quarta-feira, 24 de março de 2010

Plano Preventivo Santa Magnólia anuncia

Façam o Plano Preventivo Santa Magnólia; serviços funerários para prevenir o ‘imprevenível’. Temos traslado imediato em Van espaçosa, caixões personalizados, coroas de flores, maquiagem suavizadora para faces acometidas por acidentes ou mesmo aquele significativo ou discreto empalidecer do pós vida, além de uma completa rede conveniada com todos os cemitérios da cidade, uma forma de facilitar sua passagem. É bem verdade que não sabemos exato para onde irá passar esse transeunte sem movimento aparente, mas de qualquer maneira, é justo que a família adquira um plano preventivo completo como garantia. Também podemos indicar as melhores opções de ‘morada’, desde túmulos mais simples até mausoléus com acabamento em mármore ou granito. Artistas renomados em arte sacra ou mesmo os mais contemporâneos também fazem parte de nossa rede conveniada, porque é sempre bom proporcionar beleza para quem está nesse estado obrigatório e imprevisível; pela família que visita, pelo espírito que pode querer habitar com mais conforto nas horas em que não vaga por aí, pela alma que aguarda ascensão ou sofre pelo descenso, ou simplesmente para resguardar todos dos ‘cheiros’ da indigência. A lápide também está inclusa, com escritos personalizados com letras a sua escolha. Caso tenha dificuldades em formular a inscrição temos excelentes escritores de lápide para reavivar sua memória, sua história, seu nascimento e sua morte, ou mesmo fazer de você um personagem mais cativante nesse pós. Lembre-se; a melhor opção para prevenir o ‘imprevenível’ é mesmo o Plano Preventivo Santa Magnólia!

segunda-feira, 22 de março de 2010

In(exato)

Ah se fosse possível fazer um tratado sobre a sensação, um tratado verdadeiramente coerente com o sentir, essa entidade tão abstrata que só cabe mesmo no sentir, para a qual só cabe dizer: sinto...E nenhuma palavra substitui e o verbo fica implorando complementos e todos são ‘incomplementos’. E a gente tenta buscar na batida do coração e no ar que entra e sai dos pulmões como se o intraduzível pudesse morar ali naqueles involuntários tão naturais de nós mesmos, que não dizem, só sentem...E a precisão escapa na mistura dos sentidos e só valeria explicar fazendo o outro sentir e ainda assim o sentir fugiria por ser tão pessoal e ao mesmo tempo tão impessoal na sua forma indescritível...E vem uma angústia do querer experimentar para precisar o sentir e ele vem com outra veste e continua inapreensível, impalpável...E é inabalável o sentir, com gosto, cheiro e imagem, e se torna necessário, por ser tentador, experenciá-lo, descobri-lo, deixá-lo nu, enquanto ele se esconde envergonhado e feito um camaleão se confunde em qualquer superfície e fica grudado em um mimetismo qualquer que jamais será qualquer, mas de tons absolutamente novos e surpreendentes...E a gente só lembra que sentiu...frágeis só lembramos do que não lembramos exato...o que sentimos...o inexato sentir...

segunda-feira, 15 de março de 2010

Jeito felino

Acordou com garras
Dormiu num ronronar
E nesse jeito felino
Enroscou-se em suas pernas
Num alcance tonto
E olhos de raios brilho
Íris de toda cor

E com seus pares caninos
Deu um longo bocejo
De riso, de gozo
E denteou seu tornozelo
E lambeu avidamente a pele de sangue
O corpo inteiro
Numa perfusão de beijo felino

Dorminhou num espreguiçar
E sem preguiça alguma
Abriu os olhos
Numa dança longa
Mostrou suas unhas de ponta
Lanças
Arranhou lentamente seus pulsos
E afundou em seu pescoço
Numa cicatriz de linha sanguínea, felina

Deu um longo miado
Rouco, rosnado
Depois estridente
Num chamado alucinado
Desnorteou e pulou
E se foi num jeito felino

Sim meio não; não meio sim

Às vezes não temos a resposta, mas simplesmente o sentimento da resposta que ora beira o sim, ora o não. É que respostas só vêm com experimentação, pelo menos as pretensamente verdadeiras. Se o não resvala com um complemento qualquer de justificativa que soa incompleto é porque o sim não se fez sentido, não o sim plenamente justificável pelo sabor da experiência. E esse próprio não possui gradações, intensidades, por vezes, irreconhecíveis pelo outro. E esse outro nos coloca diante da dúvida de nós mesmos; então nos afetamos pelo sim ou pelo não quase absolutos na vã tentativa de esconder essa mesma dúvida, esse sim meio não, esse não meio sim. Porque é o argumento que tem força, mas esse só se faz no fruir daquela mesma pergunta, que ainda assim jamais será exatamente a mesma porque de tempos diferentes, de outros outros... “ Concede-me o prazer dessa dança?” já traz em si o julgamento da dança e o feitiço para a resposta esperada, enquanto “Concede-me essa dança?” tem a palavra julgar meio ausente e suscita a dúvida e pode até trazer curiosidade, mas também o receio. E o porque não? Ah...esse é terrível às vezes, porque a gente só descobre com a reflexão que vem depois, e a resposta deveria ser imediata. E seremos julgados por isso, por frustar expectativas, por não gozar de todas as respostas que hoje se fazem tão prementes, nesse mundo de instantâneos. O sim e o não são construtos, são escolhas da experimentação, são cambiantes, porque basta uma palavra, um tom, um complemento para que se revertam, e não há irremediáveis sins, irremediáveis nãos, mas pequenos detalhes que moldam nossas respostas diante do outros, percepções e ‘impercepções’, conhecidos e desconhecidos momentos de experiência e não experiência que só o tempo é capaz de revelar...

domingo, 14 de março de 2010

Um flash black

Agora a chuva desce copiosamente, depois do calor sufocante e dos corpos frenéticos da madrugada no salão do Flash Dance, em Venda Nova, quase na fronteira com Neves. Corpos em rodopio, em balanço e arrasto de pés puxando os quadris em vertigem branda, em vertigem alucinada pelo swing da música negra, em braços de vôo. Negros corpos esbanjando fantasias, chapéus, casacos, coletes, sapatos bicolores; vaidade e movimento. Nada melhor do que visitar um lugar assim; fora da rota da rotina, das ‘agendas culturais’ da cidade Belo Horizontina, um baile que deixou saudade, que chamam de Saudade, um flash de dança de um tempo que marcou corpo e pensamento, agora lido e relido pelos corpos do presente, de identidades à procura, confusas, mas que carregam um delírio qualquer de nostalgia e pensar sobre o que foi e o que será. E ainda há os corpos ávidos de pura sensação, quase invólucros a esconder um avesso de não pensar em torno de uma ruptura que se desfaz e se refaz, num respirar ofegante. A busca pela experiência pura da sensação que nada mais faz que refletir a compreensão do seu próprio significado, porque sentir é conhecer essa parcela, muitas vezes, renegada desse natural que reivindica o mover, um reflexo de vida que pulsa em ritmos descolados da ordem, que revelam desordem, enquanto os corpos travados em suas potencialidades agonizam. E ali era o espaço do ‘frenesi’, do já visto nunca visto, do palco revelado em cada canto e 'canto' fervente, em cada mistura de pele negra e pele branca, na genialidade da mistura dos cheiros do movimento e do som, um flash cinematográfico, hemorrágico, sem verborragia aparente, mas de palavra latente, a palavra do corpo arte; um flash black.

terça-feira, 9 de março de 2010

Assentos

Aquelas duas cadeiras postas
E a luz serpenteando no meio
Aquele vazio nos assentos
Gravemente acentuado
Pela luz no entremeio
Aquelas duas cadeiras postas ali
Para o sentar de descanso e ‘canso’
E a luz escapando pelo meio
E os corpos ausentes
Enquanto os assentos silentes
De nem mentes
De nem montes
Cavernosos ou rochosos
Se enchem
Aquelas duas cadeiras postas
Sem mortos ou vivos
Talvez natimortos
Os que não vieram
E a luz se deu
Nos partos esfumaçados
Da imaginação
Enquanto as cadeiras postas ali
Quase ventres estéreis
E a luz atiçante, ululante
No apago da noite
No lago do dia
E as almas sobre os assentos
Em ‘Ls’ obscenos
Escondidos gozos
Ofuscados de luz divina
Aquelas duas cadeiras postas ali
E aqui, e acolá
Por um clássico sabor de solidão
A decorativa solidão
Até vir os complementos de solidez
Os complementos de sordidez
As visitas indiscretas
No templo do vazio
Sem anedotas ou sátiras
Ou risos de sorrir da boca faminta
Aquelas duas cadeiras postas ali
Sem os liames sonoros
Do assentar e conversar
E gozar no outro
De ouvido nu
O gozo maior da palavra
Bem ali
Nos dois assentos postos ali...

Segredo confesso

Ela sabia do segredo, do dela tão segredado, guardado para si, desgarrado de si, gritado nos olhos de desvio, nos lábios de dúvida, no franzir da face, na testa cheia de entrelinhas...Ela sabia que esses espaços dúbios dentro de si estavam lá exatamente pra serem segredados, porque o que segreda grita tão alto que faz subsumir todo silêncio sufocado. Ela sabia que o segredo é sempre parco, mas vaza como leite derramado e escorre na boca afogada em saliva, em ossos e carnes trêmulos...Ela sabia que ele saberia do segredo maior que não tem nome, nem chave mestra, nem qualquer outra que sirva pra abrir, porque segredo nenhum fica escondido, porque nasce do compartir entre momentos, entrelinhas, entremeios...Ela sabia que segredo tem um nome qualquer do sentir esconder que nunca se esconde dos olhos do gato ou mesmo do retrato, dos congelados escancarados ou mesmo disfarçados...Ela sabia do segredo e sabia que segredar é romper o indizível na performance do devaneio, do instante roubado e divinizado dos entremeios, entre ela e ele num barco qualquer em mar alto ou no silêncio do fundo do mar, mesmo no ar de repercussões sonoras e cheiros misturados, o disfarce da essência entre outras, entre respiros pelo ar e para o ar...Ela sabia e não tinha a pretensão de segredar, mas segredava e segregava o outro, no fingir confesso de dizer mesmo sem dizer...no segredo confesso...