quinta-feira, 21 de outubro de 2010

Trocado?

Ele estava sentado ali na calçada em curva, os sapatos trocados, mas bem postos em pés sem meias, o olhar vago e o dorso nem tão emborcado. Ele achou de dar-se por ali, naquele canto sem canto, enquanto transeuntes olhavam-no dispersos, uns poucos atentos. Talvez ele fosse trocado de lugar como as vestes dos pés, talvez estivesse no lugar exato que planejara por força daquilo que não entrevia. Não havia paisagens, embora sob a cabeça o céu fosse razoavelmente azul por nuvens em contraste, rasas nuvens de chuva. Seus olhos também eram rasos, mas por eles não verteria chuva alguma, senão breves piscadelas sem direção, pura vaguidão. E assim ele vagou por lá sem vagar, com o vagar de quem contempla sem contemplar o de fora, mas um contemplar por dentro, de um jeito sanguíneo e melancólico, tudo em vermelho e preto, dia e noite a se fazer distante dos relógios do mundo. E por horas trocou-se por lugar algum que não aquele mesmo, onde não se situou, não voltou, nem sequer esteve.

terça-feira, 19 de outubro de 2010

Vingar

Ela se ressentia das amizades que não vingavam; ironicamente tencionava se vingar de todos esses sentimentos desatentos, rasos, indisponíveis. Mas ela também não se redimia de tê-las também negligenciado por avaliações precipitadas ou por indigestões momentâneas e até duradouras. Essa visão sempre voltada para o centro de si mesma, ainda que disperso, por boas vezes, bloqueara essa visão plena do outro, suas possibilidades infinitas, repugnantes, mas também adoráveis. Mas ela sabia também que o outro podia ser um caminho inóspito, e então, o dispêndio de forças em desequilíbrio teria quase sempre o efeito de ofegar e lamentar menos experiências compartilhadas. Alguns diziam que existia uma tal afinidade, uma empatia a que não se podia fugir. Ela não cria piamente nessa idéia, posto que a revelação de si para outro era sempre incompleta, e esses ‘disfarces’ de proteção ou dissimulação talvez fossem o desafio mais fundo de viver o outro. E viver o outro era surpresa a cada instante, se houvesse disponibilidade, gentileza. Mas ela nem sempre se punha disponível, gentil, porque esse ideal subsumia diante do mundo de objetivar em que se embrenhou, diante de tanta individualização. E subjetivar o outro em suas diferenças, em suas sombras, reflexos famintos de compreensão, era todo o sentido, o significado de viver. E se a custo da sobrevivência, a alteridade tivesse que ser desprezada, o mundo seria pouco e a sobrevida ressecada, improdutiva. Teria que se vingar a todo tempo dessa escassez de sentimentação pelo outro, do excesso de sentimentação sobre si mesma. Teria que ser sentir ação misturados, em diálogo permanente, a afastar toda materialidade ou abstração utilitárias. Teria que se convencer do convívio em fragmento, em busca de completude. Teria que se convencer da dor e da alegria de conhecer, desse entrelugar dos sentimentos em ação pendular, em perfeito desequilíbrio.

sexta-feira, 15 de outubro de 2010

Rever a ilha

Há lugares que nunca mais voltaremos ou veremos como tal; sensações também nem sempre serão percebidas como dantes. Os lugares, os mesmos lugares de outrora, diferentes são porque são ida em retorno, pra guardar outras experimentações, ‘sentimentações’ sobre um sedimento qualquer de plenitude e solidão. A ilha fora para ela uma descoberta redescoberta sem tanta pressa e tanto deslumbramento por imensidão de mar, mas uma angústia por registrar cada detalhe, como se fizesse lupa humana, e humana se ‘agrandasse’ na visão sempre incompleta, naquilo que não se apreende, mas vaza em si e também retém, como represa em tempo de seca, em tempo de tempestade. A perfusão de pessoas a chegar e a ir era a mesma da outra vez, mas ela não se via assim nesse turbilhão primeiro, mas em uma meia mansidão de um já visto, nem todo visto. E revisitava aquele pedaço de terra desgarrado do continente com desejo de rever algo que não fora esquecido, mas que encontraria de outra forma, em meio a outras pessoas em espírito vário como o de sempre, e o tempo não seria o mesmo, o ‘dorminhar’, o acordar, o pisar. Repetira alguns lugares, fora a outros, e não saberia dizer da exata sensação do ‘repetir’, do ‘descobrir’. Pensava, por vezes, que a confusão vinha dessa disposição inconstante da alma. Rever a ilha fora degustar e não abarrotar o estômago faminto. Rever a ilha fora entrar em si em descoberta de susto e calma, de apreender a ilha de dentro, solitária e gregária, em desajeito e procura de firmeza. Rever a ilha fora conviver mais de perto, enfatizar o ver e o sentir dos lugares para ouvidos mais atentos quem sabe, fora segurar mãos, segurar-se sem mãos, respirar e ficar sem ar, esquentar e esfriar, perceber esse intermeio, esse entrelugar tão humano.


A praia das pedras


Tem gente que gosta é de mar aberto, e margeando algumas pedras, mas nada pelo caminho. Santo Antônio, a praia em Ilha Grande, é cheia de pedra pelo caminho, e até caminho de pedra a dar em outro mar. Ter uma pedra pelo caminho pode não ser lá muito convidativo, mas várias pedras em mar alto, de rocha maciça e em falhas só pra receber o mar, é lindo de ver. A água entra arrogante nas falhas e bate tão forte que sobe em movimento chafariz. Ao longe se avistam nuvens de fumaça, delicadas rosas instantâneas, rosas fluidas, rosas de água, flores atômicas no meio do mar. Eu queria ganhar uma rosa de água todos os dias à beira mar e só olhar as pedras no caminho do mar, pedras só de admirar. E pensar que foi num desvio do caminho que fomos dar no mar de pedra, com todo custo pelas pedras do caminho fomos dar em mar de pedra, pedra boa onde brota rosa de água, que nasce e desmancha em instantes, no inconstante entrelugar da rocha e do mar.


Entre a ilha e a ilha

‘Que distância acha que existe entre cá e lá?’ Cá era um ponto da Praia de Lopes Mendes em Ilha Grande. Lá era a Ilha de Jorge Greco. Não havia por perto ninguém que detivesse essa informação, apenas nós, eu e Helvécio, sentados no tronco de árvore e essa pergunta em busca de resposta. A questão era optar por um método de calcular o espaço entre a praia e a Ilha. Enquanto eu supunha quilometragens absurdas, ele tergiversava sobre a impossibilidade daqueles números e propunha uma forma de cálculo que considerasse o tamanho das construções visíveis e da falange distal do dedo polegar posicionados na conhecida fórmula matemática da regra de três, que por fim definimos que resolve quase todo problema matemático. Encontramos um número razoável de quilômetros, que fez praticamente cem quilômetros cair para dez, coisa de gente que costuma andar somente sobre terra. O mar nem estava frio e as ondas não eram muito revoltas, mas do lado de fora vigorava o vento e o céu anunciava uma chuva em breve. Optamos por voltar de barco para evitar os tropeços na trilha enlameada e quem sabe a escuridão do dia que já se findava. Tudo no entre; entre a ilha e a ilha, entre o dia e a noite, entre o sol e a chuva, entre eu e ele...


Dois para Dois


Resolvemos no último dia estender nossos ‘estudos’ na ilha e visitar Dois Rios em abraço com o mar. Pegamos a estrada, denominada também T14, e tencionamos até migrar para a T13 rumo ao Pico do Papagaio, mas declinamos da idéia. Seguimos mesmo, eu e Helvécio, pra Dois Rios, naquela estrada já cheia de história divina em oração e macabra dos tempos do presídio. Ilha geralmente é lugar de isolamento, e para elas, as ilhas, muitos foram levados para perderem a chance de serem solução de continuidade; um isolamento físico para apagar as almas que, muitas vezes, só se sabem por conviver, só se ressentem e se embatem por conviver. Enquanto isso, íamos nós nesse convívio de caminhar muito mais que falar, nesse convívio de dar as mãos e impor o ritmo pra chegar, pra descobrir. Foram várias as paradas; no mirante pra ver a Vila do Abraão por trás, nas pontes pra ver água e resvalar por rocha, até pegar a trilhinha mágica de bambus, curta e hospitaleira, e voltar pra estrada. Chegamos enfim na guarita, registramos os nomes e avistamos e vila em círculo, pequena, meio vazia, de casas antigas e árvores altas e frondosas. Seguimos para a reserva do almoço com uma das duas Terezas e aportamos no mar azul anil, ladeado nas pontas por rochas, por trás por mata atlântica, mar pra se ver todo, pra gente se fazer solidão e companhia. Visitamos também um dos braços de rio com água a cintilar ouro da areia do mar, rio a se confundir com mar. Nadamos pouco, mais olhamos com deslumbramento de ver o belo. Almoçamos comida caseira e voltamos em passo rápido pra não perder a hora da barca, a ida de volta para casa.


Entre o barco e o frio


Os passeios de barco são para nós que estamos longe da vida do mar, sempre uma grata surpresa. E claro, tencionamos passear em um lindo dia de sol, e mergulhar, e secar em vento morno. Mas esse que fizemos em direção às ilhas de Angra dos Reis – Botinas e Cataguazes – e Lagoa Azul foi no frio mesmo, regado a chuva e respingo de mar. Fomos eu, Helvécio, as meninas da excursão, Elisa, Mércia, Ceura e Eliana, todas animadíssimas e sempre de bom humor a despeito do tempo adverso, e prontas pra fotografar. Todos equipados e ansiosos por ver peixe debaixo de mar, por ver paisagem reluzente. O sol não deu o ar da graça, e o frio impiedoso em certos momentos, motivo de abraços, aconchego e conversa. O barco foi lugar de buscar mais o outro do que vislumbrar, desbravar o de fora. O horizonte em mar aberto, o fundo do mar e as terras em forma de ilhas deixaram de protagonizar a cena para fazerem parte de um cenário real, do dia que não faz sol, mais um jeito do dia no mar.


O pouso


Pousamos na Pousada Recanto da Pedra, onde tem pedra quase a vagar pelo meio do caminho entre a entrada e o fundo, bem no entrelugar. Lugar silencioso, beirando a estrada do caminho para Dois Rios, bem no fundo da Vila do Abraão. Tínhamos de fato uma pedra no caminho, ‘no caminho tinha uma pedra’, e Eva estava lá para nos lembrar dos momentos de desviar para o café da manhã, e também nos receber logo na entrada, na volta dos passeios pela Ilha, e para nos instruir sobre trilhas e belas paisagens. O lugar do pouso, diferente das trilhas em que nos concentrávamos nos caminhos, foi mesmo o lugar de relembrar o dia que se foi, planejar o que viria; o lugar pra levantar vôo, o lugar para aterrissar em sono bom.