terça-feira, 26 de maio de 2009

Profecias no entrelugar

Algumas ‘profecias’, que em princípio soam como algo vago, dão o ar da graça e nos acompanham por toda a vida. Há alguns anos um professor profetizou a respeito das nossas respostas imunológicas; ‘pode ser que sim, pode ser que não’, ou seja, o cerco de anticorpos se fecha em torno do antígeno, ou não. Aos poucos, percebi claramente a intenção imunológica incerta do corpo, refém de vários fatores - alguns quase secretos -, e sua utilidade perfeita para quase tudo na vida. Algum tempo depois assisti o filme ‘A Máquina’, direção de João Falcão, e lá entoavam uma musiquinha que dizia assim; ‘amanhã pode acontecer tudo, inclusive nada.’ Lembrei-me da afirmação do mestre de outrora e senti a perfeita harmonia com o dizer do filme, das profecias de incertezas. Os serviços de meteorologia tiveram sim, nos últimos anos, assombrosa melhoria. Ainda assim, o tempo dá suas voltas e malandramente nos surpreende. Vivemos nesse turbilhão de setas e objetivos, ou acertamos ou nos acertam, dizem. E nesse meio de profecias incertas, teimamos em acreditar que algo é tão certo e definitivo. A certeza nada mais é que uma muleta manca; precisamos dela para caminhar, mas em cada superfície ela nos expõe a um desequilíbrio obrigatório para a retomada do caminho. Hoje digo e repito ‘o pode ser que sim, pode ser que não’ daquela realidade fisiológica imunológica e apelo para minha imunidade suportar tanta incerteza cheia de certezas incertas e profecias imprevisíveis. Por isso, na dúvida, duvido.

quinta-feira, 21 de maio de 2009

'Levanta essa cabeça'

Levanta essa cabeça...a gente conquista mulher é assim. Falo isso com a minha todo dia e ela nem pode sonhar que fico dizendo isso pras outras. Mas digo. Digo mesmo. Levanta essa cabeça tem efeito de levantar mesmo. É infalível pra entrega de panfletos. Trabalho com isso sabe? E é dureza chegar nas mocinhas que vão atravessar a rua no sinal. O levanta cabeça parece ordem e depois vem o pensamento; será que estou de cabeça baixa? Cabisbaixo é terrível né? A moça olha e pega o papel e tem que ser educada. Por isso sorrio mesmo sem os dentes de cima e dou aquela motivação na galera, principalmente nas moças; levanta essa cabeça...a gente conquista mulher é assim...

quarta-feira, 20 de maio de 2009

Triângulo em descompasso

Novamente ele vinha ocupar os espaços nos seus sonhos de natureza confusa e repetida. Quando vinha o sono profundo, era feito uma espécie de morte; quando vinha o sono breve, era uma tormenta, semelhante ao que ocorre nos delírios de doenças, quase alucinações. O fato é, ele retornava sempre nessa morte ou neste tumulto dela ao dormir. E na última vez veio familiar e estranho em uma terra distante, o sertão de seus antepassados, e de muitos que ainda não passaram. A casa era ocre, toda ela parecia uma terra erodida, não havia móveis e o ar tinha um peso, uma densidade de pó em suspensão. Todos se falavam, mas não pareciam ter intimidade, senão o parentesco. Ela ligava-se a ele de forma persistente mas sem toques; os dois pareciam não interagir com os habitantes da casa, senão entre eles mesmos e com uma weimaraner de olhos claros, de pupilas retintas, quase dois buracos negros. Ele e a cadela cinzenta se afastaram num dado momento e de longe ela os olhava, até que surgiu pretinha entre os dois. A weimaraner os seguia, ele e a pretinha, indefinidamente por todos os cantos da casa, grudava-se ansiosa a eles, não compreendia aquela interposição inusitada, irritante. Uma cena de ciúmes e provocação ali diante de seus olhos em sonho a fez desesperar e acordar e perguntar? Por que ele apareceu de novo e neste triângulo em descompasso?

terça-feira, 19 de maio de 2009

Reconhecer

Ele chegou sorrateiro por trás e colocou suas mãos sobre os olhos de Lia. Não era uma tentativa de ser descoberto como habitualmente se faz, mas de ficar conhecido só pela suavidade e pela temperatura da pele. Temia que seu rosto algum dia revelasse a ela algum traço ou traçado obtuso, alguma incongruência de sentimentos, ou mesmo a ausência completa, naqueles momentos de esquecimento dele mesmo. Toda vez ele repetia esse mesmo gesto na tentativa insone de virar uma surpresa permanente na vida de Lia, mas a virada da moça vinha como um vendaval e aquele beijo rápido de um já visto tirava toda força imaginativa dele. Ele sonhava com uma recepção de enlace desconhecido, quase um reconhecer todo dia; as mãos dela na dele num passeio familiar e inóspito, encantador e aterrador. Então ela se viraria lenta de olhos ainda cerrados e buscaria seus lábios como quem fareja uma congruência, um encaixe inevitável, acolhedor. E assim ele se repetia no gesto e ela também, sem palavras e explicações, até que ele um dia desistiu e subsumiu à rotina dos gestos dela; resolveu olhá-la sempre de frente, ainda que temesse desnudar-se de olhos sem brilho, mandíbulas inertes, quase um desprezo da face. Um dia depois de muitos dias de gestos de desencanto, resolveram não mais se ver, e Lia sonhava todos os dias com aquela virada que ele imaginou; de olhos fechados a farejar e tatear os caminhos da face dele.

quarta-feira, 13 de maio de 2009

Baleiro

Ele vinha sempre naquela hora, bem no finalzinho da tarde com seu apito estridente, imitando um chilrear de ave, um grito de águia. O carrinho do baleiro tinha toda sorte de doces caseiros, balas, pirulitos, chicletes, pipoca à isopor e pequeninos brinquedos de plástico, que aguçavam todas as crianças da rua. Chegavam os olhinhos curiosos na vitrine e viam lá quase um paraíso de delícias. Na mão o trocadinho suado, implorado em casa, e na mente a expectativa de experimentar cada sabor. Lilinho era comprador inveterado, já ficava agitado na hora do baleiro, era o momento mais esperado e feliz do dia. Planejava as compras semanais ao sabor dos olhos e assim ia fruindo um doce de cada cor, de cada formato. Às vezes o menino desatinava tanto que dava bocadas alternadas sem saber ao certo qual era o doce, de forma que os sabores se confundiam e ele no outro dia parecia experimentá-los pela primeira vez. As outras crianças faziam a conferência da compra do Lilinho; havia umas que até copiavam, entravam na onda dele. Achavam a estratégia fabulosa, cheia de artimanhas. Cresceram assim na toada do baleiro, de açucares grudados nos dedos, impregnando línguas de lambidas ávidas, os olhos adocicados...

Passar

Talvez a vida seja mesmo um passar, não uma passagem como dizem por aí. Porque é no verbo que se abrem os caminhos e se fecham outros. Os substantivos são figuras obtusas que denotam limites mais precisos, não carecem de tantos complementos, terminam por se tornar personas, biografias insanas ou cultas. Somos o verbo e por ele desatinamos, mudamos os objetos, fazemos trocas e troças, entrelugamos. Deliciamo-nos com sabores da boca e da alma, e somos pegos pela angustia, nada mais que um passar por dentro. Somos mesmo um passar de asas, de pernas em desalinho, de braços abertos e cruzados, de olhos brilhantes, curiosos, inquisidores e a desaguar. Um passar de tudo que nos acomete e passa sem passar, a serviço do próximo passar...de vaguidão, escuridão ou clarão. Passemos então sem pudores dos olhares sórdidos e inquiridores para nossas respostas indecisas e incompletas.

segunda-feira, 11 de maio de 2009

Anuviados

Ele ficou guardado no tempo, no exato feitio esperado, esculpido na mente com precisões estéticas e incongruências cegas. Permaneceu na adolescência sonhadora e na juventude infantil, de batidas disparadas no coração, de suores gélidos e tonteiras passageiras, na subida da rua, na descida, no recreio da escola, no meio fio e em tantos passeios no entorno do colégio, da casa e da praça. Virou menino de olhar anuviado, nariz empinado, e no sonho desse olhar e desse passar que nunca a vira ele se foi. E bem depois, solidificou-se no olhar desencontrado que nunca a tinha visto mais uma vez, embora ela jurasse de pés juntos que ele olhara pra ela sem olhar. Encontraram-se e desencontraram-se sem as reverências justas ao amor que ela devotava a ele. Passaram-se anos bem depois do depois e nada cresceu ali senão lembranças engraçadas e até nobres de uma ilusão de amor de quem nem sabia o que era amor, mas o fantasiara de todas as formas, rodeado de guirlandas, de sorriso largo de menino quando mostra os dentes depois de retirados os aparelhos ortodôndicos; daquele dia de liberdade do riso dele, das olimpíadas do colégio e das pernas finas correndo no salão atrás da bola com tênis redley e recebendo as medalhas de ouro. Depois do bem depois e dos anos bem depois do depois o menino permenacia lá, magrinho, de andar meio contido e olhos brilhantes de pupilas sangrando a enganar os olhos da menina que ele nunca vira...A menina é que tinha os olhos anuviados e nem sabia...

sexta-feira, 8 de maio de 2009

Arte por Cony...

‘Quem é feliz não escreve, não faz arte’, disse Carlos Heitor Cony em uma entrevista. No início aquela afirmação transpareceu algo nubloso, quase uma ofensa às artes, para ele seguidoras da inquieta tristeza. E disse mais o Cony, mais ou menos assim; ‘talvez isso só não valha para a música’. Então a música de todas as artes seria a única que poderia se harmonizar com a felicidade? Por quê? Difícil resposta. Quem sabe a arte não seja apenas catarse; o discurso já tão repetido da catarse, a expressão pura do sofrimento? Pode ser. E quem faz música não sofre? Somente se diverte? Quem sabe. Cony quis simplesmente dizer que pra viver, a maior arte, não carece arte. Não há tempo para ela, porque a gente incorpora de tal forma a arte, com tamanha intensidade, que vamos viver e ser objeto de arte de alguém entristecido por aí. E a música? Talvez uma transpiração dos sons da gente, um fruir, muitas vezes coletivo, um fisiológico que não ocupa os escassos tempos de uma vida.

Era pra ser o sim do não?

‘Vai ver não é pra ser mesmo’, profetizou. Engraçado como as expectativas mal acomodadas, mal realizadas se convertem em ‘inexpectativas’; ‘vai ver não era pra ser mesmo’...será? Era pra ser o quê ora? Vai ver não era pra ser mesmo, senão um esperar inconstante, perguntador...Afinal de contas...o que era pra ser? Se nem se sabe o que era pra ser como se vai saber que não era pra ser mesmo? Eh teimosia da expectativa, esperança do ser acontecer. Não era para ser nada e tudo. Nada estava pronto; nada não tinha script, roteiro, mas o filme estava lá...Nada era vazio e multidão de esperas. Então, não vem com essa ‘vai ver não era pra ser’...Era pra ser o quê? Vai ver só era pra ser o não, o sim do não, o que ficou só na imaginação.

quarta-feira, 6 de maio de 2009

O sushi da Ana

E lá foi ela degustar o famoso sushi da Ana Paula. Mas desta vez queria mais que simplesmente o contato prazeroso do sabor do bolinho japonês, encharcado de shoyo, nas papilas gustativas. Fora mesmo pelo gosto do encontro com a amiga, posto ter fruído a sensação um tanto inusitada de outra vez, nem sabor, nem desabor; talvez mero reconhecimento. Naquele passado, a angústia de experimentar fez do momento um anuviamento, um apressamento de quem quer saber quase sem saber. As mãos disputavam sem cerimônias os bolinhos recém nascidos sem o cuidado da mesa posta e o agradecimento ao cozinheiro. Mas desta vez, ela vaticinara; o sushi sumiria e se esconderia feito uma lembrança e um esquecimento, pois seria somente mero pretexto de afeto. A considerar pelo tempo e pelo cuidado necessário para o preparo, seria quase um degustar de palavras delicadas, lembranças e risos. E assim foi aquela tarde, porém sem os exageros de formalidades, regada ao tom de humor dos convidados e pincelados de raiz forte brava wasabi. Os grãos de arroz bem unidos, sem vergonha dos soltinhos; a alga bem enrolada virando flor, os cortes suaves da lâmina em lágrimas; tomates secos, salmão e cream cheese; quase um encontrar de propósitos raros.