quarta-feira, 23 de setembro de 2009

Cor dos olhos

Pensei que era a cor dos olhos
Que o resumo da paixão tinha cor
De folha, de céu, de terra, de sol
E até de sangue

Depois atinei que era o movimento deles
Que em cada cor tinha um ritmo
Que minha mirada coreografava

No começo eles dançavam sozinhos
Depois faziam par com os meus
E a cor dos olhos já não era a mesma
Era um abraço de olhos
De cores sobrepostas
No início mancas
Depois saltitantes e cintilantes

Continuei a pensar na cor dos olhos
Até me esquecer da cor e do tom exato
E lembrar da história deles
Mesmo des(conhecida)
Do movimento da cor...

terça-feira, 22 de setembro de 2009

O pregador

Ele já surgira assim, com aquela verve, com aquelas mãos postadas sobre a pasta preta, cheia dos textos sagrados, e o entorno dos olhos arroxeados como se a visão avançasse de tal maneira sobre o horizonte, que gastava o viço da epiderme e subsumia os globos oculares já pequeninos. Em verdade, seus olhos eram luzes apagadas frente ao contingente de ligações neuronais demandadas naquele momento sagrado, e não faltavam vocábulos apropriados, nem tão usuais, que davam esse teor de que há algo revelador no dito. Na fronte, os primeiros sinais de calvície, hereditária, e aquele nariz ligeiramente aquilino a fortificar o sorriso de dentes miúdos e intervalados. Era irmão por parte de pai, mas jamais ela o vira com consistência, nem na infância, nem na adolescência. Portanto, foi mesmo pregador desde o primeiro instante irreal tão real.

Apareceu quase divinizado após a terceira década de nascido, trazendo a mão calejada e histórias de uma união enganosa com a mulher e intrigas com os pais; e ele parecia realmente disposto a se redimir pela palavra, sem ganância alguma. Ela, a irmã, achava, verdadeiramente, estranho conhecê-lo assim tão personificado, sem as nuances do convívio próximo, a resguardar surpresas a cada momento e, mesmo assim, capaz de gerar aquele afeto pelas incongruências. Estranhava aquele absoluto dito, vivido, e, por isso, via-o com curiosidade, bem distante do afeto. Seu empenho maior era em pregar de casa em casa a palavra dita pelo senhor, registrada na Bíblia. Dizia; prego a Bíblia. Segundo alguns a religião dele não tinha templo nem liderança. Passava horas na marcação das idas às casas de familiares e outros que se dispusessem a ouvi-lo, e até mesmo contradizê-lo, para que a palavra sagrada compensasse tudo, como se já estivesse lá acabada, sem dúvidas para qualquer objeção. Levava uma companheira para suavizar o desgaste da pregação e dar aquele tom mais feminino, que muitas vezes amolece a alma.

A irmã admirava aquela habilidade, posto que, o discurso era de fato bem formulado, enriquecido por informações de outras ordens, até científicas e filosóficas, do tamanho infinito do universo, da pequenez e da grandiosidade, das interpretações falhas da Bíblia. Mas o paraíso usurpado, a Eva malfazeja, a cobra venenosa e os corpos do pó ainda eram o início de tudo, e ele buscava os minerais dos ossos e dos processos neuronais e fisiológicos para consubstanciar o fantástico, em meio à cientificidade do mundo moderno. E se o interpelavam sobre algum espírita reconhecido por bondade e resignação, sua companheira era a muleta certeira: ‘a maldade se esconde por traz da veste da bondade’. E assim aquele homem, em verdade ‘um lobo na pele de cordeiro’, era julgado sob a veste da intolerância. E o juízo final? ‘Esse não fora marcado, e o aquecimento global talvez seja mesmo o anúncio do fim do mundo’. E a reencarnação? ‘Ora, se houvesse mesmo, o mundo não teria melhorado? Por que tudo piora?’ E o destino existe? ‘ A gente tem o livre arbítrio, tudo uma escolha’. E a companheira do pregador, por vezes, complacente com o pecado; ‘não é o tamanho do pecado que vale, mas o tamanho do arrependimento’.

E assim o Deus misericordioso que sumia, ressurgia de tempos em tempos. Mas em nenhum momento qualquer escolha ou opinião era de fato considerada. A palavra final era vertida, num quase monólogo de duas bocas, e ele saía resoluto das pregações, com apertos de mão, empenhando-se na marcação da próxima.

quinta-feira, 17 de setembro de 2009

Ida nua

A vida invade
A vida esvazia
Traz contos
Encantos
Ornamentos
Lamentos
A vida deságua
Aterra
Esfera
Infinita de pontos
Em rotação
Tonteia
Escamoteia
Sombreia
De sol
De lua
Esquenta
Amua
A vida desvia
Apruma
A vida é uma
Nenhuma
Alguma
A vida é rua
É ida nua

quarta-feira, 16 de setembro de 2009

'Com camisinha'

A despeito das divergências sobre as conveniências de se pegar um táxi, posto ser o transporte coletivo demorado e impessoal, havemos de admitir que nos ônibus as histórias fervilham, dado o contingente humano com suas nuances esperadas e inesperadas. Mas o motorista é quase um anônimo, robotizado, ali no compromisso de pegar e largar gente e, raramente, as pessoas se lembram da face do sujeito. Agora no táxi tudo muda; ou nos deparamos com um ser hermético e ávido pela corrida sem mais delongas, ou então, o caminho se torna o próprio divã. Assim, as histórias também se multiplicam ou se condensam na mente.

Não me lembro exatamente o nome da taxista, nem mesmo qual era a empresa a que servia, senão que chegou bem na garagem do prédio em que estávamos; o ar era de segurança e conforto. Mas quando adentramos o recinto motorizado, verificamos que a condutora estava um tanto nervosa e se embaralhava com vários objetos entre rádio escuta, sacolas plásticas e volante. Como o motivo era de festa e não havia horário determinado de chegada, relaxamos.

Iam eu, Vivi e Gabi pro samba. Pra onde é?, interpelou a taxista. Pra quadra da Mangueira, respondeu Gabi. Onde é isso?, perguntou a taxista. E a fachada de segurança se desmanchando, enquanto eu e Vivi no banco de trás nos olhávamos meio duvidosas, meio prendendo riso. Gabi logo direcionou a condutora, que deveria ir pela Serra mesmo; caminho menos tortuoso, mas que reservava uma descida considerável para uma motorista que parecia até aquele momento não se preocupar tanto com o volante. E dessa maneira seguiu os primeiros dez minutos do trajeto, sobretudo, na ânsia da escuta.

Na verdade, ela não se preocupava com o caminho a seguir, mas sim com o próximo que deveria fazer enquanto as falas no rádio em altíssimo volume a deixavam ainda mais ligada na disputa pelas corridas. Curiosamente, no meio do caminho, ela terminou entrando num papo ‘opinioso’ sobre filhos, os quais nunca quis ter, e sobre o uso obrigatório da camisinha com seu marido. ‘Terrível o número de mulheres casadas que contraem aids’, e nós assentimos, sem ter como questionar. Nesse momento percebi que a taxista não era nada confusa. Era simplesmente uma futurista nata. Tudo era milimetricamente planejado, por isso, o volante, de vez em quando parecia nem importar tanto, nem sequer os caminhos, porque o que valia mesmo era chegar no próximo destino. Agora voltar ali na Mangueira ‘nunca’, ‘quando vocês saírem daqui já estarei dormindo’...

Chegamos bem; aproveitamos o samba no melhor estilo e pra variar, na volta, pegamos um táxi. Só que o condutor dessa vez não parecia nada futurista; aproveitou o momento para paquerar, enquanto tentávamos, pegando carona na manha dele, livrar-nos do adicional do pedágio...Aqui o tom era leve e brincalhão. O assunto da obrigatoriedade do uso da camisinha não surgiu, e não nos livramos do pedágio.

segunda-feira, 14 de setembro de 2009

Encanto

O que me encanta em ti? Não digo, pois que encantamento não é coisa de se dizer. Tão logo se matuta sobre o que de encanto há, tão logo vem certas arestas, certas amarguras ou dúvidas, posto que encanto não nasceu pra ser dito, só ouvido e sentido como palavra exata. Talvez o que me encante em ti seja exatamente a palavra silenciada que não traz ofensas, nem disfarces. Guardo de ti aquela face de alvura mansa a refletir a luz como um clarão; e os olhos cor de folha semi-desidratada, quase um verde complacente e equilibrado com meus sentimentos meio tortos, como se a esperança ali condensada naquele olhar fosse o próprio dizer de encanto, e não valha a pena fazer interpelações ou elucubrações a ou sobre sua pessoa além daquele lugar de descoberta. Porque o lugar da descoberta é o natural encanto que não se desfaz, porque fica lá in memoriam, em quase estado de latência, numa potência de sentir plena e inesgotável. E aquele toque de bocas, um tátil inquestionável de um movimento meio ternura, meio curiosidade por aquilo que não se conhece, muito aquém da mágoa, dos pensares que antecedem o gesto espontâneo e justo. É isso o encanto; um lugar infantil, de brincadeiras e experiências, um lugar de jogo sem planos.

sexta-feira, 11 de setembro de 2009

Beija-flor

Seu José era como um beija-flor. Davam as exatas duas horas de permanência no baile e ele ia embora, feito pássaro saciado de seiva por aqueles instantes. Diziam que ia cedo porque morava longe e que se tardasse, sendo ele já um senhor na casa dos setenta, poderia correr algum perigo. Helena, também pra lá dos setenta, fazia par com ele todas as vezes que aparecia. A ‘parte’ era concedida a ela com tanta delicadeza e distinção que ela não pôde deixar de se encantar. Ela se encantou tanto, que sua ida ao forró, como todos diziam, era obrigatório, pelo menos duas vezes na semana. Helena ia de vestido de crochê tecido pelas suas próprias mãos já calejadas, mas ainda ágeis. Dizia que recebia elogios sem igual, que a chamavam de menininha, e sua voz de empolgação ao contar não desmentia a meninice dentro dela. Impressionava-se com a vestimenta de José, ‘sempre limpinho’, ‘bem arrumado’; lembrava-lhe um pouco seu marido pela altura e pela magreza. Aprendeu uma soma de dança com ele, forró, bolero e tango. ‘Tô dançando bem demais’, ela se alegrava. E desandava a falar de seu José, disfarçando a intenção de amizade, porque queria mesmo era um namoro daqueles que ela nunca experimentara, de beijos e carícias, coisa que seu falecido jamais entendera. Certa vez ousou dar-lhe um abraço e ele entendeu como um empurrão, lamentou-se da iminência da queda, com olhar de incompreensão. O beija-flor agora anda em seus sonhos e ela deixa que ele sugue todos os momentos com os passos de sua dança, até que se vá com seus braços de asa, voando, voando, até pousar de novo em volta dela no próximo baile.

quarta-feira, 9 de setembro de 2009

'Reencontro'

Poucos são os lugares a que retornamos, senão àqueles bem nossos, quase estados de alma, contra e a favor dos quais não sabemos dizer, só mesmo sentir. E, sem dúvida, não retornamos a nenhum lugar, mas sim a um estado de espírito curioso de novas visões mesmo que com vestes repetidas. Voltamos para o reencontro do aconchego, da nossa própria casa estampada nas outras. Voltamos para o olhar de consentimento e desaprovação cúmplice e solidária. Voltamos para rever o que nem tínhamos visto e saber do reencontro, sem nem mesmo ter encontrado antes. Foi assim essa nossa ida ao Rio. Eu e Vivi de novo na rodoviária, com alguns tropeços pelo tempo das partidas e chegadas repetido e novo, até retomarmos a conversa pelo caminho. Tudo seguiu cheio de movimento; na Lapa, na quadra da Mangueira, até na entrada do Castelão, que ficou só na concentração, e na praia. Agora um movimento foi, não diria inusitado, mais quase raro; o cuidado dos anfitriões. Gabriela sempre bem disposta, sorridente e companheira. Gláucia e Gilmar, espontâneos e acolhedores, na fala, no preparo das comidas, nas conversas vastas em torno da mesa da cozinha. Vitória que viu seu quarto multiplicado de gente e coisas espalhadas pelo chão, sem a menor expressão de irritação. Rhany, a visita constante e carinhosa. E todas as outras pessoas que passaram pela casa ou pela rua para nos ver ou nos rever, como Vânia, e a sensação permanente de ser de lá por aqueles dias, parte daquele lugar, no retorno sem nunca ter estado, como aquela história da ‘saudade daquilo que nunca se viveu’, e do ‘amor ferida que dói e não se sente’...desse sentimento que a gente tem daquilo que parece que já vivemos um dia assim que encontramos ‘em algum lugar do passado’, mas presente, supreendentemente vivo.

quinta-feira, 3 de setembro de 2009

Onde está?

O entrelugar está em migração,
Anda em direção ao outro lugar,
O contrário do lugar que era,
O outro inóspito,
Irreconhecível lugar,
De agostos passados,
De setembros passados,
De frio no lugar do sol,
Do calor inclemente,
Inesperado,
De chuva tempestade;
O entrelugar suave,
A delicada transição,
Deliciosa e sutil,
Esvaziou
Na inconstância do clima,
Nas certezas alienadas,
Nas almas em fuga...