quinta-feira, 24 de junho de 2010

Não arre(mate)

Não queria mais que a olhassem. Queria que a sentissem. Que a sentissem de todas as formas, com admiração e desdém. Negava a imagem, porque nela nem sempre se revelavam os sinais do sentir; e mesmo do não sentir, de quem morava profundo num vazio tantas vezes, até sem buscar o sentido, porque no meio do caminho não vinha ânsia alguma de continuar, quando o pulsar do coração enfraquecia, esvaecia... De quem morava profundo em significados por vezes, em sentimentos recônditos e explosivos, de um querer compartir, estar perto, amar... Essa imagem não condizia, senão pelas palavras pensadas, que proferira, que calara. Esse retrato não combinava, era parco, fragmentado... e ela parca e fragmentada era irretratáveis momentos de angústia e euforia, de permanência e inconstância...Negava, negava esse quadro arrematado por tantos olhares estranhos...e que a julgavam num traçado de expectativas vãs, num meio sorriso, ou num sorriso todo, contentamento; ou num franzimento entre os olhos, desespero...Não queria mais que a olhassem só imagem, que sem palavra dita, redita e calada era ninguém, porque não fora pintada com rigores de cores exatas, com profundidades e traçados em arte de ver e analisar, mas no sentimento de rigores, rigores tão fundos que afundavam nas molduras e iam morar dentro das paredes cheias de falhas, ou amalgamadas com cimento forte, ou esfarinhadas, paredes frágeis, paredes sanitárias...Essa imagem a combatia, a esfacelava, doía como ferida os olhares, pois que ela era apenas espectro em lugares vastos e restritos...era apenas possibilidades impossíveis, uma fotografia viva escrita no tempo, pelo tempo, até desaparecer, tal como desaparecia a todo momento de vidas, de lugares, de si mesma...Negava o olhar avaliador, de arre(mate)...

quarta-feira, 23 de junho de 2010

Crochê

Aprendera crochê com a mãe. Algumas peças terminavam por duas mãos, ainda que fosse um pequeno acabamento a garantir a solidez da peça. Outras vezes era no decorrer o compartir, no crescer da peça, quase uma competição justa ponto a ponto, carreira a carreira, no ir e vir da agulha, meio. Sempre achara fabuloso um único ponto, uma única laçada formar tantas formas e figuras, e cobrir, e vestir, e enfeitar e aquecer. Admirava o crochê, processo e resultado, embora, muitas vezes, percebesse certos olhares a ignorá-lo, por desconhecer sua alma. Cada ponto e intervalo precisava ser medido com precisão imprecisa de dedos, um humano, pessoal, raridade no mundo fabril. Entrevia no crochê o amor da mãe, que nada há mais amável que ensinar e fazer junto. Entrevia no crochê a dedicação do tempo, o esforço da mãos para agradar, envolver pessoas e olhares, mimar. Tinha primas, tias ‘crochezeiras’; mas uma tia, em especial, já além do tempo da mocidade, permanecia moça na animação e no preparo dos vestidos rodados de crochê, das blusas aplicadas em flor, dos boleros, exatamente pra dançar juntinho boleros e outras danças no baile semanal. O crochê era atávico, parecia, por vezes. Era um gostar que passava por gerações, e quando escapava em alguém da família, era um nó ou um fosso, como um erro do crochê, um mimo que não se desenvolveu, um fazer que se perdeu. Certa vez com os escritos ‘desassossegados’, do poeta Fernando Pessoa, percebeu ainda mais a sutileza do crochê, sua semelhança com a cadência de viver. Amou-o mais, compreendeu-o mais...Não poderia deixar o fio do crochê se cortar, embaraçar, desacarinhar o mundo...

segunda-feira, 21 de junho de 2010

Você

Você me maravilha, porque enquanto cega-me os olhos, abre-me outros em todas as partes do corpo e da alma. Abre-me olhos na fronte, na nuca, no peito, nos braços, nas pernas. Abre-me olhos na minha face invisível, impalpável. Desvela em mim os traços mal e bem traçados da minha linguagem, de mim mesma com testa franzida e sorriso solto, e quietude e inquietude latente. Abre-me janelas por todos os lados de mim, até no avesso, e faz vazar todas a etiquetas descartáveis, de números precisos, de instruções objetivas. Abre-me olhos de águia, faz-me visionário na escuridão. Faz-me ver estrelas e coordenadas e me descoordena diante da razão. Faz-me pensar sobre o que eu não pensei e o que pensei de outro modo e do mesmo modo que pensei e multiplica meus pensamentos sobre todo o desimportante que importo, puro malogro. Faz-me virar um mapa de terras desconhecidas, de conquistas sem data, de geografia serena e enlouquecida. Faz-me correr e parar e ofegar num jeito submisso insubmisso para outras ordens que ignora, ou pressente, ou simplesmente despreza, enquanto faz-me experimentar, experenciar amar, mesmo que ainda paire dúvida sobre o que é o amor, mas certo do amor. Faz-me angústia e melancolia por incerteza obrigatória, necessária. Faz-me agir em mim, retombar de ditos e não ditos de todo o tempo perdido e encontrado. Faz eco em mim, ressoa em mim, abraça em mim o abraço. A você se seguem todas as reticências dos impossíveis possíveis em mim. Seguem-se pontos, vírgulas, exclamações, interrogações do sentir. Maravilha-me você em mim...

sexta-feira, 18 de junho de 2010

Pensava nele

Nessa quase hipotética metade restante da vida, ela queria o Tempo fluido, nada mais. Queria o Tempo repleto, transbordante ainda que em copo vazio, porque sabia que todo continente carregava a sombra do vazio, mesmo aparentemente cheio. E percebia mais, percebia que o vazio era só um ponto cego, inevitável de toda ordem, porque o que se supunha cheio eram certezas de um tempo fragmento, antes do pensar e do pensar viver. E a morte? Incomodava às vezes, mas somente pelo pesar do Tempo corroído, pois preferia o Tempo ‘adorido’ e mesmo dolorido, intenso Tempo. Queria o Tempo lembrado, mesmo que depois não pudesse mais lembrar, por não estar mais; que Tempo que lembrar é Tempo vívido, Tempo em lua cheia, clarão, guardado até na escuridão. Pensava também no Tempo sonho, Tempo da imaginação que não se gasta, Tempo em potência de multiplicar, em que se poderia viver tudo sonhado sem sono, e até os desavisados momentos que nunca na mente consciente insurgiram, pura magia e surpresa. Pensava na altivez e na submissão do Tempo, no cambiante Tempo culpado por tantos, apenas uma informe substância psicológica, previsível e fatal, passional, inocente. Pensava nele, sempre pensava nele, e temia que ao se concentrar tanto nele, ele se descontrolasse mais ainda, enquanto ela se alienava dele por pensamentos. Mas pensava nele; ele era sua paixão irrequieta, imprevisível. E ele vinha sempre ávido por consumi-la, e ela o deixava vir, por vezes, ou o continha, mas nunca sabia exato como recebê-lo. Então, o tempo ficava descontente, veloz nos momentos felizes, lento nos tediosos; teimoso tempo. Se ele ia rápido, ela sofria; se ia lento, sofria também. Todo o movimento do Tempo era tempo de pensar no Tempo. Então ela pensava nele, sempre pensava nele...

Vai e Morre

Tempo lento
Indício de passar veloz
‘Inaproveitado’ tempo
Fluido a escorregar
Desperdício vício
Inércia de não esperar
Por vontade duvidosa
Em direção ausente
Difusa descontente
Tempo vai
Tempo morre...

quarta-feira, 16 de junho de 2010

Enquanto 'dorme'

À meia luz, insone, ela se posta de olhos abertos, atentos à face ao lado; Nos cantos da boca dele o meio sorriso beijado de lábios rasgados, uma imensidão que ela beija agora sem tocar; O sentimento do respiro suave das narinas, do olfato obtuso em querença de compreensão, o cheiro compartido feito lastro; Os olhos dele estão fechados em sono irrecusável, indecifrável, enquanto os dela, vigilantes, teimam em congelar a cena, a encantadora cena alheia ao contemplar dela, frágil no ressonar delicado, desprotegido; forte na alienação do mundo onírico; Inerte num movimento encantador de imagem plácida, perfeita escultura de tons rasos e profundos, traços delineados; Imagem amada em exagero do peito dela das horas de pensar e ‘impensar’ por só sentir; Aquela imagem ali, ao lado, sob vigília de um olhar à procura de densidade, de precisão, de atenção; No oculto da penumbra, liberdade; no acalento imprevisível do sonho dele, prisão? Que sonho sonha ele? Ah, ela teme não ser o sonho daquele instante; Ela nega aquele sonho por não participá-lo; Admira aquele sonho que não vê; Sonha junto aqueles sinais do rosto, aqueles pulsares involuntários do corpo dele; Que vaguidão se permite ele naquele momento que escapa dos dedos de nervos, aguçados desejos dela? Naquela festa do inconsciente libertário, caótico, maravilhoso e até horrendo para a qual não foi convidada? Enquanto ele ‘dorme’, ela adormece o real e sonha o sonho dela; Enquanto ele ‘dorme’, ela desperta o seu sonho de olhos arregalados; E desenha aquele rosto com rigores de afeto; Revela e amplia na mente a fotografia dele enquanto ‘dorme’...

quarta-feira, 9 de junho de 2010

O amor

O amor do outro é o amor da gente. O amor outro em nós espelhado. O amor é olhar tão indiscreto em nós que vem e lê as sutilezas dos nossos sentidos indiscretos, desnudados, escancarados mesmo em face de recato. O amor é um estranho perfeitamente reconhecível, que nos faz experimentar cada gesto como novidade rara e fazer de conta que nunca viu, nunca sentiu, e não sentiu mesmo, porque o amor é descoberta tão funda que parece rasa, até se fazer entender amor. Ah...se fazer entender amor é peito em disparada só por pensamento de cumplicidade no gozo do outro, na angústia do outro. O amor de tão dito perdeu qualquer dito de precisão por ser precisão tão premente. Amor é falta desajustada sem coisa qualquer que lhe compense, que lhe valha, porque o excesso torna-se diminuto, um exceder surreal, que escorre e fica fluido, e ferve, e sublima, e vira só aroma, enquanto nós farejamos loucos de medo, medo de perder. Amor é medo, é solidão, é larguidão...De tão largo, o amor faz distração em nós, atenção descomedida, poesia.

quarta-feira, 2 de junho de 2010

Febre

Nunca tivera tendências ou características febris, embora sempre medisse temperatura alta, enquanto outros eram amenos. Pensava que era coisa de coração e mente agitados a fazer o sangue correr veloz e a esquentar o corpo. O prenúncio de qualquer enfermidade nela, virótica ou bacteriana, jamais se combinava com estados febris; reagia com outros sintomas clássicos, mas não tinha febre, até que um dia chegou; veio-lhe com intervalos de calafrios, seguidos de mais quentura. Disseram-lhe que finalmente a febre se manifestara, que talvez fosse malária, pois ela tinha, há pouco, visitado um estado do norte. Fez os exames e nada foi diagnosticado. O aquecimento vinha como uma carícia em cada parte do corpo, ou mesmo um beliscão de assustar; torturas diminutas e repetidas. Vez por outra as sensações agigantavam-se, e pareciam percorrer um caminho feito corrente elétrica em fio de carne. Queimada a carne exalava odores que a incomodavam, embora ninguém ousasse dizer que percebia, mas sempre a alertavam do rosto vermelho e das mãos abrasadas. Ela tinha uma urgência qualquer que a inquietava, desviava pensamento, desconectava tudo. Seu equilíbrio parecia cada vez mais frágil, cada vez que essa corrente quente percorria suas reentrâncias e falhas da alma. Tudo o mais se perdia naqueles momentos febris, posto que tudo era ensejo de sonho, solidão e amplidão, sensações opostas multiplicadas. Passou tempos assim, na alternância do frio e do quente, intermitente, nessa febre maleita. Um dia sua mãe estranhou o passar da hora de todo dia, da hora de levantar. Girou a maçaneta e quase desmaiou diante da figura da filha abrasada sobre a cama, a exalar um cheiro ácido e adocicado. Pensou o pior. Mas ela levantou-se sorridente a contar do sonho que tivera, da dança em volta da fogueira, das maçãs em brasa soltando mel, do calor no peito e na alma, dos abraços que deliciara em torno do fogo e do degustar das frutas vermelhas; os sentidos todos inundados; olhos flamejantes de luz, boca de saliva fluida como rio doce, nariz de abas levantadas a sentir toda sutileza do cheiro, mãos em mãos, em peles de conforto, ouvidos em som de risos, em silêncio de risos. Depois desse dia ela não teve mais febre, era só calmaria; e de vez em quando exalava um perfume adocicado...

terça-feira, 1 de junho de 2010

‘O rumor do medo’

E o medo não vem do rumor, do ‘rumor da língua’? Pegajoso e contorcionista como um anelídeo em fuga; substância travosa nas papilas em pavor; o medo está na língua que profere e cala. Escarlate e violeta, todo subida e descida em esforço e disparada, o medo é o ressoar surdo das palavras, é o grito agudo inaudível. É sentimento líquido e veloz, o sentir escorrer em abismo de cachoeira; respinga cortante o medo; pingo de luz arco-íris ofuscado em escuridão. É tudo que dizem e disseram e desdisseram e retrataram e reviram e solidificaram como pedra diamante; indissolúvel o medo real. ‘Medinho’ não...Medinho é só um jeito de pedir carinho. Medo real é palavra guardada, severa na mente, refletida no corpo, pulsante no coração...Medo real carece muito mais que carinho medido, precisa afago descomedido, porque o rumor da palavra fica lá feito vento cortante, atávico...vento rumor de ditos que viajam sem sair do lugar, familiares, indeléveis na alma a escapar em humores ácidos e melancólicos...em rostos plácidos de terror...uma pintura irreconhecível...um rumor para o ouvir de orelhas de lobo, suspensas, sensíveis...


E seguindo a sugestão do amigo Paulo do Marcas d'água...

O poema pouco original do medo
De ALEXANDRE O'NEILL

O medo vai ter tudo
pernas
ambulâncias
e o luxo blindado
de alguns automóveis

Vai ter olhos onde ninguém os veja
mãozinhas cautelosas
enredos quase inocentes
ouvidos não só nas paredes
mas também no chão
no tecto
no murmúrio dos esgotos
e talvez até (cautela!)
ouvidos nos teus ouvidos.

O medo vai ter tudo
fantasmas na ópera
sessões contínuas de espiritismo
milagres
cortejos
frases corajosas
meninas exemplares
seguras casas de penhor
maliciosas casas de passe
conferências várias
congressos muitos
óptimos empregos
poemas originais
e poemas como este
projectos altamente porcos
heróis
(o medo vai ter heróis!)
costureiras reais e irreais
operários
(assim assim)
escriturários
(muitos)
intelectuais
(o que se sabe)
a tua voz talvez
talvez a minha
com certeza a deles

Vai ter capitais
países
suspeitas como toda a gente
muitíssimos amigos
beijos
namorados esverdeados
amantes silenciosos
ardentes
e angustiados

Ah o medo vai ter tudo
tudo
(Penso no que o medo vai ter
e tenho medo
que é justamente
o que o medo quer)

O medo vai ter tudo
quase tudo
e cada um por seu caminho
havemos todos de chegar
quase todos
a ratos

Sim
a ratos.