segunda-feira, 31 de agosto de 2009

Azeitonar

Aquela reunião regada a vinho se repetira;
Dessa vez era um Rosé, quase um licor de morangos excessivamente maduros, barato, mas degustado com prazer; com jeito de caro nas mesmas taças repetidas, ávidas pelos lábios;
O vinho era fálico e o corpo amolecia;
As falas reverberavam na alma e os ouvidos se distraíam e voltavam, sem pudor de não ouvir, de não ter qualquer parecer sensato a dar, senão o contemplar do aconchego e da familiaridade do instante;
Na mesa o pequeno prato com azeitonas verdes e nas bocas o experimentar sendento das esperanças, verdes;
E as verdes esperanças eram engolidas sem respirar entre os dizeres e risos já amarelados, querendo esverdear de novo, azeitonar, com o sal na medida e o oliva reparador...

quinta-feira, 27 de agosto de 2009

Com quem será?

Sua cabeça fervilhava, mas não de uma perfusão de acontecimentos, lembranças ou versações da alma, e sim de um único assunto, o qual nada nem ninguém jamais conseguiria remover. Virgílio tinha, aparentemente, meia idade, porém nada em sua imagem revelava desgaste excessivo; o corpo era esbelto em baixa estatura, os dentes bem cuidados e as linhas pela face ainda rasas. Ela o conhecera na rua mesmo, paralela à estação do metrô, de camisa azul com logotipo, calças jeans. Os cabelos grisalhos colaboravam com a aparência distinta, mas o sorriso revelava algo de torpe, sedutor e enganador. Encontraram-se algumas vezes, muitas talvez. Contudo, a vida dele sempre pareceu, a ela, um tanto nebulosa. Diziam que era separado da esposa, era professor de instituição reconhecida, ainda que não ganhasse muito; pegava o trem urbano todos os dias e, por vezes, na sexta, tirava seu carrinho da garagem. Seus encontros foram sempre furtivos, guardados para beijos e roçar de pele e pêlos e mãos exploradoras, na praça, no bar, no cantinho escuro da rua. Nesse tempo ela andava com sorriso sonhador e queixo avermelhado. Disso tudo, sobrou quase nada na alma dele e tudo na dela, uma batida forte na cabeça; Virgílio, Virgílio, Virgílio...e uma seqüência de ladainhas, tanto que as falas se repetiam e também as inconclusões.“ Ele está com ela. Tô falando. Ela, a Mariângela, é ela, ou então é a filha dela, porque a filha dela é nova, bonita.” Outras vezes se lembrava de Mara, uma vizinha, que tinha se envolvido com Virgílio em primeira mão, ‘aquela traidora, que me trazia salgadinhos com a cara mais limpa’. Depois era a Gina, negra corpulenta da escola, bem vestida com pose no carrão. Mas agora era mesmo a Mariângela; ‘a conversa dela é esquisita. Ela comprou até cama de casal. Agora deve estar lá deitada com ele no bem bom e eu aqui sozinha.’ Ela se ressentia por não ter dado boa vida ao Virgílio. Lamentava não ter lhe dado a comida quentinha e outras quenturas descaradamente. 'Eu acho que a Mariângela deu até carro pra ele. Eu vi ele saindo do prédio dela na hora do almoço. Bem, ou tá com ela a Mariângela, ou com a filha dela, que é nova, bonita.' E interpelava e concluía: ‘ele não presta né? Nem vou mais ligar pra ele; ele não presta mesmo...mas é tão bonitinho...eu gostei tanto dele...’ E duvidava: ‘ou ta com ela, a Mariângela, ou com a filha dela, ou com a Mara...ele teve um caso com a Gina também...’

terça-feira, 18 de agosto de 2009

Aparição

Aparição é coisa de assustar. Tem visões que nem são visões e são visões, porque parecem visões. De tanto esperar e evitar e esperar aquela imagem, a surpresa pelo privilégio daquilo divinizado diante de si, fez faltar o ar. O corpo ganhou tamanha capacidade de sobrevivência e os tecidos, todas as células ficaram atléticas, apnéicas, mudamente histéricas, amitocondriais, enquanto a imagem dela desaparecia frente a sua fisiologia alterada naquele instante. Tudo que poderia ter dito se calou, porque o instinto de sobrevivência não permitiu nem raciocínio, nem fala que valesse ou suportasse a confusão por dentro dela. E a torcida era toda para que ninguém percebesse, tão incomum pareceria algo assim não dito e tão vívido e vivido. E qualquer gesto não valeria, porque simplesmente, tudo o que se apoderara dela era uma espécie de dormência, porque, afinal de contas, não havia mais oxigênio em parte alguma. Aparição é coisa de tirar o ar e não cabe entendimento algum. É uma espécie de constatação sem argumentos e sem salvação, simplesmente aparição.

segunda-feira, 17 de agosto de 2009

Uma cama no além

Ele vinha sempre, nos últimos meses, deitar-se ao seu lado na cama, naquela cama que insistentemente adquiriu, mais ampla, como se realmente houvesse alguém pra se deitar ali todos os dias, desde sempre. Foi divino já tê-la ali, espaçosa, ainda antes que ele chegasse. De fato, ele parecia meio fantasmagórico, posto que nem sempre se deitava na mesma hora que ela, nem mesmo se levantava quando os olhos dela se abriam para as manhãs obrigatórias, com seu coração ainda em sono de sonho. Ele surgia em horas imprevistas quando a mente dela divagava e o peito ansiava um afago, e o corpo sofria de uma angústia inexplicável. E ela se alegrava por tê-la, a cama tão grande pra que ele se aconchegasse, mesmo que não ocupasse todos os espaços, sempre insistente que era na superposição de corpos, como se o vazio o aterrasse, o vazio daquela cama. O rosto dele nem sempre vinha o mesmo, muito menos o corpo; por vezes parecia-se com alguém conhecido, mas ela pressentia que, de verdade, o reconhecimento era algo forçado, como se um fantasma não coubesse naquela cama, mas antes um desejo bem formulado, exato dos gestos que seu corpo pedia sem reservas. E aquele desprendimento todo, aqueles arrepios e convulsões vinham de um jeito sôfrego, porque sempre aquele que vinha se afastava, mas sem movimento algum, e aquele espaço da cama de estendia no além...

quinta-feira, 6 de agosto de 2009

Soletrado

In-sig-ni-fi-cân-cia… Era assim desse jeito soletrado que seu sentimento vinha, quase num ecoar de badaladas de sino intermitente, e essa palavra tinha quase a exata substância do que ela sentira durante muitos anos de sua vida, embora, por vezes, tentasse se enganar. E aquelas imagens de rotina, que vez por outra se mesclavam com uma ordem de insatisfação com tudo, mas sobretudo, com o passar do tempo irremediável. Ao lado aquela face já marcada e aquelas mãos já gastas no traje preto e nas pulseiras de contas a rememorar um tempo; e num paradoxo a mesma inquietude com o bater forte do sol na pele ainda sensível. Na descida de um ponto de ônibus qualquer aquela outra face de dentes alvos e olhos arbóreos, quase um esperar calmo, sem desatino, uma promessa. Mais uns passos e lá vinha a fadinha no borboletar de asas e óculos cor de rosa e aquele vestidinho verde água puxados pela mãe, apenas uma fantasia da vida que por não se saber vida real, sobrevive imageticamente, com delicada força, até desaparecer... assim como o passar do tempo...até desaparecer...In-su-por-tá-vel, assim soletrado também, era toda a ambiência em que ela se apresentava, porque dentro de si havia algo que faltava tão densamente, que transfigurava tudo a sua volta num remoer de coisa já moída, prestes a desaparecer...E ela não queria ser solidária, companheira, nada do esperado dos outros, senão a pura imagem do desprezo por tudo a sua volta, porque dentro tudo era confuso e triste e não havia sentidos para se mover nem sequer com os olhos, nem para ouvir quaisquer palavras, posto que tudo soava fúnebre ou irritante. E os sorrisos a sua volta eram luzes piscantes, ‘insubstantes’, e naquele mero instante vinha um sentimento de também querer sorrir, mas o rosto encontrava-se de tal forma retesado, que o sorriso sairia mais um desagrado ou um susto de dentes à mostra por força que por querença. E aquele movimento todo em busca do nada e do tudo a sua volta era um passo inconsistente no vácuo...e naquela vastidão aprisionada nas beiras de uma mesa qualquer, de umas paredes quaisquer, de uns aparelhos inevitáveis ela se postava feito um artefato qualquer, crente que alguém a confundisse, a esquecesse, até desaparecer...De-sa-pa-re-cer, soletrado assim...tinha algo de sublime que ela não queria, senão o desaparecer rápido, sem sílabas, num átimo...Que fosse o desaparecer esse próprio segundo, mas de primeira leva, sem seguridade, lamentações e hesitações...Sumir....Su-mir....até desaparecer...sem voz que sair, sem ouvido que guardar, sem olhos que consentir, sem nariz que farejar...Es-que-ci-men-to...

segunda-feira, 3 de agosto de 2009

Sono

Ninguém me subjuga ou me submete. Minto. O sono é meu dono; sujeito tentador e misterioso que me ronda todas as noites e pelos dias assalta-me a lucidez, a ingênua lucidez de estar acordado. Porque em verdade é quando acordo que durmo e quando durmo acordo para o mundo da irrealidade mais real e desejável que possa existir; estar com ele; o sono, é melhor que tudo. Quantas histórias ele me revela e dizem que elas já estavam lá, e ele, o sono, é só um despertar. Que sossego me dá; ele, o sono, que me tira a dúvida, pois que me faz não pensar. E nesse instante, minha mente é contingente de todos os sonhos pensados e impensados; o sono é esse louco amante que me submete, me subverte a todas as impropriedades do real, dessa sonolência de viver acordado, sem ser amado. Porque o sono...Ahh...o sono, ele ama-me com ternura indecente, com afagos irreverentes, com momentos inexistentes que estão lá a me espiar quando durmo acordada. O sono vem me acordar na dormida mais incógnita e aventureira que se pode pensar, pois que ele quer-me tão bem, que não me ilude com possibilidades, porque se pensarmos bem, as possibilidades nem sempre são prováveis, e isso faz-nos tristes e alegres, porque vem ele o sono acalentar; grávido dos sonhos, ele me carrega e embala e me arremessa sem piedade, e me faz de alguma forma reviver...