afogar-me em mágoa de mim para mim,
Porque se olha e não me vê,
É porque nem vê mar,
Nem cardumes coloridos,
Nem corais delicados,
Nem pôr do sol,
Nos meus olhos
Quase de mar-fim...

segunda-feira, 2 de março de 2009

Coisa estranha

Nervosia é mesmo coisa estanha. Vem no bem, vem no mal. Se nos encantamos ficamos trêmulos de nervoso. Se um desconhecido amedronta e se aproxima vem aquela nervosia do mesmo jeito. Doideira isso; o bom ficar tão perto do mau, o entusiasmo tão próximo do medo. Será que é porque alegria dá medo? Nem sei...Sabe quando vem aquela imagem esperada e inesperada ao mesmo tempo? O anunciamento de um afeto delicado, uma espécie de amor? A gente fica nervoso, de mãos trêmulas e palavras saltitantes, quase a tiritar como no frio. Se desconfiamos do perigo, aí é que o trem fica feio, é tremura pra todo lado e suador frio e perna bamba. Parece mais é agonia de paixão. Eh coisa misturada meu deus! Num entendo mesmo esse negócio de nervosia. A gente não devia era ficar nervoso, nunquinha! Nervosia é denúncia de amor que não tá na hora de declarar, e de medo. Deve ser porque amor dá medo e a gente tem medo de não ter amor.

domingo, 1 de março de 2009

Atravesse

Se há alguém do outro lado da rua
Que seja mesmo uma avenida
Se te dá uma comichão
Uma curiosidade
Pelos trajes
Pelo menear dos cabelos
Pelo andar vacilante ou seguro
Atravesse sem medo
Diga olá
E verseie
Fale de Fernando Pessoa
Recite até Camões às avessas
Mas faça algo lisonjeiro
Aceite ver o nascer do sol
Mesmo em dia nublado

Quem não se conhece merece odes
Altivez e reverência
Porque a surpresa é amiga da vida
E se lá do outro lado não encontrar um grande amor
Daqueles de turbilhão inesquecível
Poderá encontrar a exata afinidade rara
Os dizeres de quem se reconhece
Mesmo de repente como se há muito...
Se já houvesse um outro encontro
Escondido no tempo irreconhecível
Colocado no presente esquecido do passado

Se há alguém do outro lado da rua atravesse
Não hesite
Mesmo que do outro lado não haja o que espera
Ainda assim atravesse no instante certo
Antes que a imagem se desfaça
Que vire sonho perdido
Amizade roubada pelo vento
Por favor, atravesse...
Em linha reta
Ou obtusa
Balbucie ou grite
Mas retenha o momento
Fortaleça a lembrança
Atravesse...
Se achegue...