domingo, 20 de novembro de 2011

Sacolão e 'selvageria'

Foi inaugurada a grande festa da bicharada, da selvageria. Basta ires a um sacolão da rede ABC em alguns recantos da leste Belo Horizontina e terá a seu dispor um perfeito laboratório para estudos de antropologia, sociologia e filosofia. Expresso-me deste lugar, de dentro, e não de quem espreita uma vitrine.

Na superfície, são verduras, legumes, frutas e alguns congêneres embalados para alimentar alguns humanos, a maioria. Por não terem o privilégio de freqüentar as redes multinacionais de gôndolas bem organizadas e corredores bem apropriados para a circulação de gente, tudo muito bem dimensionado no estilo pague mais e tenha conforto, civilidade; eles se esfregam, acotovelam-se e trombam na faminta ordem do salve-se quem puder, pegue quem puder, quem suportar as incivilidades por alguns alimentos a R$0,79 ou R$0,99 o quilo.

Fundaram essas alternativas de venda de hortifrutigranjeiros supostamente mais econômicas a servir os ‘populares’, a servir também a classe média trabalhadora que economiza para gozar um pouco de lazer ou entretenimento nos intervalos laborais. ‘Tá barato, é pacabá’, grita ao fim do expediente o carregador-funcionário, resfestalando-se daquela disputa ‘inumana’ para alimentar o corpo, porque a alma gentil, cooperativa, já há muito se perdeu.

A logística se resume em algumas estratégias ‘curiosas’. Primeiro as prateleiras gigantescas para caber o excesso armazenado, para caber também os deteriorados a contaminar a vizinhança, mas principalmente para gerar o famoso excedente quantidade, porém, de qualidade duvidosa. Segundo, os espaços reduzidos a subsumir o poder de escolha, a gerar as desavenças na filas. Depois, as lixeiras abarrotadas de ‘estragados’, acuados pelo volume e pelo alto preço.

O excesso de gente faz o mesmo, é multidão insana em um processo de contaminação incontrolável. Por uma ilusão de preço baixo em troca de um saco de alimento, manifesta a sua ação irrefletida, manifesta seu despreparo diante dos processos tão bem criados de alienação, sobrevive e se debate a despeito da educação, do respeito pelo outro. Então o lado bicho e primitivo aflora, mas não para a caça ou a coleta daquilo que a natureza oferece e o instinto submete, mas para a coleta artificial, forjada no capital.

quarta-feira, 16 de novembro de 2011

'Meu menino lindo'

Achei que o menino lindo era meu, mas entre tantos haveria um e mais outro e ainda mais... Estava lá transcrito na página de relacionamentos; ‘Meu menino lindo’. Então não era só meu, era de tantos quanto houvesse amor. Assim, era eu mais um a amar na repetição das linguagens, dos dizeres que se repetem, embora lá no íntimo houvesse uma interpretação própria, um sentir ‘irrepetível’, de uma densidade de receita escondida e indecifrável. Porque o ‘Meu menino lindo’ fazia em mim o que eu deixasse, e nesse fazer dele um tanto meu, em verdade, o que eu queria, construía esse prazer estético indizível que apelava para as palavras simples e corriqueiras de qualquer um que amasse. Para o amor, criamos palavreados arbóreos, espontâneos e fluidos, saídos de instâncias coletivas. Contudo, apelamos para misturas de linguagens improváveis, por vezes, até nos perdermos nos silêncios e nos gestos de mais amar. Mas ‘meu menino lindo’ sempre estará para dizer do pronome de possuir imaginário, do pueril de amar, da beleza que se devota.

quinta-feira, 10 de novembro de 2011

Sacro pagão

Faria um sacramento por ti
Não tu ai distante objeto
Faria um sacramento pagão
Pegar-te-ia em dedos sem comiseração
Num toque sagrado de quem descobre
E num susto se apercebe das doces nuances do sentir
Faria um sacramento tribal
E benzeria todas suas partes
Até alcançar o todo em banho redentor
Far-te-ia o próprio sacramento
O instante eterno das sutilezas
Daquilo que sempre se renova
Embora em parecença já tenha havido
Faria um sacramento por ti
Embebido em cheiros e secreções e audições controversas
Um caos a se ordenar por força natural
Uma força de desordenar para morrer no caos
Para renascer no caos
Faria um sacramento por ti
Desatinado por não conhecer-te
Na ânsia de compreender a parte pelo todo
O todo pela parte
Seria eu o próprio sacramento
Em sacramento por ti
Por querer fazer-te delicadezas
Do gesto, do ouvir, do falar em notas suaves
Do dar e receber como um sacramento
Faria um sacramento por ti

segunda-feira, 7 de novembro de 2011

Chega...

Chega um momento que não se apercebe, mas já se está adestrado, acostumado às rotinas de horário laboral, às contas a pagar, aos supérfluos indeléveis como a maçã grudada na barata kafkaniana. Chega um momento que a saída se estreita de tal forma, que a ilusão de liberdade se desfaz na prisão de não ser e não saber aonde ir. Chega esse momento em desacalento de segurança sórdida e frágil na sensação da alma. Chega esse momento repetido, desvencilhado de qualquer espírito nobre, criativo. Chega esse momento como aperto no peito, angina malfazeja, somática por pensamentos de compressão. Chega um choro, chega um soluço pós-prandial a sufocar a modorra da tarde, o calor do alimento. Chegam esses metabólitos monstruosos de uma vida mesquinha, medíocre, na acidez da saliva, no ardor estomacal, na paralisia intestinal. Chega também o suspiro de não suportar esse limite contraditório de não ser e ser. Chega vem imperativo, pegajoso nas palavras mal ditas, reprimidas, confusas, a buscar ressonância em ouvidos cavos, rasos. Chega se perde, chega é incompreendido, chega some, chega vai feito animal de circo em picadeiro teatral, em performances bem ditas, santas por olhos cegos, deletérios.