sexta-feira, 24 de setembro de 2010

Encontro de sentir

Chamam lembrança essa inscrição de ti nas folhas da minha mente,
Chamam saudade também,
Eu chamo mais,
Alguma coisa sem palavra, inaudita e faminta;
Eu chamo outras palavras e se as somo penso beirar o sentido,
Ainda assim não digo, não encontro;
Algo permanente assim, nem potência, nem realização, um presente em desvão, incompleto e transbordante;
E se com prazer te fito em pensamento;
Com ternura te miro incessante, inebriada, alcóolica;
Uma sensação de estar com, de ponte a ligar dois lugares, e um receio de desabar e em rio me fazer mistura bem distante da nascente, origem, aura esquecida;
No espelho minha visão refletida, parca de mim;
E carente de saber o que vês, em que retrato me julgas ou se distrai de mim, que vozes ecoam dessa imagem de condizer ou desdizer dos cliques inevitáveis no correr do tempo, sou outros tantos, mas há um outro que sou eu mesma no encontro de sentir.

quarta-feira, 22 de setembro de 2010

Amor arrebol

Ela pensava que seu amor por ele era feito um arrebol; um lugar de despedida e chegada a todo instante. Alguma coisa que se faz sem perceber; um contentamento de receber e dar, uma dor ao perder, todos os dias esse susto de ter e não ter, a inexata cor fracionada no tempo em nuances claras e escuras, feito um arrebol. Sentia uma intensidade de luz que se aproxima, uma vaguidão de luz que se afasta, como um acalento, uma despedida. Seu amor era sim um arrebol, um entrelugar, a transição do momento, sem nenhuma garantia no tempo; arrebol tão humano, desses que abandonam qualquer um tão logo venha a cegueira eterna; arrebol desumano, desses que desafia as pupilas em ardor. Não haveria melhor descrição senão esse lusco fusco para seu amor, amor arrebol, anúncio do sol e da lua e das estrelas. Um dia, mais de um, ela avistou com ele o arrebol que traz o sol, que traz a lua, e como num cegar santo por tanta beleza, ela virou amor arrebol...

segunda-feira, 13 de setembro de 2010

Esferas insustentáveis

Era no redondo e nas reentrâncias do ombro o reconhecimento do amor. Não havia outra parte mais reveladora nele, que lhe fosse mais atraente e contente de tocar, de acariciar, como se ali estivessem guardados todos os motivos de amor e desamor, tudo revelado naquela circunferência de tato, os dedos dela no ombro dele. Era como apalpar a bola mágica, e então todas as imagens não tardavam a se desfiar como claras e débeis. Era naquele sustentar frágil de certa vez, ou por todo o tempo, o ombro - um lugar que guardou sua vida, seus enlevos, suas derrotas, seus músculos e ossos em articulação de imponência e decadência -, que ela se mirava, se misturava. Era no redondo do ombro que ela sentia o pulsar do coração dele, o porquê de, por vezes, bater lento e descrente, alheio, ausente. Era talvez a profunda angústia nesse toque, a inquietude de conhecer tanto desvelamento, que o fazia delícia. E era também um ninar de criança desprotegida, como se o choro pudesse minar súbito daquele ombro e banhar em vertigem todo o corpo amado, e respingar nela, até que os dois fossem só rio, e seus ombros apenas esferas a flutuar sob um sol morno e brilhante, leves ombros por amar, insustentáveis.

quinta-feira, 9 de setembro de 2010

Fundo

Amor é sentimento fundo
De tão fundo perde o fundo
Amor não tem fundamento
Ainda que fundamentado
Em argumentos falhos
Argumentos imprecisos
Amor é coisa de se admirar
E angustiar no dia
À espera da noite
Amor é céu noturno em constelação
Às vezes tem cara de lusco fusco
Confuso amor
Só certeza de fazer existir
Existir pelo amor
Em lembrar que volta toda hora
Grudado no sem fundo
Subterrâneo amor

quarta-feira, 8 de setembro de 2010

"Casa Mãe"

Ela não sabia se era mesmo a ‘Menina do Rio’, porque tinha nela uma mineirice, um ar de montanha tão agarrado, que seria difícil assumir um papel assim de verão da alma. Pensava sim que os cariocas tinham uma alegria de tempo de sol, até mesmo nos momentos de humor conturbados, abriam-se em palavras rasgadas com som a reverberar, soltavam o grito, aliviavam a alma. Mas ela achava que tinha um privilégio naquela cidade de água, rocha, verde e construção, que a fazia meio de Rio, meio de Mar. Lá já tinha morada com direito a acolhimento de família, a risos em volta das refeições, mas muito mais um prazer ao retorno a um mundo lúdico e incansável, como se a juventude pudesse durar o tempo da eternidade. Lá se sentia mesmo menina, e soltava gargalhadas, e perdia o juízo pelo mar e pelo sol, e era um pouco filha da Gláucia e do Gilmar, irmã da Gabi, da Vick e do Danilo. Os visitantes dessa vez se multiplicaram; meninas de Minas, menino Paulista. A mim e Vivi se somaram a energia e o riso solto da Sílvia, o comedimento sensato da Vilmara e a meninice do Zé. Eram cinco a mais na casa, sem contar os de lá, primos e amigos, as crianças do Rio, todos acampados em colchões distribuídos por toda Casa Mãe. O programado era visitar os pontos turísticos mais conhecidos, o Cristo, o Pão de Açúcar, mas tudo se desviou e o cotidiano da cidade ficou mais próximo no Centro do Rio mesmo, com a cadência do Samba da Rua do Ouvidor, cheia de casario antigo, pontes de luz e charmosos barzinhos e livrarias, e a travessia de barca Rio-Niterói com vista linda da Baía de Guanabara, do aeroporto Santos Dumont, da Ilha Fiscal e da dança das gaivotas.


A Santa Terez(s)a de lá

A de lá é parecida com a daqui
Tem morro de subir e de descer
Tem gente a procurar
Tem gente a encontrar
E tanta casinha de encantar
E ruína de admirar;
E a música bonita também mora lá
E nas infinitas portinhas de vender
O saborear dos quitutes e o bebericar, o papear;
O bonde daqui já se foi
Mas o de lá continua a passar
Com gente a amontoar, a dependurar
Até por sobre arcos a equilibrar
Com rés e trancos do caminho
E gente namoradeira a sorrir
Ranzinza a reclamar
Curiosa a olhar,
E no susto do alto
Até chegar no baixo
Nos chãos depois de voar
A lembrança de querer voltar
Pra ver o Rio
Vale encantado
Do morro de Teres(Z)a Santa
A vigiar...


‘Em Chamas’

Bem lá na comunidade do Rio dos Pedras, no Rio, tem um castelo enorme a que chamam Castelão. Só que o Rei de lá não tem coroa nem cetro, parece mais um dragão a cuspir fogo pelo salão. O Funk é o grande Rei a ditar o ritmo frenético do baile, e todo mundo vira rei a se exibir, nos movimentos de requebrar, até o castelo ficar em chamas. Não há dança nobre e nem vive de nobreza o castelo, mas de uma mistura de gente de todo jeito que se imaginar. Chegam pessoas de todos os lugares só pra dançar no baile de passo sensual e criativo, ou mesmo para ver o ritual dançante do outro, mas sem reverências obrigatórias, somente o direito de se soltar e incendiar o castelo.


‘Em ondas’

Afogamento não tem graça nenhuma, mas o do Zé, primo da Vivi, vai ficar pra história. Zé pensou que onda tinha natureza controlável, contornável, e se ‘misturou’ na onda. O Zé é um paulista que foi visitar o Rio e ficou só no meio de carioca e de mineiro, melhor dizendo; mineiras. Logo no final do feriado, o Zé deu de se empolgar e mergulhar no mar de tormenta, lá na Barra. Foi ele, nesse dia fatídico, atrás do Hugo e do Danilo, primos cariocas experientes no balanço das ondas. O mar não estava pra peixe e muito menos pra gente. Dia meio frio de ventania, de mar fundo na beira, quando de repente se avista o Zé num tumulto de braços num buraco de mar, sem conseguir dar um passo nem para frente, nem para trás. Danilo e Hugo um tanto solidários, mas também receosos, nada conseguiram fazer, até que chegaram dois salva-vidas e resgataram o Zé, que saiu meio tonto, de perna bamba, uma delas manca. As meninas mineiras ficaram só a ver a cena; desconfiadas com tudo não iam abusar logo do mar. Gabi, a cicerone, não perdeu a chance de tirar mais uma foto. Todas assistiram ao salvamento no entrelugar do riso e do meio susto, porque nunca acharam mesmo que o Zé fosse se afogar. E Vivi dizia: ‘Meu Deus, já pensaram se acontece alguma coisa com o Zé? Todos iam cair em cima de mim...’, como se o Zé ainda fosse criança. Bem, não foi preciso fazer respiração boca a boca e o Zé não teve que suportar mais essa gozação de todos. São e salvo, sem perder a pose de paulista se dando bem no Rio, o Zé terminou mesmo sendo o protagonista da mais engraçada e memorável história do dia.

quinta-feira, 2 de setembro de 2010

Ruído encantado

Não importava para ela a proximidade máxima naqueles instantes. Valia mais aquela audição de idéias em perfusão, aquelas palavras argumento que vinham em torno da mesa redonda, em meio à pequena sala. Ecoava aquela voz grave no ambiente, e pelos seus ouvidos ávidos entravam dizeres de consentir, dizeres de duvidar, dizeres vários. Vinha por vezes um soluço silencioso no peito, de não compreender exato, tal qual ele dizia, por não haver a comunicação perfeita, um saber a anteceder, e pela falha na interlocução, um som inaudível qualquer, perturbador, dificultava o entendimento, e ele dizia sem pudores, seguro em fortes evidências acadêmicas, sobre essa impossibilidade do diálogo perfeitamente claro, raro, apenas um ideal. Nesses momentos surgia certa angústia e a vontade dela era chegar perto e tocar a boca dele em beijo infinito, fazer laço apertado no corpo dele com o dela, mas sabia que não podia fugir dos ditos a ressoar na mente; então retornava pacientemente à audição, àqueles tons crescentes e decrescentes de voz, àqueles movimentos ascendentes e descendentes dos braços dele a conduzir a palavra em gesto, enquanto os olhos buscavam compreender também a recepção; os olhos dela de acolhimento e de incompreensão. Assim, ele sempre duvidava da compreensão dela, pensava ser tediosa sua fala, extensa, empolgada, como se o mundo dos seus próprios pensamentos girasse em torno dele, como um satélite manco, deficiente em irradiar, senão a ele mesmo, a avançar sobre si de forma inevitável. Mas a angústia de entender era também convergente, dela pra ela. As palavras chegavam solitárias, ansiosas pelo interpretar. Nesse momento eram palavras órfãs à espera de adoção, da emoção e da inquietude de receber, de reconhecer e de estranhar. E o conviver, viver, era reconhecimento e estranhamento por meio da palavra, do movimento calado, gritado. E esse ruído impertinente devia ter mesmo algo de maléfico, mas também de virtuoso, porque permitia enviesar os caminhos e encontrar outras possibilidades; subjetividades, alteridades necessárias. Ele sempre fora para ela essa confusão encantadora, esclarecedora e ruidosa, toque e palavra a se encontrar entre razão e natureza, fronteira.

quarta-feira, 1 de setembro de 2010

Ricardo Fabião

Recebi com muita alegria de Ricardo Fabião esse lindo texto!

A FRONTEIRA


Para Ane, Jessiely, Keila, Renata;
mulheres que arriscam alma e palavras
além de suas próprias fronteiras.


E com quatro dos símbolos aprendidos ele escreveu 'viver', e assim começou a história. Escreveu, que gostou, e soube como seguir. Agora cada um daqueles símbolos abria uma estranha passagem, o que ele tomou para si como ofício, para riscar nas coisas e arriscar-se mais. E desejou juntar todos eles, os vinte e seis símbolos, para chegar a todas as palavras do mundo, e com isso escrever tudo que se ouve e também tudo que se cala. Foi a professora, com algum tipo de luz nas mãos – como faz o sol, ao rasgar diariamente os caminhos e as cores aos seres – que os desenhou no quadro, com giz e magia; e não só isso foi aberto ali, o que se escreve e a estrada depois: algo que ele não sabia onde era estendeu-se muito mais mundo adentro, que ele só alcançaria de juntar e dizer todas as letras. E foi sem cansar disso até assim. Juntava então nos dedos as letras e as escrevia no ar. Escrevia, escrevia, ininterruptamente. Onde estava o mundo, lá estava seu dedo a escrever em cima das coisas, com exclamações nas ladeiras, interrogações no horizonte. Quando o ar estava cheio dos seus escritos, ele os apagava até que se refizesse o vazio para abrigar mais palavras. Até aí era o segredo, o menino. Certa vez, no desvio do caminho, quis saber como era juntar humanos e sentimentos na mesma frase, e pôs 'Lúcia' em cima, no topo da paisagem, e 'meu amor' embaixo, com reticências para que ficasse ao tempo. E contemplou a possibilidade e a fundura daquelas palavras. E tão logo percebeu que alguém poderia ler o pedaço rabiscado do vazio, que com mão demais apagou além do que deveria, e deixou um buraco no céu onde antes estava 'amor'. E assustou-se. Sem aquele pedaço de ar faltava-lhe algum caminho até ser completamente. Mas não houve jeito: agora estava lá, em todos os lugares aonde ia, no que sentia e almejava, o tal amor apagado às pressas, doendo onde não estava, um furo no céu, um oco suspenso no olhar, que seguia junto, desconhecedor das horas. E foi nessa margem menos visitada que cresceu. Assim, o adulto e o destino. Todos os dias punha escadas e escrevia no vão do amor arrancado, tentando chegar com palavras ao tamanho necessário da falta, algo que vedasse o incômodo de enxergar além. Quis remendar com linha e agulha, com adesivo e cola, mas nada fechava naquele lugar. Ainda fingiu que era janela, mas tinha de fato medidas de lacuna, e não coube uma cortina. Depois ele soube que ali estava a fronteira. Um dia encontraram apenas a escada. No mundo de cá, aos de sensibilidade, restou o que ele havia escrito. Dizem que virou poeta.




Ricardo Fabião (Agosto - 2010)