segunda-feira, 28 de março de 2011

Uma arqueologia

Amor poderia se chamar curiosidade, curiosidade de cada parte não tocada, não anunciada;
Cada parte usurpada por pura e simples natureza inacabada de cada instante;
Se te colocas a encontrar e registrar cada espaço de superfície e falha do outro;
Se te incumbes dessa arqueologia amorosa, falhas por entre as falhas;
E crias um abismo de profundidade oca a ressoar infinitas canções de desatino;
E em vão procuras a origem das cicatrizes visíveis e invisíveis;
E a constituição dos suores, rios do enlevo e do labor, os fluidos de todo dia;
Porque queres todas as rotinas, todos os relevos e planuras naquele corpo, naquela mente;
Todos os volteios, as barreiras intransponíveis, os limites do céu, os magmas do subsolo daquela alma que sonhas completa, mas que aceitas humildemente incompleta;
E os sons que o outro entoa fazem-se signos de presença, de ausência;
São odes, são louvores e gritos sufocados, ainda que embalados por sussurros;
Amor poderia se chamar uma disposição arqueológica;
Posto que qualquer um é solo, é rocha de outros tempos em camadas datadas e indecisas, os limites a flutuar;
Amor é um caminho para o encontro de um ponto qualquer desencontrado;
Aquela reentrância jamais vista, percebida pelo tato, pela intuição;
A descoberta das descobertas;
Quase uma pureza e uma alegria da alma de saber do outro aquela pequena grandiosidade desconhecida.

sexta-feira, 25 de março de 2011

'Compridez' e finitude

A vida é essa mistura de ‘compridez’ e finitude, pensava Liria. É comprida quando se faz cansativa, a despeito de inúmeras possibilidades e nenhuma a que se queira realmente acolher. É finita porque a morte sempre à espreita; vem fatal ou vem de um jeito mau, lenta e dolorosa. Esses dias Liria recebeu a notícia da morte do tio Senhorzinho, quase só conhecido pelo apelido parecido com ele, um senhor pequenino. Talvez uma delicada paródia para o seu jeito distinto e para uma terra de coronéis, sempre de coronéis. Mas ele não era coronel e sua morte seguramente não fora pequenina, como nenhuma outra. A dele em especial, nessas cidadelas do interior, eram não festejadas, mas gentilmente acompanhadas num velar de casa a receber parentes e amigos. O aconchego dos almoços e das festas era o mesmo aconchego do descanso, qualquer que fosse ele. Seguramente, intuía Liria, o morto ali estaria menos intimidado, cercado pelos objetos assujeitados de uma vida. Nada mais impessoal que um velório numerado repleto de coroas de flores enviadas apenas por pura formalidade. É certo que em qualquer lugar existem os comparecimentos ‘obrigatórios’, mas certamente o morto velado no interior das suas próprias casas é mais respeitado, posto que continua a ser o anfitrião mais importante daquele espaço; não é deslocado de seu ambiente por rejeição da morte; continua querido, acolhido. Senhorzinho é grande em sua casa; no velório 1, 2 ou 3...seria apenas mais um, disputado por empresas funerárias, ausente na morte, comercializado até em ausência. Liria se perguntava: porque aumentar a morte em lugares tão impessoais, porque querer retirar a pessoa de seu espaço com tanta pressa se o usual enterro já era tão definitivo e árido. Senhorzinho nasceu no semi-árido, em terra gretada de sol, cercado de vegetação rala e arbustiva, sem as frondosidades do clima úmido. Senhorzinho viveu seu lado criança, seu lado moço, seu lado senhor(inho). Senhorzinho morreu em casa e lá foi velado ausente presente, nesse entrelugar mais confortável, mais amoroso, distante dos grandes centros urbanos em que morte e vida são anônimas, seriadas e objetualizadas, informes. Pelos relatos sobre tio Senhorzinho, que quase alcançou a oitava década, a vida relativamente comprida não era cansativa; houve alegria, flores e danças. Houve também dor. A vida talvez fosse uma mistura mais cheia de elementos, concluía Liria: ‘compridez’, finitute inevitável e finitude de momentos diversos, tristes e alegres.

quarta-feira, 16 de março de 2011

Fome de ar

Ela lutava para encontrar uma paz que fosse no redemoinho em que se enredara. Ela lutava, enquanto as perguntas sem respostas se multiplicavam, enquanto a ausência se instalava silenciosa ao olhar de qualquer um que fosse. Ela lutava nessa imperceptível luta solitária, sobre a qual ninguém sabia, ninguém perguntava; ninguém poderia, em verdade, perguntar sob risco eminente de se frustar diante de respostas tão evasivas, desorientadas. Ela parecia que não lutava, mas seu coração saltava sem saída dentro do peito, chocava-se com seu frágil tórax, que aos poucos ia se fechando para a atmosfera cheia de miasmas, partículas indecifráveis, incapazes de aplacar sua fome de ar. A densidade era tanta e pouca; faltava e transbordava a densidade. Então o ar não se segurava; ele escapava enquanto seu peito multiplicava as contrações, ainda que em disfarce de face. A fome de ar era de sentir a claridade do mundo, a razão do mundo. Nada poderia ser tão dolorido como a fome de ar. Ela lembrava-se da gata Potira no instante de morte, de sua fome de ar a arfar pela vida. Lembrava-se que nada pôde fazer, enquanto os olhos saltados de Potira imploravam por um pouco de ar.

segunda-feira, 14 de março de 2011

Manhã aterradora

Não lembrava a ela uma manhã tão aterradora. As imagens descoladas do cenário como em um filme fantasmagórico. A igreja atrás da praça sobre aquele céu cinza macilento, como a flutuar, enquanto a cruz central se impunha sobre sua cabeça. Aquelas tantas pessoas a passar em direção ao trabalho, nas suas rotinas solitárias, com seus rostos entristecidos, mas nem todos. Os lixeiros passavam em três no caminhão a recolher os resíduos da vila num dinamismo e num sorriso de surpreender, após a chuva copiosa da noite última que passara. Deram de estourar alguns sacos cheios de ar e fazer um som tão estrondoso que o coração dela disparou e as costelas subitamente comprimiram seu tórax e abdômen que já vinham acossados por todos os lados. O ar a faltar nela e induzir as lágrimas; os intestinos a se retorcerem como a quererem expelir toda a angústia de uma vida, que agora lhe parecia mais angústia pela finitude do tempo, pelas escolhas que aviltavam seu pouco poder de decisão. Enquanto isso, ela avançava em ziguezague para se desviar da sujeira que não fora lavada pela tempestade; e a despeito de todos os esforços dos coletores de lixo, tudo permanecia lama misturada a uma grande variedade de substâncias a que chamam restos, mas tudo vivo com aqueles cheiros e cores fortes. Enquanto isso uma cadelinha no cio seguia também acossada por um macho, e tudo à volta não existia, senão aquela imprevisão de um ato necessário, urgente. E ela? Ela ia novamente naquele caminho repetido, ao passo que outros caminhos a sabatinavam como fantasmas intrometidos. O dia iluminado timidamente chegava para abrandar aquela noite escura dentro dela. Mas a cruz suspensa em sua mente permanecia, como uma busca qualquer de redenção; até que logo à frente aquela menina de vestidinho goiaba aparecia no amanhecer.

quinta-feira, 10 de março de 2011

De tanto querer voar

A mesa era grande, e os bancos paralelos estendidos, de forma a permitir maior proximidade da fala e dos olhares. Esses momentos à mesa, geralmente, davam-se por ocasião do café da manhã daqueles dias chuvosos de um carnaval em que decidimos sair da rotina lá na serra; mas a chuva foi tanta que a diversão foi preterida por longas conversas. Os pousos de fato foram mais comuns que os vôos. Papos largos e nem por isso rasos davam-nos a sensação de nos conhecermos havia tempos, embora somente há pouco tivéssemos nos visto. Os rios da fala escorriam e transbordavam de bocas femininas cheias de histórias, cheias de vida, como o rio e as quedas d’água lá de fora. E foi em um desses dias que dois beija-flores estrearam seu vôo. Pequeninos e delicados em um salto suicida, eles resolveram sair em busca das flores ou qualquer outro néctar que houvesse. Resolveram testar suas asas e deram de cair exatamente na mesa dos quitutes já vazia da comilança que se findava. Após baterem no espelho logo acima da bancada, certamente confundiram-se ao ver sua própria imagem em meio há tantos apetrechos, e os limites acabaram por endurecer aquela primeira queda. Ficaram lá paradinhos sobre a madeira, como mortos, enquanto as vozes femininas se ressentiam do ocorrido. Levantei-me para ver se ainda restava qualquer sopro de beijar a flor, qualquer asa em desalinho na tentativa de alinho. Aproximei-me e toquei um deles, que saiu em polvorosa. Havia simplesmente levado um grande susto, habitara por instantes o entrelugar do início e do fim, e fizera do tombo um novo vôo. Mas o outro não se movia, tinha os olhinhos semicerrados, as asinhas inertes e aquelas cores de nuances laminadas a sair do preto, ir para o musgo, e morrer no azul céu de iniciar a noite ainda vivas; coisa linda de se ver. Aquele corpinho quente em ânsia de voar com o biquinho entreaberto ali na minha mão me deu vontade de chorar, até que alguém falou ‘coloca ele na grama’. Aplaquei um pouco da minha curiosidade de ver de perto, imóvel, o corpo daquela criatura mágica; conformei-me parcialmente com esse velar de susto, rápido como a própria magia de beijar a flor, e o coloquei sobre a grama em um espaço de relativa proteção, para que ele se sentisse arejado e aconchegado. Sua imagem não sai da minha mente desde então. Fico a pensar nos vôos de gente de asas em braços e pernas, e suas máquinas de andar e voar. Fico a pensar na vida que por vezes morre quente de tanto querer voar.