quinta-feira, 29 de abril de 2010

Outro ele

Até hoje sinto falta do Zé Leôncio. Ele era bravo feito onça, mas vez por outra vinha de manso, cheio de delicadezas, todo mudado do jeito comum de todo dia. Tem gente que é assim mesmo, de humor confuso; alguns até se fingem de resolvidos na maneira de ser e aí vem um sentimento qualquer que vira tudo e a pessoa fica assim incompreendida no susto refletido nos olhos dos outros. Mas entre mim e Zé Leôncio não; ele mudava e sabia que eu sabia disso, que eu gostava era dessas horas de ternura desavisada, rara gentileza que deixa a gente de coração e respirar em disparo, um susto, até vir aquele encanto de contemplar lago em dia ameno, de sol quase tímido, mas brilhante, de sensação de aconchego. Ele chegava assim num toque de face, de mão, quase um arranhar felino sem querer machucar, e não raras vezes ronronava no seu dormir em meu peito. Depois acordava assustado como bicho em armadilha, frágil de dormir assim e deixar sua vigília de lado, esquecida. Zé Leôncio dizia que eu fazia reviravolta nele, e que ele assim era mais ele, mas deixava de ser onça brava não, que só por mim virava bichinho pequeno, presa de mim, descobridor do outro ele, muito mais ele.

terça-feira, 27 de abril de 2010

Parto

O parto maior que ela sonhara era o da palavra em potência, germinada em paredes uterinas rubras e almofadadas de epitélio de ondas, em aconchego cíclico de progesterona que cala e grita em escamas, num fluxo irremediável. Era essa palavra do tempo circular, difusa de humores, de sabores da alma que exala em estrógenos convulsos e morre todo tempo em partos sucessivos que ela sonhara viver; a palavra vida que aborta e nasce, que cresce e se retrai em silêncio profundo, palavra de útero partido em instantes de expectativa e frustação, útero palavra viva, que nasce potência, quente cor de sangue, cortante, tranqüilizante, inquietante...

sexta-feira, 23 de abril de 2010

Puxadinhos

Embora muitos exaltassem os olhos grandes e amendoados por sua beleza, ela cria quase piamente que aqueles puxadinhos como janelas entreabertas fossem muito mais visionários; porque ficavam o tempo todo na dúvida do movimento, no atávico entrelugar do fechar e do abrir, e sempre passavam a impressão de sonolência, como entressonho, um caminho entre o real e o inconsciente. Sabia que era delírio seu, mas se permitia encantar com essa possibilidade anatômica ligada às coisas da alma. E quando esses traços vinham distantes do oriente mistificado, historicizado, surpreendia-se mais, porque pensava em uma aldeia pequenina de olhinhos puxados, janelas duvidosas de acanhamento e mistério para alguém empurrar vagarosamente e morar lá dentro um tempo, dentro do sono cheio de sonho de sol, de lua, estrelas e mato infinitos...

quinta-feira, 22 de abril de 2010

Abraço

Ela jurava que a culpa do amor era o abraço. E aquele enorme e pequenino cruzar de braços, tão apertado, era quase uma redenção por qualquer deslize, por qualquer afeto que faltara. Porque tudo se ampliava e se reduzia na união silenciosa e barulhenta dos corpos a ofegar, no estalar pequenino dos ossos, no contrair absurdo e incontido daqueles músculos em mistura, como se só assim o coração pudesse ficar mais perto e bater em compasso de harmonia, em compasso só descompasso de emoção que transborda e não se diz. Tudo valeria pelo abraço e a falta daqueles braços e o desperdiçar daquele enlace pelo ensimesmar, em certa vez, era tristeza sem medida. Porque a medida maior do amor era o abraço, um laço de dança, êxtase; e angústia pelo desatar dos braços, dos delicados braços, fortes no abraço.

Escapava

Ela escapava de si mesma e procurava ao redor um sinal mínimo de sua existência nas pessoas, nos objetos. Ela escapava de si e por dentro vagava um vazio, cheio de tão vazio, enquanto os olhares buscavam nela uma completude ainda que vaga. Ela escapava e voltava diante de si mesma e se aterrorizava por escapar e voltar para o mesmo ponto ausente, silente e insurdecedor dela mesma. Ela não queria escapar, queria antes voltar e permanecer, mas escapava e se sentia cava rasa e cava funda sem fundo, de outro mundo e desse mesmo mundo de atitudes parcas, responsabilidades inexistentes de si para si, de si para o outro, esse mesmo outro ela mesma espelhada na sua originalidade pouca. Ela escapava louca e rouca cantava e sóbria calava e inventava mesuras, desculpas sem culpa, e plantava um jardim sem flores. Ela escapava num instante e permanecia eternamente na escuridão das idas indeléveis de sua alma. Ela escapava dos vindouros, antes por carecer do ir que por recusar o vir, mas recusava esse vir para ela mesma, como se fosse sombra de insanidade; o vir. Você virá? Perguntavam-lhe. E ela escapava ainda que viesse...

quinta-feira, 15 de abril de 2010

Vulcânica

Alguns lugares eram permanentes na mente dela. Voltavam sempre, mesmo em sonhos, nos momentos menos esperados. E um desses lugares era corpo de geografia aparentemente plana, mas que no detalhe, parecia a ela, um mar de montanhas, pequeninas projeções na qual moravam os folículos pilosos, uma superfície que jamais esquecera. E o contato com aquele lugar onírico era o prenúncio de pêlos em mutação, miragens de porções pequeninas de lava, vulcões em erupção no corpo, surreais. Talvez fosse o que não foi que a fazia sonhar assim de um modo tão geográfico, porque ela buscava naquele lugar, naquele corpo, alguma evidência viva que pudesse se solidificar, esquentar e petrificar, num movimento de explosão e morte. Era sempre assim no sonho, esse alternar em um relevo inconstante. E havia rios, uma hidrografia de ramificações tortuosas, uma mistura de fogo líquido e suor, fertilidade. O sonho era de trilha, trilha sem rumo, como se o próprio andar fosse um lugar de fusão, do percorrer a sensação em busca do grande vulcão, do magma alma, coração.