quarta-feira, 24 de fevereiro de 2010

Inclemente

Assuta-me esse calor inclemente
Tão verdadeiro
Incendiário
Assusta-me essa modorra incoerente
Esse mover que não urge
Pelo calor retinente
Assusta-me esse sono quente
Esses braços pendentes
Essas pernas ausentes
E o calor que não se sente
Que se mistura sem mente
E ferve na gente
E ferve no mundo
Cozido mundo mudo
Mudo que grita
Aflito
E pede clemência

segunda-feira, 22 de fevereiro de 2010

Tempo perdido IV: eu nós

Não queria fazer uma narrativa do personagem narrador...queria ser o onipresente, que vê tudo e apreende cada instante como um círculo de infinitos pontos a girar, cada ponto um conto, de mim e de você...Esse pedaço do tempo perdido, talvez seja o mais perdido de todos, porque é porção de aventura do pensamento, de sensações de pensar em não pensar um tanto particulares, mas por momentos, compartilhadas...Esse pedaço é aquele pedaço ainda cru, cheio de trigo e açucar, a raspinha da forma, a sedenta raspinha ávida por línguas de papilas curiosas, o segredo maior do ritual do bolo. Não quero te imortalizar em uma escrita torta nem reta, porque você me encontrou nesse meu não lugar, e não se incomodou com esse nomadismo inconstante meu; parece-me que não. E você deixou que eu morasse um pouco em ti, ainda sabendo que não se mora em ninguém, nem na gente mesmo. Esse é o encontro mais divertido e sério que pode haver, porque é de uma disputa pra não ganhar, mas pra conhecer e reconhecer e desconhecer, sem olhos de comiseração ou de admiração extrema; imagino, pois que não tenho a visão, mas uma visão, clara somente por momentos. E ver o nascer do sol em relativo silêncio, e brincar de jogar e não vencer, pelo gosto discreto do empate, da vitória da companhia, e das mãos de apoio nas trilhas e do roçar de braço quase pequenino, grande na graça, e do dançar no salão e em escuros da alma e do corpo, perto de escadas e muros, insustentáveis na mente da gente, e a serra sob o olhar nosso de pedra que se desfaz em água quente e gélida, e em corações quase cerebrais, querendo compreender a emoção, o sentido irrecuperável do sentir, que passa e permanece na gente...

Tempo perdido III: a fonte mágica

Nada melhor do que um lugar onde jorra água, onde se pode beber de graça, onde se acredita em pureza, nem que seja de intenções...Nada melhor também que encontrar alguém pelo caminho, pelo desavisado caminho, quando o objetivo principal se perde, e outro qualquer ganha formas de magia, inesperada brincadeira em noite quente de lua...Eu, Silvinha e Tiaguinho perdidos em três ruas de dimensões diminutas em busca de uma mercearia...Eu, Silvinha e Tiaguinho profanando os sinos da igreja como quem faz arte, transgride sem o desejo de ninguém ver, senão por buscar o contentamento de brincar no lugar onde ninguém está, como um segredo, no esconderijo escancarado pro riso e para o dobre reprimido do sino, tocado em noite sem missa...E depois ir beber na fonte, no chafariz cheio de água em noite escura; e não ver a fonte, para que ela se fizesse na nossa imaginação, teimosa e democrática, revestida de magia...Foi assim o encontro memorável que tivemos, eu, a querida Silvinha e o menino duende das poções mágicas, e a fonte escura, que a imaginação clareia...

sexta-feira, 19 de fevereiro de 2010

Tempo pedido II: Eri

Pra gente se salvar e mergulhar no tempo perdido é preciso alguém que nos faça recordar do texto que há em tudo, das histórias e dos pareceres que há em nós mesmos. É preciso divagar sobre o importante e o aparentemente banal, e sorrir repetidas vezes das mesmas coisas, pois nada há de novo, embora o novo esbarre na gente discreto, sorrateiro. Erivelton já chegou fazendo festa e adiando o destino perdido, porque se perdia no tempo e nas sensações, encontrava o tempo. Foi ‘auxiliar’ de guia de viagem, instrutor ambiental, recreador e consultor para assuntos diversos. Uma das mais engraçadas consultorias versou sobre o modo feminino da conquista, interpelação curiosa da Sílvia; ‘Afinal de contas, como abordar um homem no qual estamos interessados?” E aí Eri foi construindo o tal ‘guia prático’; “pergunte pra ele: você está disponível?!" Isso com a voz arrastada, malandra e risonha...E em seguida; "diga a ele: eu estou completamente liberada para você.” E a finalização em todos os fins de frase; “Pá”, como se quisesse marcar o ponto, sinalizar a simplicidade...E simples foram suas incursões de conquista um tanto atrapalhadas nos bares milho verdenses, porque absolutamente espontâneas. É que Eri não é tão atento aos riscos, mas sabe fazer a conquista dos sorrisos, sem pudores. As pessoas se colocavam totalmente disponíveis e liberadas para o riso, sem que perguntas fossem feitas e negadas, porque um verdadeiro manual de conquista talvez seja mesmo o desprendimento do Eri, um se soltar das posturas fixas.

quinta-feira, 18 de fevereiro de 2010

Tempo perdido I: o quarto

Existem lugares em que a intensidade do sentir toma proporções consideráveis. As emoções explodem feito vargem seca, numa batida seca e forte, e espalham as sementes dos afetos e desafetos guardados, resguardados talvez. Mas isso quase sempre acontece nos quartos pequenos, nos lugares pequenos, onde os limites esbarram na gente e trazem revelações. Alguns têm os ânimos acirrados e decepcionados se põem a chorar; outros têm os corações pulsantes por tanta visão de liberdade e querem ter essa liberdade, e se desfazem em deselegantes risos. Os humores são cáusticos, mas doces também. As ironias e gargalhadas enormes ecoam na atmosfera. Esses são os lugares dos encontros; não das apresentações formais, mas das negociações inesperadas e necessárias. E foi assim, num desses pequenos lugares que nos encontramos e reencontramos; Milho Verde verde de esperanças verdes, de danças convulsivas e reflexões eufóricas e paisagens encanto. Milho verde, um lugar perdido no tempo, dos tempos da rotina da gente, escorregadio tempo...Lá o tempo é mais fluído, mas contraditoriamente tem ares densos...Eu e minhas companheiras de ‘quarto negociado’, dando pra serra bonita; um lugar pra ver as nuances do céu, sempre surpreendentes, diferentes; um lugar para o conversa solta, os pareceres imprecisos e certeiros, da fisiologia da gente, da fisionomia da gente...Eu e a sempre companheira Ana Márcia de tempos, de viagens tantas, de saberes tantos do conviver...eu e Silvinha, amiga emprestada que já virou amiga minha, sempre bem disposta para as aventuras e venturas...Eu e Marisa, menina de palavras engraçadas, de língua solta e sentimento pulsante...Eu e o casal vizinho, Vanessa e Algemiro, emprestando espelhos, secadores, rodos, emprestando afeto e atenção...Eu, simplesmente eu e o que qualquer um quiser achar e me revelar...Nem sei se elas perceberam a preciosidade daqueles instantes de ‘perrengue’ por falta de água para o banho, por falta de luz...aqueles momentos em que a falta nos coloca cara a cara com o limite, e nos permite sondar e expressar sentimentos de revolta, tolerância e humor...e nos permite pensar sobre o significado real da falta, que é, muitas vezes, o sintoma de um costume, de um hábito, e não de uma necessidade urgente...Estivemos no tempo perdido achado, lá na cachoeira do tempo perdido, com sua cortina de água cortante...o cortante tempo perdido sem os afazeres cotidianos, guardado para o encontro do tempo, na verdade o tempo do encontro.

segunda-feira, 8 de fevereiro de 2010

Roedor

Se o passado te tem
Não te desdenhes
Que o futuro lá se forjou

Se uma lembrança afeta
É porque não é discreta
E por ela teus olhos se injetam
E o coração também

Se o presente é solene
Porque dita o que virá
Não te iludas
Que o presente é caco
É um naco qualquer
Que escapa de tal modo insolente
Que vira passado
Que vira futuro

O presente não se tem
Senão o ausente de presente
A correr feito lebre
E agora o que fazer?
Se nem podes pegá-la
Roedora do tempo
Roedor presente
Roedor de presente...