terça-feira, 30 de junho de 2009

?Idéia?

Mudo de idéia toda hora. Mudo de idéia, não aquela súbita, de pronto, perfeitamente utilizável para o momento. Mudo de idéia que cozinha, que ganha e perde arestas, que engurgita e vomita partes de dúvida, partes de medo. Mudo de idéia não porque sou mutante, estreante de uma cena mágica, inovadora. Mudo porque tem um vento presságio que sopra sobre mim, um anúncio sôfrego qualquer, uma outra idéia. A mutante idéia que me atinge é a soma de incongruentes idéias que tomam aquela primeira, assaltam aquele inocente pensar e agir espontâneo. Mudo e desmudo também, retomo aquela idéia já corrompida, gasta e invadida. Num lapso de momento chego a esquecer da idéia, aquela primeira. Mas jamais esqueço, no fundo jamais esqueço...Porque num dado instante era uma idéia de asas fortes e transparentes, e mesmo depois quando vira mariposa fincada na parede, ou a esvoaçar como num filme de terror, ela reivindica um agir qualquer, mesmo distorcido, assustado. Mudo de idéia, assusto a idéia, acalento a idéia e chego a ficar sem idéia; e a idéia mais óbvia me toma, a partícula mais presente, mais reluzente; a procura da
?idéia?...

sexta-feira, 26 de junho de 2009

Óculos

- Como você enxerga sem óculos?
- Como?
- Tenho curiosidade...como você enxerga sem óculos?
- Ah...tudo embaçado...o bonito fica feio e o feio bonito...
- Quer dizer que quando diz que sou bonita é por causa dos óculos?
- Mais ou menos...
- Explique-se melhor, por favor...
- O bonito não fica tão bonito...é isso....fica tudo meio borrado....os limites pouco definidos...mas no fundo no fundo dá pra sentir que sem óculos é bonito...
- Se apaixonou por mim de óculos ou sem óculos?
- De óculos...é claro...
- Qual meu problema sem os óculos então?
- Ora...estou sempre com eles...
- E se tivesse sem eles por algum motivo, exatamente, naquele dia em que me viu pela primeira vez?
- Não sei...talvez nem tivesse visto...vejo borrado sem óculos, mas só de perto...de longe vejo quase nada...
- Quer dizer que sem óculos eu seria quase nada?
- Não, não é isso...corrijo...meus óculos são como lupa, aumentam a beleza e a feiúra...sua beleza aumentou meu amor...
- Ah bom...mas tire os óculos por favor...quero ver os seus olhos...
- Não gosto deles sem óculos...eles, os óculos, me fazem apropriar do limite e me esquecer da imprecisão...da verdade...
- Já entendi...me vê mais bonita de óculos...tudo bem...não vive sem eles mesmo...

quinta-feira, 25 de junho de 2009

'Parecimento'

Acho que o problema é o ‘parecimento’. Tive olhando assim, com calma, o andar, o olhar, o desajeitar, o confuso do pensar...até o medo que dá nela. Oh gente, como parece comigo aquela menina. Tô crente que gosto dela, mas de repente mudo de pensamento; penso que é tanto parecimento...Será que dá certo isso Meu Deus? Parecimento parece aparição...a gente ali na outra pessoa. Me vejo nela assim com o passar rápido, numa correria danada nem sei pra quê...Me vejo naquela menina de olhar encantado, de desejo forte e fraco, de pisar flutuante pela visão inquietante do amor, e ao mesmo tempo de pisar pesado nos fazeres de todo dia. De verdade mesmo? Nem sei se é tanto parecimento assim, mas parece que é, sabe? Fico imaginando o jeito dela e tudo que vem neste meu olhar meio anuviado é parecer, é espelho. Nunca gostei assim de ninguém que tivesse parecimento comigo...nunquinha... Agora tô assim mais confuso ainda, porque nem vejo tanta beleza assim, muito menos elegância e acordo, mas acordo pensando nela, desajeitada abrindo os olhos, espreguiçando embolada em monte de pano, meio tonta e mal humorada, cheia de conversa séria, poética e, às vezes, tão real que dói. Penso nesse parecimento comigo, nessa dúvida até de mim mesmo e desse meu gostar diferente que nasceu...Oh gente...é tanto parecimento que nem sei...Parece que tô gostando dela...

quarta-feira, 24 de junho de 2009

Cansara-se

Cansara-se daquela boca entreaberta, nem palavra nem silêncio. Cansara-se daquele dito ínfimo, quase balbuciado, cheio de crispas, mal dizeres escondidos. Cansara-se daqueles dentes cerrados, apertados a impedir a saída do som límpido e libertado. Cansara-se de ter ao lado um não quisto, um quisto indelével, impertinente, quase um nada vestido de tudo, com poses dominantes, olhares foscos, irritantemente olhares, olhares sem querer; só obrigação, numa espécie de comiseração necessária, incontrolável. A face dele tinha mudado nos últimos tempos...ou será que ela não o enxergara antes? Realmente não sabia o que acontecera, mas tinha suas náuseas estomacais aumentadas e um tilintar na cabeça e uma dor no coração que se rompia em lágrimas engolidas, feito cachoeira virando poço fundo, sem saída. Ela queria entender como ele se transformara assim, ou se sempre fora o imperceptível...a mancha escondida naquele ar de todos os dias, um ar desgastado e corrompido por interesses pessoais, desumanizado...de peças carcomidas, enferrujadas pela ausência do lubrificante carinho e respeito.

sexta-feira, 19 de junho de 2009

Linha círculo

Nada mais lhe tirava tanto o sono como a incerteza. A dormida era entrecortada, poder-se-ia dizer um dormir cansado como um susto vago, sem explicações plausíveis, senão a dúvida. Afonso aparecera do nada e ela tinha medo que desaparecesse da mesma maneira, que deixasse apenas lembranças frágeis, imagens borradas. Sua cabeça pesava de uma densidade desconhecida, quase um planar e afundar de súbito; um entrelugar, não daqueles lúdicos, misturados, carregados de saberes sobrepostos, pendulares, num vai e vem inconstante e inevitável, mas um pesar sem encanto de fronteira, angustiante. Sua vida andava calma, sem novidades, e ela finalmente descobrira que sua própria existência, sua família, seus amigos e suas pequenas conquistas do dia-a-dia eram um mundo, senão feliz, até razoável. Mas Afonso entrara e virara um tilintar impreciso, às vezes encantador e amigo, às vezes estranho e perturbador. Vinha aquela sensação do que viria a ser, de alguma fração escapada, a que se habituara, e ela sinceramente receava alterar e retomar expectativas que não figuravam mais em seus horizontes. Mas depois de Afonso, seu horizonte não era mais sóbrio e tênue a perder de vista, tranqüilizante. Era uma linha em desassossego, uma corda de brincadeira de criança, balançada à exaustão e deixada de lado, uma linha círculo, duvidosa.

quinta-feira, 18 de junho de 2009

Cortejo de risos em Nossa Senhora

Os pingos de chuva desciam na coreografia do vento. Fria e copiosa, a chuva, às vezes branda, era persistente. A rua Nossa Senhora de Copacabana se estendia até o sem fim e na procura da estação do metrô Siqueira Campos a moça menina de véu branco, contas pretas no colo e vestidinho curto de motivos indianos, esgueirava-se por entre as raras sombrinhas, posto que a maior parte dos passantes preferiam as marquises e as corridas nos intervalos. Uns iam bem agasalhados, outros em clima de praia; todos confusos diante do choro do céu e da ventania.

Marcinha pequenina ia na cadência de suas canelas finas, ligeiramente arqueadas e ágeis, na liderança das outras duas. Estas iam sempre atrasadas a sorrir e se lamentar do tempo ruim, principalmente porque a caminhada sucedera um considerável prato feito de carne de panela e aipim; isto depois de um banho de mar morno regado à chuva friinha bem na pontinha da praia, beirando as rochosas do Arpoador, e da providencial banana debaixo dos cavaletes pra pranchas na calçada. Pareciam três meninas desavisadas, em busca do mar, na fuga da chuva; teimosas e insistentes com o tempo, no eterno esperar do sol, mas sinceramente desapontadas.

Até que em uma das quadras, quase no meio da romaria em Nossa Senhora, deu-se o curioso sorriso do mendigo, digno de lembrança. Marcinha de véu suscitou risos incontroláveis no figura ali meio deitado, barbas compridas e pele morena, e as companheiras pegaram ele no ponto e sorriram também da corrida da menina do véu. Não se sabe ao certo que grotesco ele percebeu, se a figura misturada, se o ritmo, se o cortejo nada religioso em meio à multidão, mas gargalhou deliciosamente e fez da chuva um riso...

quarta-feira, 17 de junho de 2009

Revisto

Há lugares que revisitamos e nos tomamos subitamente de desagrado, de sensação repetida, enquanto outros parecem sempre novos, ou velhos o suficiente para nos dar sensação de aconchego. Há lugares falados, repetidos ao extremo e ainda assim novos. Aquela rua desaguando na montanha, aqueles largos apinhados de carteados de chapéu e cãs, a lanchonete da esquina com seus notívagos sonolentos, o museu parque de águias de asas abertas no embalo de mais uma caçada e o sobrevôo do avião gigante; a família canina de jogos e brincadeiras à beira mar, o patinho mergulhão, as elegantes gaivotas e os urubus, de negritude rara. Uns chamam Catete, outros Aterro do Flamengo, uma linha divisória tênue no entre, de histórias Machadianas, de habitat nobre e até ditatorial, mas hoje, delicado, esquecido e lembrado. Um lugar no Rio de Janeiro para ficar, passar sem medo, revisitar.

Visita

Quero que me visite,
Mas só os pedaços;
Quero que se despeça,
Sem demora, nem pressa;
Quero que venha,
Como dama,
Só cheiro e noite,
E olhos caídos,
A me convidar pro sono;
Sonho juntado,
De pedaços fundidos,
Feito ferro aço,
E maçaricos cortantes,
Ferventes,
Pedaços grudados e esfacelados;
Quero que me visite,
Inteiro e despedaçado,
Descalço,
Inquieto e cálido;
Quero aquele dedo percorrendo faces,
Aquele peito grudado,
A saltitar leve,
A escapar veloz,
Aquele gesto sem restos,
Honesto,
Perdido e honesto...

quarta-feira, 10 de junho de 2009

Sonhos

Sonhos
Claridade na noite
Nos arrabaldes de nós mesmos
Sonhos
Em ângulos dispersos
Incongruentes
Na congruência dos desejos
Sonhos
De olhos cegos
E mentes iluminadas
Até raiar o dia
Até cair a noite
Sonhos
Inventos de vida
Precipícios
Planuras
Aquele fio horizonte
Aquela lâmina d’água
Aquele lusco fusco
Sonhos
Claridade na noite
Nos arrabaldes de nós mesmos....

Imortal

Sonhas imortal ser
Crês na vida em constante surgir
Num trocar compassivo
Sem fim
E tens aversão à morte
Sonhas imortal
Feito quadro de parede justa
Ou preferes um epitáfio sonoro
Sonhas imortal
Tanto que olhas pra si
Tanto tanto
Que esqueces
Sonhas imortal
E não vês
Os outros
Onde poderás ser imortal...

quarta-feira, 3 de junho de 2009

Traslados póstumos

Traslados póstumos nunca fora uma opção instigante de trabalho. Mas sua Caravan era espaçosa, de cor sóbria, e as mortes tão corriqueiras quanto os nascimentos. Só nunca pensara na possibilidade de conviver tão perto da morte, embora ela sempre estivesse a espiar. E foi como uma oportunidade mais ou menos plausível que os traslados pós mortem entraram definitivamente em sua vida. Foi até a casa funerária e ofereceu seus préstimos...Hoje passeia garboso em sua banheira motorizada, mortiça, de letras garrafais cor se sangue anunciando o inevitável...Ressente-se quando alguém manifesta desdém de seu ofício e cumprimenta todos da vila onde mora com sorriso largo, vívido e resignado.