quinta-feira, 22 de dezembro de 2011

Cena Mal Dita

Aos meus sentimentos dou impropriedades do dizer;
Subverto as expressões como se nelas não houvesse a lógica da objetividade;
Perco os significados dicionarizados, encalacrados de assujeitamento;
Confundo-me no instante de compreender;
Questiono-me, questionas-me por isso;
Pela falta da imediata compreensão de mim mesma e do outro outros por meio do verbo e do substantivo, nessa única tradução possível para o sentir;
Das palavras em arbítrio;
Incompreendes-me, e culpo-me pela pouca perspicácia;
Volto tantas vezes a refletir a linguagem misturada à natureza,que submetem o mundo;
O meu escasso mundo de fazer palavra onde poderia haver só ação a revelar o instante;
Quis dizer da cena, pra dizer do detalhe, não da superfície; e falei na angústia de fazer-te ver a intensidade que procuro no meu linguajar insuficiente;
Para dizer que só consigo ver sentido no encadeamento dos pormenores, na soma a fazer cena;
Mas eu também, como mero detalhe que sou, faço apenas a composicão do cenário; não tenho o controle exato dele;
Sou componente da peça maior que me convém e não me convém por estar, muitas vezes, fora da lógica da razão;
Pensei em todos os pequenos mínimos gigantescos de compartilhar;
No desnudamento que desvela qualquer alma entorpecida pelos pressupostos de existir;
Fiz com eles todos um cenário pra lembrar, pra montar uma peça de dizer amor.

segunda-feira, 19 de dezembro de 2011

Face em tato

Ela percebera-se sem face. Subitamente seus sentidos ,manifestos nos traços, decaiam e se rebelavam contra qualquer expressão bem vista ou mal vista. Era uma involução de qualquer comportamento expresso, como se uma maldição a rondasse; a ausência de face. Os cheiros a sumir no nariz diminuto; os gostos a se perderem na boca invertida, fechada pro mundo; a música dos instrumentos e das vozes a bater em ouvidos de orifícios colabados; a visão, dada a parcas sombras, como alcolizada. Só o tato vigorava, na sua ânsia desesperada por sentir o som da superfície, como a buscar qualquer profundidade. Suas mãos eram como sanguessugas a sorver sangue, suores, ou qualquer outra fluidez que denotasse vida. E toda aquela transformação de perda, era um ganho de sentir a escultura da vida em reentrâncias de encanto e assombro; solos úmidos e arenosos; peles em paz e desatino. Seu corpo também se avolumava de tantas impressões em registro no tato, que gritavam na alma de um rosto sem face. Depois, a face não importava tanto, senão os terminais nervosos de seus membros superiores que pareciam agora ouvir, cheirar, falar, ver. Sua face reapareceu na forma de mãos. Toda sua face era uma mão em apego, em chamado, do dito em movimento, do gesto que a face escondia.

domingo, 20 de novembro de 2011

Sacolão e 'selvageria'

Foi inaugurada a grande festa da bicharada, da selvageria. Basta ires a um sacolão da rede ABC em alguns recantos da leste Belo Horizontina e terá a seu dispor um perfeito laboratório para estudos de antropologia, sociologia e filosofia. Expresso-me deste lugar, de dentro, e não de quem espreita uma vitrine.

Na superfície, são verduras, legumes, frutas e alguns congêneres embalados para alimentar alguns humanos, a maioria. Por não terem o privilégio de freqüentar as redes multinacionais de gôndolas bem organizadas e corredores bem apropriados para a circulação de gente, tudo muito bem dimensionado no estilo pague mais e tenha conforto, civilidade; eles se esfregam, acotovelam-se e trombam na faminta ordem do salve-se quem puder, pegue quem puder, quem suportar as incivilidades por alguns alimentos a R$0,79 ou R$0,99 o quilo.

Fundaram essas alternativas de venda de hortifrutigranjeiros supostamente mais econômicas a servir os ‘populares’, a servir também a classe média trabalhadora que economiza para gozar um pouco de lazer ou entretenimento nos intervalos laborais. ‘Tá barato, é pacabá’, grita ao fim do expediente o carregador-funcionário, resfestalando-se daquela disputa ‘inumana’ para alimentar o corpo, porque a alma gentil, cooperativa, já há muito se perdeu.

A logística se resume em algumas estratégias ‘curiosas’. Primeiro as prateleiras gigantescas para caber o excesso armazenado, para caber também os deteriorados a contaminar a vizinhança, mas principalmente para gerar o famoso excedente quantidade, porém, de qualidade duvidosa. Segundo, os espaços reduzidos a subsumir o poder de escolha, a gerar as desavenças na filas. Depois, as lixeiras abarrotadas de ‘estragados’, acuados pelo volume e pelo alto preço.

O excesso de gente faz o mesmo, é multidão insana em um processo de contaminação incontrolável. Por uma ilusão de preço baixo em troca de um saco de alimento, manifesta a sua ação irrefletida, manifesta seu despreparo diante dos processos tão bem criados de alienação, sobrevive e se debate a despeito da educação, do respeito pelo outro. Então o lado bicho e primitivo aflora, mas não para a caça ou a coleta daquilo que a natureza oferece e o instinto submete, mas para a coleta artificial, forjada no capital.

quarta-feira, 16 de novembro de 2011

'Meu menino lindo'

Achei que o menino lindo era meu, mas entre tantos haveria um e mais outro e ainda mais... Estava lá transcrito na página de relacionamentos; ‘Meu menino lindo’. Então não era só meu, era de tantos quanto houvesse amor. Assim, era eu mais um a amar na repetição das linguagens, dos dizeres que se repetem, embora lá no íntimo houvesse uma interpretação própria, um sentir ‘irrepetível’, de uma densidade de receita escondida e indecifrável. Porque o ‘Meu menino lindo’ fazia em mim o que eu deixasse, e nesse fazer dele um tanto meu, em verdade, o que eu queria, construía esse prazer estético indizível que apelava para as palavras simples e corriqueiras de qualquer um que amasse. Para o amor, criamos palavreados arbóreos, espontâneos e fluidos, saídos de instâncias coletivas. Contudo, apelamos para misturas de linguagens improváveis, por vezes, até nos perdermos nos silêncios e nos gestos de mais amar. Mas ‘meu menino lindo’ sempre estará para dizer do pronome de possuir imaginário, do pueril de amar, da beleza que se devota.

quinta-feira, 10 de novembro de 2011

Sacro pagão

Faria um sacramento por ti
Não tu ai distante objeto
Faria um sacramento pagão
Pegar-te-ia em dedos sem comiseração
Num toque sagrado de quem descobre
E num susto se apercebe das doces nuances do sentir
Faria um sacramento tribal
E benzeria todas suas partes
Até alcançar o todo em banho redentor
Far-te-ia o próprio sacramento
O instante eterno das sutilezas
Daquilo que sempre se renova
Embora em parecença já tenha havido
Faria um sacramento por ti
Embebido em cheiros e secreções e audições controversas
Um caos a se ordenar por força natural
Uma força de desordenar para morrer no caos
Para renascer no caos
Faria um sacramento por ti
Desatinado por não conhecer-te
Na ânsia de compreender a parte pelo todo
O todo pela parte
Seria eu o próprio sacramento
Em sacramento por ti
Por querer fazer-te delicadezas
Do gesto, do ouvir, do falar em notas suaves
Do dar e receber como um sacramento
Faria um sacramento por ti

segunda-feira, 7 de novembro de 2011

Chega...

Chega um momento que não se apercebe, mas já se está adestrado, acostumado às rotinas de horário laboral, às contas a pagar, aos supérfluos indeléveis como a maçã grudada na barata kafkaniana. Chega um momento que a saída se estreita de tal forma, que a ilusão de liberdade se desfaz na prisão de não ser e não saber aonde ir. Chega esse momento em desacalento de segurança sórdida e frágil na sensação da alma. Chega esse momento repetido, desvencilhado de qualquer espírito nobre, criativo. Chega esse momento como aperto no peito, angina malfazeja, somática por pensamentos de compressão. Chega um choro, chega um soluço pós-prandial a sufocar a modorra da tarde, o calor do alimento. Chegam esses metabólitos monstruosos de uma vida mesquinha, medíocre, na acidez da saliva, no ardor estomacal, na paralisia intestinal. Chega também o suspiro de não suportar esse limite contraditório de não ser e ser. Chega vem imperativo, pegajoso nas palavras mal ditas, reprimidas, confusas, a buscar ressonância em ouvidos cavos, rasos. Chega se perde, chega é incompreendido, chega some, chega vai feito animal de circo em picadeiro teatral, em performances bem ditas, santas por olhos cegos, deletérios.

terça-feira, 25 de outubro de 2011

Localiz(ar)

Gosto-te daqui, de lá, desse (des)lugar que sou, estou;
Sinto em mim por ti inexato, ‘desabença’;
Não diria amor, porque não há sentir que tenha dizer, que toda palavra fica vazia em peito cheio;
Sobra o pequenino grande gostar, livre, leal;
Esse canto conhecido do amanhecer;
Esse querer bem;
Deixar voar, palavra amor leve por ti em mim.

sexta-feira, 7 de outubro de 2011

Sorriso

Ela quisera ser a razão daquele sorriso dele. Aquele sorriso solto com os braços a se fechar quase em abraço de chegar perto, muito antes de chegar. Aquele sorriso incontido da visão que se espera, da ansiedade indisfarçada, da curiosidade de conhecer e amar no início dos tempos. Ela quisera aquele instante espontâneo de novo, de intenções de estar sem objetivos determinados, senão ser ela o motivo de um sorriso. Ele veio assim a poucos metros, amiudado de amor, que amor é miúdo por fazer um enlace penitente a olhar do meio pra cima em forma de alcance. Amor é grande também na claridade do lábio em fissura incontida a verter um hálito de calor. Onde fora parar aquele sorriso, por que sumira daquela forma tão estranhamente bela? Ela sonhara aquele sorriso em retorno porque o guardara com mimo, sorriso biscuit.

quinta-feira, 15 de setembro de 2011

'Onuírica'

Aquela situação onírica repetia-se. Aquele nu envergonhado, desprotegido. E se todos os olhares não viam, era como se estivessem lá a vê-la sem quaisquer vestes, por convenção ou redenção. Não havia; simplesmente não havia nada passível de encobrir, posto que o sentir, a vergonha era desvelada, erótica e caótica. Quem saberia daquelas motivações íntimas ruminadas num regurgito ácido e atemporal? Quem saberia dos incapazes momentos? Não que fossem rápidos. Sabia que não eram, pois duravam por dentro, eram genéticos. Os instantes na duplicação nuclear de cada célula, enquanto a epiderme se perdia inelutável, cascas para ácaros monstruosos. Enquanto isso, restavam falhas, fossos em linhas rasas e profundas, às vezes lesões de arrasto, do beijo em acalento, do desprezo que soma, fixa e corrói. Mas havia algo abismal, inerte e sem fundo, um inexplicável indelével além da superfície. Então vinha o sonho avisar, vinha a lembrança ao acordar de tempos imemoriais, desses mesmos tempos vividos e revividos num suspirar e respirar sem ar. Lugares em fronteira a disputarem cada naco de pensamento e de agir. Ah, se todas as convenções fossem demolidas e restassem os escombros inertes; que liberdade! O nu seria cálido e constante, sem apegos às idéias, às disposições do espírito. Passantes nus a comporem harmonias em melodias dissonantes, surpreendentes. Passantes bem vestidos, sem têxteis, senão gestos de identidade, adereços sem medida e padrão. Nus em forma e sentidos. Aquela situação onírica teimava...teimava... ‘Onuírica’...

sexta-feira, 2 de setembro de 2011

Vacila

Como decai o homem de um dia para o outro. Em certo tempo está vigoroso, de voz potente e sorriso sarcástico. Depois vem vacilante, com uma típica impaciência de quem não traz o corpo bem aprumado, as articulações suficientemente flexíveis. A visão também não obedece, “preenche o cheque para mim?” Vai pela vida nessa cantinela dos negócios, das vendas e trocas financeiras, assina quantos mil papéis monetários; continua a assinar, pois não se desgruda da sua identidade bancária, utilitária. Não se desgruda das suas parafernálias de viver enquanto ser de valores arbitrários, abstratos, mas de uma realidade interior sólida que só esboroa no instante de morte das partes; a matéria que se desfaz. Até um dia paralisar de vez, cegar de vez...

quarta-feira, 10 de agosto de 2011

'Ilusionados'

Eu sinto essa imobilidade, minha e de todos. Sinto arder em meu estômago, uma das vísceras da alma. Onde estarão as virtudes? Se as soubéssemos...que bálsamo teríamos. É que hoje tanto faz, posto que tudo é perdoado, embora a tortura seja lenta e silenciosa para quem não quer sentir, ouvir. Torturados de vendas, a não ver o carrasco nem forca, senão um imaginário torto sem os encantos surreais, mas invertido, carcomido, como uma cicatriz, viva cicatriz. Se tudo quanto queremos está lá na prateleira, basta colher sem os esforços primitivos da coleta, basta pegar e trocar por papel inerte, um engôdo engenhoso pra nos livrar do peso mineral, um engôdo fosco de brilhos em personagens e natureza morta. Sentes essa imobilidade? Essa sedução ilusão? Crês talvez na incompreendida luta de conjecturar saídas para onde não há saída, labirintos minotáuricos, essa fusão tão apropriada ao humano enganador. Não, não sentes a imobilidade, posto que avanças irrefreável ao gosto de pegar pois qualquer beneficiado à venda, agregados ilusórios de valor, apêndices criados em avanços de narcisos, cheios de vontade de poder. Mas não queres colher amor, posto que este pressupõe o primitivismo da troca. Pressupõe também o trocar em abstrato, para além do objeto. Há nuances maravilhosas nisso, imprecisões raras, acertos inimagináveis de sentir.

ESCREVI ESSE TEXTINHO, COM CARINHO, PARA OS AMIGOS DO http://www.pessoasatoa.blogspot.com

terça-feira, 9 de agosto de 2011

Apontamentos filosófico-culinários?!

Apontar não é pôr ponta, senão dizer da ponta, da ponta da língua, amiga do gosto, filosoficamente palpitante por papilas descobertas, amigas, receptáculos engenhosos de sentir gostos, o tempero de cada alimento, sofrimento e gozo. Temperar não é moderar, é antes tirar vantagem e ultrapassar o gosto original, sem temperança, posto que tempero é saliva abundante, rio de sabor. Outro dia desses Mariazinha aguou na boca de tanto sabor irreal pelo tempero de alecrim. Alecrim veio doce na berinjela ao vapor, veio doce em conserva no azeite; alecrim declinou o amargor do jiló. Alecrim não era mais dourado de campo, cantado na corda do violão, vinha só na sensação da cor pelo gosto. Alecrim temperou, Mariazinha gozou, gozou no sabor nem doce, nem salgado, gozou no entrelugar de suas papilas de memórias vãs e outras recuperadas, inteligentes, vivas papilas a temperar sua alma de (im)puro alecrim.

sexta-feira, 29 de julho de 2011

Epílogo Arco Solidão

Após ouvir de você tantos descalabros, ponho-me ferrenha a defender-me como K. ou como qualquer outra figura feminina, que antes de desejar os ouros, desejou o ouro maior da cumplicidade, do afeto além do desejo, mas contaminado pelo maior desejo que houvesse.

E qual seria este o desejo, o maior? Essa percepção do outro em si nesse espelho de reconhecer que a muitos pode parecer grotesco ou ameaçador, mas que é a única razão de existir. O não ver o outro como outro, mas como parte de si próprio. E tanto me foi negado esse desejo, que os ouros então vieram fazer companhia por pura solidão de tanto encontro negado.

Se sofres de solidão meu caro é porque não foi raro nesse reflexo de mim mesma, mas se pôs a espelhar-me da maneira enviesada de quem se defende de fantasmas de outrora e desse hoje desatino. Não me culpes por essa natureza maligna, medieval, pois sou somente contradição benévola, vontade de saber-te qual uma cientista, vontade de sentir-te qual pessoa comum.

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terça-feira, 12 de julho de 2011

Textos eles

Era uma nuvem a esfumaçar por toda lembrança dele. Um certo ar de dia desértico, quase a soprar um vapor morno, acolhedor, mas modorrento, como a cozinhar memórias, palimpsestos. Ele era um texto, ela também. Faziam textos sós. Faziam textos juntos. Textuavam pois, em versos e prosas, em peles por conjunção em verbos de amar, amigar, sofrer também. Os textos se conheciam. Os textos se digladiavam. E vinha um susto de incompreensão de gramáticas e vocabulários de emoção impensada; pensada também. Ah como textuavam por caminhos de textos registros, textos pensados em registros, no após, no deglutir e fazer o texto sós, fazer o texto juntos. Em todo lugar que tocavam também se fazia texto de acalento e desejo. Eles eram como meninos do dedo verde, mas o que tocavam virava mesmo só texto em silêncio e grito, um linguajar próprio e universal, um dialogar e romper, por ponto, vírgula, ponto e vírgula, dois pontos. Tiveram que fazer pontuações em seus textos para dirimir os conflitos, acertar o entendimento. Abusaram das interrogações e exclamações para enfatizar o teatro que é o próprio sentimento e dúvida. Fizeram tantas reticências...reticentes que eram... Também negaram toda pontuação a emitir gemidos e grunhidos, que eram o mais apropriado texto por certas horas. Textos eles foram, textos eles são e sempre estarão um texto qualquer.

segunda-feira, 11 de julho de 2011

Acaso vistes o ocaso?

Acaso vistes o ocaso? Como foi breve naquele dia, num piscar de olhos. Dessas transições pequenas no tempo como a fundir dia e noite. Naquele intervalo de sobreposição os cumes dos prédios quase alcançavam aquela montanha a circundar o vale. Estávamos assim, entre montanhas e arrancéus e menores, apenas arremedos de morar, afundados, mortificados pela altura do relevo e pela engenharia humana. Estávamos assim, trancafiados sob luzes artificiais, enquanto o sol frio e brilhante de inverno fazia raios de aquecer, lânguidos e queimantes, até se despedir. Foi então que veio a noite do eclipse com lua de dentro em moldura rosada a escapar. Foi então que seu coração num disparo de conduzir aquele sangue coagulado teimou em querer parar. O caminho era de tempo curto como o ocaso, mas tempo não deu. Não deu pra se despedir da lua branca que por hora estava sumida. Não deu pra dizer do amor que fervia por dentro e de toda pressão cavitária a anunciar a morte. Acaso vistes o ocaso? De dia com noite deu, de vida com morte não diria que deu. Com o ocaso veio esse mundo de nada que alguns supunham de tudo. Gúnnar vivia já cansado de tantos ocasos em desalento. Disseram de chofre em uma consulta cardiológica que não havia tanta força mais em seu coração e que seu sangue assumira lentamente um aspecto viscoso, daquilo que teima em petrificar. Talvez virasse estátua, um deus de amor no ocaso naquele vale de cimento a avançar. Quem sabe todos os ocasos valeriam. Mas não, seria enterrado como qualquer um e quem sabe em sua lápide colocariam alguns de seus versos mais amorosos, ou angustiados, ou injuriados. Qualquer um que fosse. Ajuda; gritava a moça sobre Gúnnar caído na rua em descida. Ela tateava os números no seu celular sem saber escolher entre o chamado e a acolhida do ocaso. O rosto um pouco avermelhado, os traços em labuta; o nariz de ventas alargadas a pedir ar, os olhos castanhos de sobrancelhas espessas a querer ver, os ouvidos a ensurdecer. Naquele momento todo o aparato biológico de Gúnnar se punha a certificar de suas percepções e ilusões, tudo era claro por instantes; por outros, era uma camada densa de poeira de pontos cintilantes a plainar e escorregar como a brincarem de pássaro e criança. Eram assim seus últimos suspiros, de vôo e brincadeira, enquanto a ambulância chegava resfolegando também com sua sirene infernal, tal qual uma trance entre o dia e a noite, entre a vida e a morte. E a moça constatou depois daqueles saltos sobressaltados do peito pelos paramédicos, o peito desaninhado, dolorido; dera-se o ocaso.

segunda-feira, 27 de junho de 2011

Além do inesperado

Nada pode ser mais aterrador que o vazio dos dias, enquanto em vã tentativa se busca um sentido qualquer de apoio ou faísca de luz. Ela vagava assim entre sorrisos impensados, de momentos para sorrir a quem não merecia sua tristeza...Ela seguia sem seguir, pois não havia caminho que lhe condicionasse os pés já cansados, tanto que tonteou pela vida a tropeçar enquanto parecia a alguns que pisava firme. Mas seus pés doíam desde o primeiro pisar dos dias e durante a noite já anteviam a dor no contato com o chão, posto que pés têm também a inteligência da alma...A inteligência da alma...Haveria? Ela não distinguia mais corpo e alma, que os reflexos se misturavam de tal maneira, que não havia fronteira clara, apenas um entrelaçar que de súbito se parecia com uma luta de permanência em lugar qualquer, de desejo de encontro...Era esse encontro que lhe doía, que não vinha com o outro, que não vinha consigo mesma...E acreditava piamente que já estivera nesse lugar mais preciso de sentido e o perdera por ter os olhos anuviados, a alma enfraquecida dos valores verdadeiros que trazem alegria...Ela se esforçara, mas como sempre resvalara em incompreensão do outro e de si própria...Caíra nesse buraco abismal e tinha em si essa sensação de queda que dispara o coração e o deixa fraco, dolorido de tanto resistir ao inusitado do fundo impreciso...Ela queria de volta pés de músculos bem conformados, de artérias pulsantes e veias gentis...Ela queria seus pés de volta...firmes...e um coração forte, que amasse além do inesperado...além do inesperado...

quarta-feira, 15 de junho de 2011

Volver?!

Vinha nela essa estranha sensação de que tudo devia se acabar, as horas, os dias, os meses. Mas quando esbarrava nos anos, vinha uma sofreguidão, um sentimento de querer voltar, feito ave migratória. Ela, porém, não tinha asas bem conformadas, e toda tentativa de retorno, doía, e sobre ela olhos de julgo vertiam uma enormidade de sensações nela sentidas, e ela não sabia bem desse retorno; se onde não chegou, finalmente, poderia chegar. E se fosse possível essa incrível transmutação do tempo em começo e fim indistintos como um todo coeso e, por isso, cambiante? E se sua matéria fosse soluto em solvente morno de acalento? Vinha-lhe esses sonhos de dissolver e em praia de sol reconfortante ganhar nova vida a evaporar todos os miasmas que a contiveram em mistura. E o volver seria esse passo permanente da marcha até conseguir realizar os irrealizados, sumir os desatinos, os impensados, fazer os pensados cheios de emoção e poesia sem olhos para verter, agir em não pensamento, agir em coração. Esse natural perdido era a dor dos anos, que horas, dias e meses não tinham a medida exata da perda.

terça-feira, 7 de junho de 2011

'Desabedoria'

Meu caminho é te acompanhar de olhos, a sentir quando tu vais em aclive, quando vens, mesmo que em sono, em declive. É como eu fosse o abismo de onde tu emerges e onde cais e submerge, ainda que em relutância protetora. Tu em mim como uma salvação e uma perdição. E então vais sempre em despedida e deixa-me o despertar da percepção de tudo o que antes não sabia, sequer entrevia nas linguagens que me rodeiam. Uma surpresa sempre, uma parte ou reentrância de ti descoberta em angústia de lembrar, em alegria incontida, que jamais saberás. Que o amor é essa desabedoria do outro por mais que se queira, que se espreite. É desaber da gente mesmo e repetir pra saber e continuar duvidoso na ânsia de mais amar.

quarta-feira, 18 de maio de 2011

Origens vertigens

Por sugestão de Eliéser do http://chuvaperegrina.wordpress.com/!
Vale visitar!


Não se lembra certo daquele dia em que saíra sanguinolenta e chorosa por entre as pernas de sua mãe. Não se lembra que lugar de terra gretada e depois vermelha esteve em suas primeiras incursões nesse mundo, a que alguns adjetivam de todos, e que, no entanto, é o mundo de cada um, o mundinho das ‘(im)percepções’. Talvez fosse esse momento de origem o ponto em que tudo se fundou, nas solidões e fraternidades. O ninho quente e aquoso, depois revelado em ar sem fim a forçar os pulmões e o diafragma ainda imaturos. As primeiras sensações desavisadas e os avisos de aprender para sobreviver. E tudo era inóspito se não fosse por essa eterna companhia, a fraterna maternidade. E ainda hoje a pergunta ecoa pela verdadeira fraternidade em uma enormidade de passagens por si e pelo outro. Onde estará essa amiga faminta, fraternidade, que só existe pelo outro e se extingue numa vertigem, num escape de amar?

segunda-feira, 16 de maio de 2011

Olhos gordos magros

Eram gordos os olhos dele, como a perscrutar algo de nutritivo no olhar dela. Ele buscava um gesto qualquer de acolhimento para aqueles movimentos dela desajustados, de querença e de fuga. Ele não se confundia sobre ela. Esperava com cautela a hora exata em que os olhos dela se enterneceriam, quase num piscar, como se ali ela finalmente sempre estivesse, presa àqueles olhos famintos prestes a se saciar. E esse banquete seria todo o deleite dele, e para ela restaria uma consumição da alma, de todas as energias que ela cuidadosamente havia resguardado, e ele não saberia, não imaginaria aquele deslize premeditado dela, aquele deslize certeiro, para aquele feitiço a que ela havia se entregado, o feitiço dele. Depois da consumição, restariam aqueles olhos magros dele e os dela ganhariam uma fome retumbante de volver aquele olhar de novo pra si como toda a razão de sua existência. E seu olhar pra ele seria sempre obeso, de uma morbidade assustadora e paradoxalmente desnutrida, de querer indizível de pupilas dilatadas em realidade, em sonho, em imaginação.

segunda-feira, 2 de maio de 2011

Perspectivas sobre o processo avaliativo na escola

Podemos considerar que a avaliação dos estudantes na história da educação atual conforma-se muito mais na perspectiva competitiva do mercado de trabalho, tendo em vista uma política cada vez mais exclusivista. Assim, as avaliações constituem-se em mais um dos instrumentos de manutenção do sistema capitalista, com a finalidade de garantir a estabilidade das suas ‘engrenagens’. Contraditoriamente, a escola que deveria estar envolvida com a humanização e a busca da cidadania, afigura-se muito mais como uma instituição a serviço da alimentação e incentivo da fixação dos conhecimentos necessários e, basicamente, operacionais, técnicos, e menos reflexivos, críticos.
A noção de competição, característica das empresas, migrou delas e se firmou em inúmeras instituições. E a escola, que deveria ser um lugar de troca de experiências e saberes, tornou-se um espaço para a obtenção de títulos que garantem a entrada no mercado de trabalho ou ainda um treino para a participação nos vestibulares. Dessa maneira, ‘os melhores’ avaliados são identificados, separados. Quem sabe não serão autônomos e poderão sonhar com uma vida mais digna? A criticidade então vira reserva de poucos, até porque é necessário sobreviver, pagar o preço, consumir. Assim, incentiva-se cada vez mais a educação para o trabalho e não para o exercício da cidadania.
Ora, como podemos conceituar, compreender a avaliação? Bem, podemos considerá-la sob vários aspectos. Contudo, em linhas gerais, podemos e devemos considerá-la como um processo e não apenas como uma ação terminativa, definitiva. No ensino baseado na concepção dialogal, a finitude é somente um ponto de apoio para o reinício de uma nova discussão. Nenhuma questão ou assunto se extingue. A avaliação é um passo para reconhecer, reconsiderar, recomeçar sempre. Não pode ser instrumento de coação e nem de acirramento das diferenças, mas de encontro de experiências e motivação do ensino e do aprendizado.
É fundamental que o conhecimento prévio dos estudantes e a característica de cada um seja observada para se estabelecer um processo racional e idealmente justo. Assim, compreender avaliação como um processo permanente e sensível se faz urgente. Cada dia de aula é dia de avaliar. Deve-se avaliar postura, participação, atitudes. Deve-se ultrapassar os conteúdos, pois que eles não são entes solitários, deslocados da realidade de cada estudante. A percepção de cada indivíduo é que constrói a riqueza do conhecimento, do aprender, posto que nada é absoluto, pois carece sempre e obrigatoriamente de um contexto. Submeter os estudantes aos tradicionais testes que apelam tão e somente à memorização e saberes curriculares, desconsiderando as particularidades e os esforços, é limitar as possibilidades de crescimento dos aprendizes.
O sistema avaliativo integra o processo de aprendizagem, é um instrumento importante para perceber, compreender o aprendiz em sua condição humana, que engloba limitações e possibilidades. Sendo assim, deve ser contínuo, flexível e coerente com a realidade do indivíduo, da escola, da comunidade. O pressuposto essencial da relação de ensino e aprendizagem deve ser o respeito pelo outro, a valorização. E nesta esteira, o processo avaliativo é um componente que pode subsidiar de forma positiva o intercâmbio de vivências, a compreensão de conceitos e processos, a retificação de procedimentos, mas, principalmente, provocar o reconhecimento do estudante de si próprio por meio do outro e de sua realidade, avivar suas habilidades e horizontes.

quinta-feira, 28 de abril de 2011

Pátio do abandono

Enquanto a viagem seguia o menino ia a perguntar ao pai os porquês daquela máquina alada, o que a fazia voar; porquês e mais porquês, até que avistou algumas máquinas maravilhosas daquelas abandonadas no pátio do aeroporto. ‘O que aconteceu com elas papai?’ ‘Estão abandonadas, respondeu.’ ‘E por quê?’ Bem, talvez algumas partes ou peças envelheceram e outras não puderam ser substituídas.' ‘Papai...esse avião em que estamos também vai ser abandonado um dia?’ Papai olhou fundo nos olhos do menino e pela primeira vez naquele diálogo que seguia fluido, constante, interrompeu-se em pensamento...e vagamente respondeu; ‘não sei meu filho, pode ser...’Talvez tenha pensado na máquina humana abandonada, na possibilidade do espírito ausente ou carente de atenção, ou acreditasse que alguma máquina ou humano poderia eternizar-se em constantes manutenções. Quem dirá sua percepção de finitude tenha sublimado por instantes, ou mesmo soprado em seu peito como uma dor, mas o menino não tardou a perguntar mais e mais, e ele a responder sem nenhuma subestima pelo pequeno, até chegarem ao pátio de destino.

terça-feira, 26 de abril de 2011

Perceber

Se me coloco a te perceber, ponho-me a me perceber, e quanto mais me aguças a percepção, mais me desapercebo por intensa angústia de perceber. Se tudo quanto me dizes parece-me claro por instantes, por um refletir que se segue, coloca-se diante de mim como um escuro clarão, uma sensação de busca de claridade na escuridão. É um movimento constante, no qual fico submersa, no qual pareço flutuar, como um peixe nas profundezas e que vem à tona na busca de ar. Se penso já conhecer-te, engano-me, e engano-me mais por me desconhecer, posto que o conhecimento de mim só se faz por ti, que só me meço e me desconstruo no susto de te perceber. E na vida toda que se segue sou esse clarão na escuridão, um tatear com gosto de descoberta e perda que me fazes, que me faço. E se não me provocas esse perceber, contigo não estive, foi somente ilusão.

segunda-feira, 28 de março de 2011

Uma arqueologia

Amor poderia se chamar curiosidade, curiosidade de cada parte não tocada, não anunciada;
Cada parte usurpada por pura e simples natureza inacabada de cada instante;
Se te colocas a encontrar e registrar cada espaço de superfície e falha do outro;
Se te incumbes dessa arqueologia amorosa, falhas por entre as falhas;
E crias um abismo de profundidade oca a ressoar infinitas canções de desatino;
E em vão procuras a origem das cicatrizes visíveis e invisíveis;
E a constituição dos suores, rios do enlevo e do labor, os fluidos de todo dia;
Porque queres todas as rotinas, todos os relevos e planuras naquele corpo, naquela mente;
Todos os volteios, as barreiras intransponíveis, os limites do céu, os magmas do subsolo daquela alma que sonhas completa, mas que aceitas humildemente incompleta;
E os sons que o outro entoa fazem-se signos de presença, de ausência;
São odes, são louvores e gritos sufocados, ainda que embalados por sussurros;
Amor poderia se chamar uma disposição arqueológica;
Posto que qualquer um é solo, é rocha de outros tempos em camadas datadas e indecisas, os limites a flutuar;
Amor é um caminho para o encontro de um ponto qualquer desencontrado;
Aquela reentrância jamais vista, percebida pelo tato, pela intuição;
A descoberta das descobertas;
Quase uma pureza e uma alegria da alma de saber do outro aquela pequena grandiosidade desconhecida.

sexta-feira, 25 de março de 2011

'Compridez' e finitude

A vida é essa mistura de ‘compridez’ e finitude, pensava Liria. É comprida quando se faz cansativa, a despeito de inúmeras possibilidades e nenhuma a que se queira realmente acolher. É finita porque a morte sempre à espreita; vem fatal ou vem de um jeito mau, lenta e dolorosa. Esses dias Liria recebeu a notícia da morte do tio Senhorzinho, quase só conhecido pelo apelido parecido com ele, um senhor pequenino. Talvez uma delicada paródia para o seu jeito distinto e para uma terra de coronéis, sempre de coronéis. Mas ele não era coronel e sua morte seguramente não fora pequenina, como nenhuma outra. A dele em especial, nessas cidadelas do interior, eram não festejadas, mas gentilmente acompanhadas num velar de casa a receber parentes e amigos. O aconchego dos almoços e das festas era o mesmo aconchego do descanso, qualquer que fosse ele. Seguramente, intuía Liria, o morto ali estaria menos intimidado, cercado pelos objetos assujeitados de uma vida. Nada mais impessoal que um velório numerado repleto de coroas de flores enviadas apenas por pura formalidade. É certo que em qualquer lugar existem os comparecimentos ‘obrigatórios’, mas certamente o morto velado no interior das suas próprias casas é mais respeitado, posto que continua a ser o anfitrião mais importante daquele espaço; não é deslocado de seu ambiente por rejeição da morte; continua querido, acolhido. Senhorzinho é grande em sua casa; no velório 1, 2 ou 3...seria apenas mais um, disputado por empresas funerárias, ausente na morte, comercializado até em ausência. Liria se perguntava: porque aumentar a morte em lugares tão impessoais, porque querer retirar a pessoa de seu espaço com tanta pressa se o usual enterro já era tão definitivo e árido. Senhorzinho nasceu no semi-árido, em terra gretada de sol, cercado de vegetação rala e arbustiva, sem as frondosidades do clima úmido. Senhorzinho viveu seu lado criança, seu lado moço, seu lado senhor(inho). Senhorzinho morreu em casa e lá foi velado ausente presente, nesse entrelugar mais confortável, mais amoroso, distante dos grandes centros urbanos em que morte e vida são anônimas, seriadas e objetualizadas, informes. Pelos relatos sobre tio Senhorzinho, que quase alcançou a oitava década, a vida relativamente comprida não era cansativa; houve alegria, flores e danças. Houve também dor. A vida talvez fosse uma mistura mais cheia de elementos, concluía Liria: ‘compridez’, finitute inevitável e finitude de momentos diversos, tristes e alegres.

quarta-feira, 16 de março de 2011

Fome de ar

Ela lutava para encontrar uma paz que fosse no redemoinho em que se enredara. Ela lutava, enquanto as perguntas sem respostas se multiplicavam, enquanto a ausência se instalava silenciosa ao olhar de qualquer um que fosse. Ela lutava nessa imperceptível luta solitária, sobre a qual ninguém sabia, ninguém perguntava; ninguém poderia, em verdade, perguntar sob risco eminente de se frustar diante de respostas tão evasivas, desorientadas. Ela parecia que não lutava, mas seu coração saltava sem saída dentro do peito, chocava-se com seu frágil tórax, que aos poucos ia se fechando para a atmosfera cheia de miasmas, partículas indecifráveis, incapazes de aplacar sua fome de ar. A densidade era tanta e pouca; faltava e transbordava a densidade. Então o ar não se segurava; ele escapava enquanto seu peito multiplicava as contrações, ainda que em disfarce de face. A fome de ar era de sentir a claridade do mundo, a razão do mundo. Nada poderia ser tão dolorido como a fome de ar. Ela lembrava-se da gata Potira no instante de morte, de sua fome de ar a arfar pela vida. Lembrava-se que nada pôde fazer, enquanto os olhos saltados de Potira imploravam por um pouco de ar.

segunda-feira, 14 de março de 2011

Manhã aterradora

Não lembrava a ela uma manhã tão aterradora. As imagens descoladas do cenário como em um filme fantasmagórico. A igreja atrás da praça sobre aquele céu cinza macilento, como a flutuar, enquanto a cruz central se impunha sobre sua cabeça. Aquelas tantas pessoas a passar em direção ao trabalho, nas suas rotinas solitárias, com seus rostos entristecidos, mas nem todos. Os lixeiros passavam em três no caminhão a recolher os resíduos da vila num dinamismo e num sorriso de surpreender, após a chuva copiosa da noite última que passara. Deram de estourar alguns sacos cheios de ar e fazer um som tão estrondoso que o coração dela disparou e as costelas subitamente comprimiram seu tórax e abdômen que já vinham acossados por todos os lados. O ar a faltar nela e induzir as lágrimas; os intestinos a se retorcerem como a quererem expelir toda a angústia de uma vida, que agora lhe parecia mais angústia pela finitude do tempo, pelas escolhas que aviltavam seu pouco poder de decisão. Enquanto isso, ela avançava em ziguezague para se desviar da sujeira que não fora lavada pela tempestade; e a despeito de todos os esforços dos coletores de lixo, tudo permanecia lama misturada a uma grande variedade de substâncias a que chamam restos, mas tudo vivo com aqueles cheiros e cores fortes. Enquanto isso uma cadelinha no cio seguia também acossada por um macho, e tudo à volta não existia, senão aquela imprevisão de um ato necessário, urgente. E ela? Ela ia novamente naquele caminho repetido, ao passo que outros caminhos a sabatinavam como fantasmas intrometidos. O dia iluminado timidamente chegava para abrandar aquela noite escura dentro dela. Mas a cruz suspensa em sua mente permanecia, como uma busca qualquer de redenção; até que logo à frente aquela menina de vestidinho goiaba aparecia no amanhecer.

quinta-feira, 10 de março de 2011

De tanto querer voar

A mesa era grande, e os bancos paralelos estendidos, de forma a permitir maior proximidade da fala e dos olhares. Esses momentos à mesa, geralmente, davam-se por ocasião do café da manhã daqueles dias chuvosos de um carnaval em que decidimos sair da rotina lá na serra; mas a chuva foi tanta que a diversão foi preterida por longas conversas. Os pousos de fato foram mais comuns que os vôos. Papos largos e nem por isso rasos davam-nos a sensação de nos conhecermos havia tempos, embora somente há pouco tivéssemos nos visto. Os rios da fala escorriam e transbordavam de bocas femininas cheias de histórias, cheias de vida, como o rio e as quedas d’água lá de fora. E foi em um desses dias que dois beija-flores estrearam seu vôo. Pequeninos e delicados em um salto suicida, eles resolveram sair em busca das flores ou qualquer outro néctar que houvesse. Resolveram testar suas asas e deram de cair exatamente na mesa dos quitutes já vazia da comilança que se findava. Após baterem no espelho logo acima da bancada, certamente confundiram-se ao ver sua própria imagem em meio há tantos apetrechos, e os limites acabaram por endurecer aquela primeira queda. Ficaram lá paradinhos sobre a madeira, como mortos, enquanto as vozes femininas se ressentiam do ocorrido. Levantei-me para ver se ainda restava qualquer sopro de beijar a flor, qualquer asa em desalinho na tentativa de alinho. Aproximei-me e toquei um deles, que saiu em polvorosa. Havia simplesmente levado um grande susto, habitara por instantes o entrelugar do início e do fim, e fizera do tombo um novo vôo. Mas o outro não se movia, tinha os olhinhos semicerrados, as asinhas inertes e aquelas cores de nuances laminadas a sair do preto, ir para o musgo, e morrer no azul céu de iniciar a noite ainda vivas; coisa linda de se ver. Aquele corpinho quente em ânsia de voar com o biquinho entreaberto ali na minha mão me deu vontade de chorar, até que alguém falou ‘coloca ele na grama’. Aplaquei um pouco da minha curiosidade de ver de perto, imóvel, o corpo daquela criatura mágica; conformei-me parcialmente com esse velar de susto, rápido como a própria magia de beijar a flor, e o coloquei sobre a grama em um espaço de relativa proteção, para que ele se sentisse arejado e aconchegado. Sua imagem não sai da minha mente desde então. Fico a pensar nos vôos de gente de asas em braços e pernas, e suas máquinas de andar e voar. Fico a pensar na vida que por vezes morre quente de tanto querer voar.

segunda-feira, 21 de fevereiro de 2011

'Impaladar'

O passar das horas era-lhe cada vez mais ’impalatável’. Ficava aquele sobejo sem gosto na boca e sobre os dentes uma camada oleosa enjoativa a impermeabilizar outros sabores vindouros. Vinha só esse ‘impaladar’ do tempo de palatabilidade espúria. Porque o tempo era ido e vindo; não dava tempo pro eu pensamento e pro seu despertar de sabores. As papilas da língua doíam, não se conformavam com o costume dos gostos, e perdiam aquela habilidade surpreendente de amar o doce, o salgado, as bases, os ácidos e até os amargos. Era urgente aquele tempo de gosto, gostar do tempo, mastigá-lo delicadamente e engoli-lo cheio de saliva, mas a sua oralidade secava, não havia palavra boa no tempo. O tempo declinava da boca, do sabor na boca, da alma da boca.

sexta-feira, 18 de fevereiro de 2011

Breve

Ela sonhara desconexo como sempre. Alguém jovem, franzino e de jeito alegre furtara algo de alguém mais velho e a entregara em segredo. Era um relógio informe feito de substância siliconada, onde os números, as horas nadavam vez por outra. Com medo de pegar o tempo, pensando não ser mesmo coisa dela, ela apertara a estrutura com tanta força que os algarismos se contorciam, mas logo voltavam a sua forma original. Acordara em pensamento desse tempo que ganhara, que apertara, e que resistira sempre a despeito de toda aquela manipulação desregrada, escondida. Porque aquele tempo furtado viera parar na sua mão? De onde viera aquele tempo materializado, que ficava disforme no contato com ela? Foram apenas instantes de um sonho breve, como o escorrer do tempo, breve.

quarta-feira, 9 de fevereiro de 2011

Lucidez

Clara chegara à conclusão que a lucidez era o próprio desatino, e tino mesmo era coisa de gente sonhadora. ‘Porque sonho, mesmo parecendo desatinado, é cheio de verdade’, pensava ela . ‘Agora, na Lucidez cabe tudo, verdade e mentira.’ Por isso a lucidez nela doía e causava tanta confusão, paralisia. A lucidez se ria dela sarcasticamente e o que restava era um movimento de abandono, de dúvida e angústia. Ela jurava que amara com sinceridade, que se doara, que fora confessa, translúcida. Mas quando tentava se ver no olhar do outro, confundia-se e voltava-se pra si como uma estranha, alguém que nunca vira, ela mesma tão ela a transbordar seu próprio eu, seus desejos bem e mal conformados. Percebia que o ver do outro não estava tão à mostra, que na mente do outro ela era um externo inatingível, e que tudo se misturava no outro e fazia uma outra forma dela. Clara estava só e seu amor e temia que amor fosse coisa só de um mesmo, que amores eram sempre diferentes de um pro outro. A prima Lucinha dizia ‘acho que eu amo o amor. Mas creio que o verdadeiro amor é ágape, dedicado e sem egoísmos.’ Talvez Clara amasse também o amor e o outro como personificação desse amor jamais alcançaria esse sentimento tão subjetivo dela, que não soubera ainda fazer avançar em direção ao sentido ágape, de um dar sem limites e exigências, de uma calmaria de sereno, quando a claridade do dia ainda não ofusca. Clara era clara e obtusa, amava sem limites, mas carregava em si limites irreprimíveis. Eram esses limites que doíam, a razão da distância do outro. Embora ela tivesse crença pia na pureza de seus sentimentos, sentia máculas insondáveis em sua natureza já acometida pela razão mais desarrazoada. Intentava possibilidades de desgarramento dela mesma, porque sabia que a dor vinha de dentro muito mais forte que de fora, porque o outro era sempre um motivo a despertar o de dentro, porque sabia e não sabia, mas queria descobrir, viver o sonho lúcido, um desatino de verdade, um amor ágape.

quarta-feira, 26 de janeiro de 2011

Gavetas



'Girafas em Fogo' (Salvador Dali)

Essa imagem sempre me inspira...mas depois de algum tempo foi o nome a causa de tanta intriga em mim...o nome do quadro no plano de fundo da imagem...a personagem no foco desfocada do nome...sem nome...mas ali tão imponente e frágil, o primeiro plano...e esses compartimentos vazios a dilacerar a carne...

terça-feira, 25 de janeiro de 2011

Sem saída

Não lembrava a ela ter vivido um momento em que sua sobrevivência fora tão ameaçada, um momento em que houvesse tanta fragilidade e inconstância diante de tudo, do outro e de si mesma. Era o lugar do próprio labirinto de si, e a fera ameaçadora não tinha formas híbridas, o minotauro, 'parte homem e parte touro' , senão uma sombra que se adensava e escapava, também uma aberração. Diziam a ela que era um período de crise, dessas vertigens produtivas que provocam mudanças de atitudes, embaraços e acertos. Pessoas, certamente positivas, pelo menos no discurso. Mas ela tinha por dentro desde que nascera apenas uma pálida solidez, uma ‘solidez a se desmanchar no ar’, um esvaecer dos sentidos, como se a própria sombra a rondar fosse ela mesma, inconsistente pelos caminhos, a desviar sempre sem destino, num afastamento do lugar de encontro; ânsia de encontrar, dor de desencontrar. Estava encurralada pela expectativa daquilo que sequer precisava, compreendia. Não tinha identidade, não percorrera lugares em escalas pertinentes, a que chamavam avançar; simplesmente caminhara sem rumo e fora acumulando não lugares sem sincronia uns com os outros, meros fragmentos. Abandonara possibilidades; em realidade tinha aversão delas, posto que as compreendia muito mais como impossíveis. Amigos e familiares a rodearam de atenção e perspectivas, crentes de sua força, dessa imanência que atribuem a todo ser. Porém, nela o imanente se desfazia antes da ação, pois que se colocava em dúvida permanente, e sempre entre dois propósitos com os quais não simpatizava tanto assim, até que procurava um terceiro, e mais outro, até o significado sublimar, esse desmanche de mágica da química; sublimação, naftalina. Ela era a própria sublimação, mas não guardava em si nada de divino, sublime, de luz; era apenas um pedaço de carne emburrecido, embrutecido, melancólico e, por vezes, afetado de alegria, enlouquecido. Uma louca a fazer análises sucessivas de si, sem alcance qualquer, e tantos alcances às vezes, que a lógica explicativa se perdia. Essa incompreensão de si para si causava no outro um desatino a virar desafeto, e ninguém mais queria se aproximar dela sob pena de também se perder. Então, ela ficava só, a pensar sobre os caminhos e lugares em que nunca estaria.

domingo, 23 de janeiro de 2011

Nebulosas

Quando vira a floresta pela primeira vez rondava uma certa nebulosa à frente de seus olhos, como se fosse realidade e sonho imbricados, inevitavelmente unidos naquela noite. Era uma noite suspeita. De início não deixava ver estrelas. O chão de grama estava úmido da chuva ao toque de seus pés parcialmente nus. Ia ao encontro de alguém, onde um aglomerado de pessoas em burburinhos se formara, ao som de música, no balanço alguns corpos, enquanto o céu aos poucos se abria em estrelas. Enquanto isso, a floresta ia adiante, na calmaria.

Não se lembrava bem da lua naquele dia, mas certamente ela aparecera, ainda que discreta, pois que no caminho da floresta os contornos dos troncos e galhos das árvores eram perceptíveis, embora, por vezes, se confundissem com a cor da noite. Umas mãos a guiavam, as mesmas que a acomodaram naquele pedaço de tronco, que mais se parecia um barco em espera. Muitos, certamente já teriam se sentando ali a silenciar, a conversar, a se tocar.

As mãos que a guiaram disseram que o lugar era de seu agrado, porque era tranqüilo e levava a outro lugar que lhe inspirava. ‘Nunca levara ninguém até ali’, aquelas mãos lhe confessaram. Ela sentira aquela afirmação como um segredo. Não foi longa a visita, apenas o suficiente para que ela guardasse na memória. Eram as mãos que mais lhe valeram naqueles instantes de nebulosa, e também os olhos das mãos, porque o lugar seria para ela um tanto inóspito, e quem sabe jamais visitado com pouca claridade.

Ela voltara àquelas imediações da floresta depois de algum tempo à luz do dia. Não fora com o intuito de vê-la, mas ao finalizar seus propósitos naquele dia, resolveu retornar, reconhecer aquele lugar tão próximo que nunca avistara e que finalmente alguém a apresentara. Custou um pouco a reconhecer a entrada, o caminho, intimidou-se com supostos olhares, mas o encontrou sem pergunta alguma a qualquer um que fosse.

Estranhou que a floresta encantada fosse meio rala, de árvores menos numerosas. O noturno havia lhe concedido uma atmosfera mais densa, um silêncio de esconderijo. Mas ali na claridade a floresta não provocara desencanto, apenas lhe mostrara sua outra face. Naquele dia em que fora apresentada a ela, ficara pelo meio do caminho. Desta vez resolveu ir mais adiante, até o princípio de qualquer fim.

Seguiu lentamente pelo passeiozinho calçado, e não pôde avistar com clareza todos os detalhes. Redimiu-se da tentativa, desculpou-se pela nebulosa do outro dia. Avistou uma moça fardada vindo em sua direção e ficou meio receosa por ser o caminho bastante ermo, porém, não houve qualquer olhar de reprimenda ou curiosidade para ela. Continuou seguindo, até que o som invadiu seus ouvidos. Embora parcialmente misturados, foi possível perceber com nitidez a quase exata localização de onde vinham.

Os sons ressoavam de um prédio dividido em duas metades; de um lado, um instrumento de sopro a entoar uma música um tanto melancólica, de outro, a música de um piano, esta mais incisiva, forte, com ritmo mais rápido. Foi uma nítida sensação de entrelugar. Mas fora também o princípio do fim, pois que chegara ao fim daquele caminho guiada por uma lembrança, que neste dia veio-lhe muito imponente. O sentimento da especialidade daquelas mãos a guiá-la pelo caminho escuro, que finalmente daria em um lugar de sonoridade tão variada a provocar tantas sensações.

Ela percebera que a nebulosa eram aquelas mãos que a guiavam; porque elas existiam é que sua visão não se mirou no detalhe, não se potencializou na escuridão, e o momento era de criação, caótico. E essa segunda visão fora de magia diversa, de encanto em potência, posto que de descoberta autônoma e de retomada, de uma prévia visão, que dizia; ‘preste atenção a esse lugar, ele leva a outro lugar, sinta o encantamento desse lugar, desse lugar que se faz no nosso existir’...

Outras nebulosas viriam, as necessárias que fossem, mas aquele momento de nebulosa que vivera, sua explosão em estrelas, era absolutamente original ainda que aparentemente ordinário. Ela constatara que sempre surgiriam novas criações, incontáveis constelações no céu e na alma, e que os olhos nus seriam sempre frágeis, débeis para perceber tamanha grandiosidade...Era preciso estar atento às nebulosas, senti-las; era preciso estar muito atento, pois elas eram a própria alegria.

Lagartos 7

Pensava Liria: “E se pudéssemos nos metamorfosear em lagarto?”

Lagartos 6

Uma lagartixa emoldurada naquele espelho de banheiro. Sim, um quadro vivo, de contornos precisos, a cauda enrolada como um arabesco, como uma pose, ou simplesmente um descuido do parar em estética surpreendente. Liria estava ali deitada naquele aparelho em forma de cama e já ouvira muitos a comentarem daquela forma ali grudada, adesivada. O que aquele ser esperava? A penumbra da sala para especular o lugar, alimentar-se, viver?

Liria e a mãe há algum tempo freqüentavam aquela sala, onde recebiam puxões restauradores de molas e braços, onde mãos as ajudavam a reconhecer o toque, cada superfície desconhecida do próprio corpo, do anestesiado corpo de todo dia, alijado pelos pensamentos inconfessos e confessos. E porque ali estaria aquela imagem recorrente? Aquele lacertídio prestes a fugir, mas que nesse instante era estanque, como a mover só pensamento? Que convivência dura aquela com os humanos, que faziam aquele ser converter-se em mera figuração sem, contudo, ser camaleão?

Quereria ela, certamente, ser camaleão, mas quaisquer olhos que lhe vissem reconheceriam seu disfarce. Entretanto, volviam seu olhar com admiração e perguntas, quase como a vê-la como humanizada, com intenções bem conformadas. Fosse um lagarto menos doméstico, não seria tão bem vista por todos, sequer admirada. Um atrapalhado fujão, assim seria.

Era esse contraponto entre o doméstico e o selvagem que admirava e afrontava Liria. Essa contaminação do humano na lagartixa, essas fugas menos prementes, essas estratégias comoventes por puro engano, como se ela finalmente não estivesse ali, fosse tão somente um desenho no espelho, como muitos humanos, sem qualquer profundidade em relação ao outro, tamanha a aderência do corpo sobre sua própria imagem, a ver somente e só a si mesmos, sempre nesse espelhamento a farejar o de si no outro?

sábado, 22 de janeiro de 2011

Lagartos 5

A visão daquela lagartixa ali esmagada no portão, rodeada de formigas de traseiro cor de ouro foi um tormento para elas. ‘Que dó’, lamentou a mãe de Liria. Primeiro espremida sem ninguém que a avistasse, depois comida lentamente por aqueles insetos carnívoros. Que sina mais triste, morrer assim num fechar de porta, num trancar displicente. E toda morte não é mesmo um fechar de portas e não se dá de susto, por acidente, muitas vezes?

Elas também poderiam ir desse mundo nesse piscar de olhos. Agora pior que piscar e não ver mais seria olhar e não ver. Não ver mais os lagartos em suas fugas vertiginosas. E nesse não ver definitivo, serem carcomidas por quaisquer insetos ou organismos microscópicos sem qualquer salvação.

As lagartixas sempre foram bem vindas naquela casa, sobretudo, é claro, por seu adorável gosto por baratas; um inseticida natural e ágil. Além disso, esses pequenos lacertídeos lembravam a elas réplicas diminutas e delicadas de répteis pré-históricos, quase míticos a vagar por florestas distantes. Só que estranhamente vieram conviver nas casas. Em que momento teria se dado esse movimento lacertídeo para um ambiente tão hostil, em que portas e trancas podem os esmagar quase sem chance de fuga?

Elas se sentiam assim; sem chance de fuga. Esmagadas e rodeadas por formigas famintas a roer suas idéias e sonhos simples, seus olhares deslocados na multidão. Talvez outros também se sentissem assim e vagassem por pensamentos inconclusos, por terras desconhecidas, alienígenas. Por isso, os lagartos as encantavam, e as lagartixas, em habitat tão antinatural, intrigavam-nas.

sexta-feira, 21 de janeiro de 2011

Lagartos 4

Os lagartos em fuga, um desejo profundo em Liria. Eles pareciam a ela nunca contingentes, obrigatórios. Sua permanência nos lugares era fugaz, eles não se demoravam e raramente deixavam rastros. Pareciam uma névoa que passou. E Liria queria esse passar que passou; queria mais; queria que tudo passasse sem deixar marcas, um mundo dela imemorial. O sofrimento apagado, a lembrança feliz não interrogada, só o porvir sem planos, acidental.

Parecia a ela que lagartos estavam no entrelugar, porque nem rastejavam propriamente, nem voavam. E podiam botar ovos e ainda tê-los, os filhotes, já prontos. E não se apegavam às crias. Criavam-se sozinhos, e talvez, por isso, não faziam morada, não assentavam em lugar qualquer, somente iam. De fato, não eram animais disponíveis à domesticação, embora fosse possível criá-los em cativeiro. Agora, querer afagá-los com carinhos e conversas, quase improvável. Mas a mãe de Liria cria nessa possibilidade, pensava somente que o afeto era rejeitado por falta de tato, a gentileza ideal no momento certo, uma abordagem lenta e permanente a cada dia.

Fosse o mundo cruel o tanto que fosse, se o espírito do lagarto grudasse em gente, não haveria sofrer, perder, regressar. Era isso que encantava Liria, esse inevitável existir assim, um lagarto que chega e vai veloz pelos muros, a criar novas divisas, a indivisar-se por estar apenas ali e em nenhum outro lugar do pensamento, sem deslumbramentos, senão o tiro certeiro, a língua bumerangue na direção do alimento.

Absolutamente naturais, sem razão que se considerar, os largartos apareciam para Liria e sua mãe como a adensar o fosso de seus sentimentos, de seus tormentos diante do oposto cheio de nada, de uma vida sem considerações razoáveis, apenas o movimento de viver, nascer, se proteger, fugir, comer, reproduzir. E então, pensavam elas que isso era o verdadeiro encanto, e que apareciam assim nos caminhos, nas encruzilhadas de suas mentes para dizer exatamente da necessidade de retomar esse natural perdido, acometido da moléstia do julgo, pura artificialidade.

quinta-feira, 20 de janeiro de 2011

Lagartos 3

Liria como a mãe não vivenciara o afeto paterno desde o início, mas teria a mãe sempre próxima. As duas seguramente não viram os lagartos no começo, mas tiveram visão reveladora tempos depois.

Em certo tempo de suas vidas apareceram vários lagartos no quintal, já em cidade longíncua dos tempos do sertão, dos tempos da vila. Elas descobriram que os lagartos estavam em todos os lugares, e sempre naquele andar vertiginoso de fuga.

Nos fundos da casa resolveram fazer morada nos buracos do canteiro. Botavam ovos, e dos ovos pequeninos nasciam diminutos lagartos de olhos gigantes, como desnutridos do sertão naqueles corpinhos fininhos, frágeis, naquelas barriguinhas protuberantes a mostrar linhas de assombro, sanguíneas e digestivas.

De toda aquela vertigem rastejante, sobrou apenas um lagartinho no ninho, ao lado do ovinho quebrado. A mãe de Liria quis criar o pequenino mágico saído do ovo; tentou alimentar com comida e afeto, mas ele insistia repetidas vezes na fuga pelo corredor em direção à rua. Um dia ele conseguiu e foi dar no jardim sem que nada elas pudessem fazer. No dia seguinte estava lá ressecado, rodeado de formigas famintas.

Liria achava que essa fixação da mãe em criar um lagarto era a lembrança do ovo da infância, ainda que só lembrasse por alguém contar. Algumas histórias eram como sombras, passados eternizados, e viriam em sonho e vida com diversos disfarces, faces.

quarta-feira, 19 de janeiro de 2011

Lagartos 2

Antes da vila foram outras cidadelas e sua mãe, suas origens mais remotas do sertão, dos lagartos camaleões, rápidos no movimento dos membros e das cores, bem mais espertos que os lagartos do tempo de Liria. Sua mãe dizia que eram muitos e que a carne era tenra e saborosa. E naquelas terras onde a carne era escassa, o lagarto fazia a festa no almoço matutino e vespertino. Era comum almoçar ao levantar feijão com milho e vez por outra um pedaço de carne, de passarinho morto a estilingue, de lagarto morto a tiro e raramente alguma criação.

O ovo também era fonte de proteína e energia importantes, mas não eram muitas as aves chocadeiras, e muitas eram as pessoas carentes do alimento, as cozinheiras a fazer bolos. Assim, sua mãe se punha a vigiar o descenso do ovo, aquele parto maravilhoso que lhe dava água na boca. Por vezes, vasculhava os ninhos, e saía feliz com o ovo nas mãos, como se sua sobrevivência e alegria estivesse ali naquela esfera mágica.

Tal qual Liria não se lembrava dos lagartos no começo do seu tempo, sua mãe não se lembrava de sua própria mãe, a avó, senão por uma pequena fotografia, em que ela fechava o cenho diante do sol ardente, os braços pendentes e curtinhos apoiados em um vestido de chita a dar nos joelhos. Diziam que sofria dos nervos, teimava em não conseguir andar, e no dia do casamento recusara levar qualquer pessoa na garupa do cavalo, sob pena de amassar o traje. Terminou por levar uma sobrinha, depois de obter a garantia de que a mocinha, em hipótese alguma, seguraria-se nela. Casou-se, mas pouco durou o matrimônio, vítima que foi de um parto difícil e mal curado feito em casa.

A mãe de Liria fora a primeira nascida e já com três anos não havia mãe que lembrar e nem pai, que este abdicou da função. Foi então que toda fuga sem destino começou. Ela retornaria àquelas terras e veria os camaleões nos troncos tortuosos, veria a terra ressecada cheia de falhas, veria as cabras a beber no açude e os moinhos a moer a cana pra dar rapadura e o ‘fininho’, o puxento doce dos dias de moagem. A casa do pai ficava cheia de cortador de cana e o carro de boi fazia aquele som retinente, enquanto os pobres animais alinhados, presos pelo pescoço, por obra do homem, faziam aquele monótono e duro movimento circular. Via tudo enquanto o pai permanecia calado, os olhos inexpressivos naquela mansidão estranha, naquele fugir do afeto paternal.

terça-feira, 18 de janeiro de 2011

Lagartos 1

Não que fossem eles os únicos fugitivos, mas Liria sempre se surpreendia com aquele movimento rápido dos lagartos pelo chão, pelos muros; surpreendia-se com a agilidade do arrastar frente a qualquer perigo, verdadeiro ou falso. Isso sempre ocorria a ela; largartos de todos os tamanhos e nuances nem tão distintas pelas ruas que caminhava, pelos muros que margeava, pelas matas que visitava e mesmo nos quintais.

Liria nascera em uma casa que não se lembrava e só vira por fotos de um álbum de infância. O quintal tinha ibiscos vermelhos, assim aparentavam, posto serem as imagens em preto e branco. O lugar tinha terra vermelha, a que o tom de cinza precariamente tentava imitar, embora muito atiçasse a imaginação. A casa também era de pisar em vermelho, daquele vermelhão de concreto tingido, sedento por cera pegajosa, lindo sangue a brilhar por baixo.

Nesse tempo, esse de que ela não se recordava, os lagartos deveriam estar, e talvez Liria corresse atrás deles, ou mesmo se aproximasse enquanto eles fugiam. Liria não se lembra deles naquela vila distante de sua infância primeira, de seu primeiro ano de vida. E foram tumultuados esses instantes, contava sua mãe. As duas migraram para aquela pequena cidade em formação, cidade em busca do encontro ou do desencontro, do povoamento. Fora talvez uma viagem de fuga aquela ida, fuga para encontrar? Ela ainda ia barriga adentro, naquele rio morno, amniótico. E foi com esse ventre repleto que sua mãe navegou também no largo rio de nome também largo, rio do norte.

Por pouco tempo Liria permanecera ali, e nunca mais retornaria. Talvez toda a angústia do seu nascimento estivesse guardada naquele lugar, fincada naquela terra encarnada, naqueles momentos de chegada e largada para o mundo, quando os lagartos ainda não apareciam para ela.

quarta-feira, 5 de janeiro de 2011

por vir...porvir...

Estou no exato meio do caminho, fincada no sentimento inquieto do que está por vir. Por enquanto, abstenho-me das minhas e das histórias dos outros que, por vezes, são minhas também, para esperançar e medir as possibilidades do porvir, para agir e ser agida. Que seja de fim ou recomeço, mas que esteja a inaugurar algo findo em recomeço, esquecido dos tempos de nuance de parca cor, de escuro inesperado.Que seja um momento espelhado não de luz intensa cega de ilusão, mas de mansidão da alma e do corpo, de calmaria não isenta dos redemoinhos que se vão, de alegria vivida em plenitude e de tristeza bem motivada.Que seja eu diante do outro e pelo outro, um olhar de admiração sincera, a angústia que não paralisa, mas que ativa contornos de sobriedade e claridade.