sexta-feira, 16 de julho de 2010

Camaleão

Parecia-lhe que o amor vinha tarde; e por assim ser, tardio, vinha com força descomunal, num ímpeto de solidão mesmo em presença, num querer abarcar todo instante com sentimento repleto, num transbordamento de cachoeira a escorrer por rocha cheia de falhas, a respingar o mundo. Parecia-lhe que o amor vinha cedo; e por assim ser, impúbere, vinha com incertezas certas a desequilibrar corpo e mente como redemoinho de rio a deixar ponta de pés e cabeça inviesados, puro lamento e afogamento, puro encanto e salvação até ver o céu de novo. Parecia-lhe que o amor vinha no tempo; e por assim ser, certeiro, vinha na madureza duvidosa, no tempo da fronteira, tempo de visões amplas, de visões especulares, lupanares, microscópicas. Parecia-lhe que o amor fugia; e por assim ser, fugidio, desvinha em turbilhões de fantasmas, de imaginários tortuosos, oceanos em tormenta, obscenos. Parecia-lhe que o amor vinha e desvinha, um camaleão em terra ferruginosa, ressequida e sedenta, em terra de vegetais de curvas repetidas e fatais, curvas de cores ocres, troncos de pele; e camaleão lá grudado, pele na pele a memorizar cada nuance, a sobreviver...amor camaleão...

quarta-feira, 14 de julho de 2010

Poetar

Queria uma poesia larga de mim
Mas a caber-te
A entrar-te num justo movimento
Num agir compreensível
Queria a tua poesia também em mim
A estreitar-se pelos meus caminhos
Mesmo num susto de descoberta
E até em estreitamento
Queria todo desvelamento de mim em você
De você em mim
Poesia astuta e sensível
Poesia verbo eu e você
Poetar-te
Poetarmo-nos

quinta-feira, 8 de julho de 2010

Aprendiz de voar

Hoje amanheci com mamãe a socorrer uma rolinha aprendiz. Chegou com a toda redondinha de penas, aparentemente calma, mas querendo voar. Mamãe pensou; ‘caiu do ninho’...'corre perigo com tanto gatuno por aqui’...Mamãe abriu a porta numa fala mansa , cheia de carinhos com a bolinha de pena, em mãos acolhedoras, mãos de mãe, preocupada com os gritos da rolinha mãe. A passarinha tinha biquinho saliente e cor de penumbra...e só queria voar...Abriu as asas e deu um rasante e foi parar no chão, bem debaixo da minha cama. Mamãe a resgatou e a colocou sobre o muro, na dúvida de que sobreviveria...Até que chegou a mãe rolinha, e num lance de vôo pro alto motivou a decolagem de bolinha filha..Bolinha acertou o passo, acertou o vôo, e mamãe ficou orgulhosa lá embaixo ao vê-las, mãe e filha no mesmo lance de laje a contemplar quem sabe outro lance mais alto, até o rasante virar vôo alto de vez...

quarta-feira, 7 de julho de 2010

Desaviso

Lembrava-se...Sim, lembrava-se claramente daquele namorico adolescente que tivera; tão intenso que parecia nuvem baixa, aterradora, a chover forte e fraco, sem parar. Ele postou-se no portão de sua casa, bem do outro lado da rua, com uma pequena sacola dependurada nas mãos, vindo de uma cidade distante, logo ao amanhecer. Ela amanheceu assim amanhecida por ele num susto de visita desavisada. Ele vinha ver o amor de poucos beijos meio incongruentes, segundo a acusara, de quem beija das primeiras vezes; beijos de descoberta...Mas ele disse que viria assim mesmo, a despeito daqueles beijos atrapalhados, porque vira ela como uma membrana de libélula, não perfeita, mas absolutamente transparente, incoerente. Ela abriu-lhe o portão com dores na barriga de tanto susto, mas não deixou que ele entrasse. Disse que já ia; somente guardou a sacola em casa, e levou-o logo cedo para a escola. Não teve coragem de apresentá-lo como namorado de palavra dita, só de presença não dita. Alguns viram neles semelhança curiosa; acusaram-nos de serem irmãos pelo traçado do nariz e da boca, até pelas pernas, pelo jeito acusativo de ser; jeito de gente comum e incomum no sentir, perdidos no encontro que não fora marcado. Passado o tempo de aula se foram e deixaram-se ficar numa das primeiras paradas do ônibus para assistir um filme, do qual não se lembrariam de cena alguma, senão da sua própria cena dirigida para o acerto do beijo e surgir de novas carícias. Teria que levá-lo para casa finalmente e aceitá-lo com qualquer olhar, ainda que esse olhar pudesse fugir dela mesma, escapar do seu vôo, do seu pouso de libélula. Ele entrou sem susto na casinha simples, conheceu a mãe dela, pediu para tomar um banho e seu foi...Ela ainda se lembra do cheiro forte do perfume a exalar pela casa após o banho, e até hoje a fragância submete a sua lembrança em qualquer lugar que surja. Tiveram outros encontros apesar da distância, mas aquele dia desaviso adolescente não se repetiu...o delicioso desaviso, impulso a amedrontar, encantador...