terça-feira, 30 de novembro de 2010

Temia

Temia que o amor fosse apenas um discurso ou uma afirmação por absoluta teimosia de dizer o que se diz, o que se espera que se diga. O retórico amor, um discurso aparentemente cheio, mas sobretudo persuasivo, bem ao estilo dominador, mas em forma de fragmento, de maneira que palavra não poderia se converter em ação, amor sem amar, puro dizer... Temia que o amor fosse apenas um miasma a rondar os corpos até evaporar sobre poros de pele impermeável, a traduzir toda dureza da alma...Temia ser o encanto um momento qualquer de desatino da percepção, por simples desconhecer e se colocar curioso diante de visão, prestes a migrar em desilusão...E temia mais exatamente por temer tanto esse dizer, relutar no dito o mover da palavra em direção à realidade, posto ser o amor um capricho do dizer, um diálogo a envolver um e outro na tentativa da própria essência do discurso em ação, porque palavra é o confeito da alma, essa mistura que se enche em desatino, embora esteja sempre e sempre só, até vir um alento de ternura, um ouvido atento, um pensamento ainda que distante...Essa palavra amor temida e ousada seria então essa superfície de proteção em torno da dispersão pela própria sobrevivência, um retorno, um ponto de equilíbrio...Por isso temia não dizer, mas ainda que dissesse temia também a indisposição sobre essa palavra amor, esse agir amor...

quinta-feira, 18 de novembro de 2010

Indelével

Depois que o conhecera, vivia em abraço. Ninguém a compreendia quando chegavam perto e ela, subitamente, rejeitava outro abraço, quando então dizia: ‘Já estou em abraço’. Tudo começou quando reconheceu os braços dele e fundiu-se de forma irrefreável como num enlace inevitável. Era incompreensível o dizer dela para os olhares em redor: ´Já estou em abraço’. Nada se via grudado nela, senão a cena, o mimetismo do abraço vez por outra. Era indelével, já parte dela o abraço. Fora permissível demais, em exagero, tanto que o abraço pregara de forma irremediável. Os familiares começaram a se preocupar seriamente com aquela moça em abraço; pensaram em coisa de espírito, em uma espécie de síndrome siamesa invisível mesmo tardia, que haveria alguma séria afecção do pulmão ou do coração que tornava o peito dolorido a rejeitar outros braços. Pensaram muitas possibilidades, visitaram especialistas, e nenhum observara nada de anormal, senão o afastamento súbito, amedrontado. Com o passar do tempo os braços dela começaram a volver outro corpo ‘inexistente’, ficavam em arco permanente e os dedos das mãos tensos; de tempos em tempos fazia uns movimentos de dança com a mãos, resguardados os limites de círculo, um abraço, talvez no entorno do corpo dele. Ninguém jamais o vira, embora ela jurasse que o abraçara e que ele jamais a soltara. No tempo em que o abraço tomara aquela conformação tão evidente e fixa de braços em abraço, ela não pôde mais saciar a sede, a fome, pôde sequer satisfazer as necessidades funcionais do corpo, os apelos fisiológicos, sem a ajuda de sua mãe. Viveu assim por algum tempo, como a carregar outro corpo consigo aonde fosse. Morreu assim. Nada foi possível fazer quanto às suas mãos. Por nenhum esforço manifesto elas se colocaram no peito em forma entrecruzada para a habitual vigília dos familiares e amigos após a morte. Entre ela e as mãos estava ele, ele no entrelugar do coração dela, dos braços e das mãos...Forçoso foi aumentar as medidas da caixa grande em que ela descansava e enterrá-los assim, em abraço...

quinta-feira, 11 de novembro de 2010

O que o beijo tem

A boca dela tinha um olho, e cada vez que a língua dele se intrometia , vinha visão em via de transitar rápido, como se todo caminho se desnudasse na janela ao lado; a cena corrida das paisagens que ficam pra trás, das paisagens que se renovam e atropelam as outras. O beijo deveria ser o estável esquecimento frente a todos os dilacerantes instantes de incompreensão, os momentos superpostos de ação e inanição. Mas o olho da boca se abria adensado feito rio e vertia saliva em forma de lágrima. A boca chorava em momentos de solidão, como faminta a revelar o vazio gástrico, uma fome da alma. O beijo era também o acalento da visão, uma venda irrefreável que ela buscava insolente, sem pudores, sem limites. Mas o limite não tardava a interromper o beijo de olhos abertos, visionários. Entre vendado e desnudado, na maquínica percepção de disjunção, embora todo o desejo fosse de unir, colar irremediavelmente, o olho da boca se debatia. A separação era nítida e jamais ela se faria decifrar e sequer decifraria aquela languidez ou rigidez muscular do beijar, do ver, do olho que o beijo tem.

terça-feira, 9 de novembro de 2010

Mãos

Estranhas mãos essas que não se aquietam
Mãos em ti forçosamente a reconhecer
Mesmo em lembrança
Cada traço, cada mormaço, cada embaraço
Estranhas mãos essas em quietude
Mãos em lembrança de ti, por ti
À espera de decifrar
Cada passo, cada queda, cada enlevo
Estranhas mãos a desejar
Mãos em fogo e remanso
De alternâncias súbitas a percorrer
A delinear suas faces de prazer e angústia
Mãos que não se podem conter
Ainda que por palavras a verter
Sentidos inapreensíveis, sensíveis
Tanto que dizem e não dizem
Tanto que sentem
Mãos apessoadas em seus dedos
Entrelaçadas e fadigadas de tanto conter
Por querer em ti fazer arte do momento
Fazer memoriais instantâneos de permanecer
Mãos incontidas que tanto contém
Feito mente abarrotada
Em registro de pensamento de estarem em ti
Um negativo prestes a se revelar
Mas por fantasma ser
Apenas mãos em oferenda
Em apreensão pelo toque de conhecer
E encanto de desconhecer
Mãos de entranhas
Quase digestivas mãos
De gestos que não bastam
Incompletas mãos
Doloridas mãos
Teimosas mãos de carne crua
Cruas em sentir outras mãos

quarta-feira, 3 de novembro de 2010

Cansaço

Ela se sentia tão cansada, tão impotente diante daquilo que se apresentava aos seus olhos, ouvidos e mente. Não era um cansaço plenamente justificável, mas um cansaço de estar sempre em um não lugar, até perante o outro. Sentia-se nesse descolamento, como se o cenário estivesse diante dela e bastasse um pulo para que se colocasse no quadro perfeito, de expectativas satisfeitas, conforme seus sentimentos mais verdadeiros. Mas aquela cena não durava nem sequer o instante do esperar, pois que ela vagava sempre em espera de dúvida, já com as forças sumidas, e o coração que batia célere era puro desatino diante das possibilidades que se multiplicavam, mas nenhuma delas fazia concerto em sua alma, eram apenas dissonâncias poéticas a virar aves sem retorno. Sentia-se incongruente, como um ângulo em geometria solitária, sem par. Sentia-se sem par, sem ar, em meio ao turbilhão de suposições improváveis, sem prova sequer, apenas supostas idéias sobre o inapreensível do outro e de si mesma. Sentia e pensava sobre as vidas no entorno e dentro de si, vidas razoavelmente esperadas, continuadas, sem tantas perguntas que angustiar, só o viver a cada dia, e queria mesmo saber porque sempre fora assim desencontrada por querer e não querer, até que toda diferença de ação restasse como se nada houvesse a que se apegar de fato, somente a dúvida e a total inadequação de viver segundo um nem sei o quê de provável e respeitável. O mundo poderia ruir, cair, mas nada seria mais tenebroso que os escombros de si mesma, escombros vazios de vivência amontoados nela, sem projetos de construção e reconstrução. Desde que se dera por viva, sentia essa inquietude sísmica, e cismava tanto por tudo e por nada, teimava-se nessa confusão, e se cansava, cansava...