sábado, 4 de maio de 2013

O cubo

Com muito custo saía daquele quarto; ainda que houvesse sol e a pele pedisse aquele calor. Os olhos estavam sensíveis demais ao sol, ardiam. Então se trancava naqueles óculos nos poucos momentos em que saía; voltava pro quarto frio. Imobilidade e solidão. Descobrira que só a muito custo criava laços e quando os criava a custo se desmanchavam. E no lugar daquele quarto os laços eram fitas soltas no ar, não se agarravam a ela, e ela tão pouco a eles; fitas soltas no ar. Artefatos de tecnologia faziam-lhe companhia, sons de tons variados, cenas repetidas e inauditas nas telas; livros abertos e fechados, argumentos multiplicados, vazios constantes irrefletidos; as lágrimas desciam e o quarto cada vez mais se agarrava a ela. Quadrado de pontas fixas, cubo fora do jogo. Não sabia mais se havia profundidade ali; era plano ou profundo, quadrado ou cubo? Confundia-se nesse continente ela no quarto. Era preciso manter certa ordem para não se perder no cubo quadrado, quadrado cubo. O chão mal aguentava ciscos e os barulhos de fora a incomodavam, impertinentes seres do lado de fora. Descargas sanitárias, ranger de móveis, trincos de portas, silêncio com fundo de motores automóveis na avenida fora. Vez por outra, uma fala mais alta, uma gargalhada, uma música repetida, uma serralheria. Lembrava-lhe uma orquestra férrea, serralheria e pum pum pá em autofalantes nos carros. Tudo se movia e ela só a muito custo saía do cubo. Os ossos não suportavam o frio e a imobilidade, mas o apelo do sol era inútil ali. Tudo a sobrecarregava, a carcaça pesada, os ombros em alerta. A vontade era de voltar para as vozes conhecidas, para os barulhos insuspeitos, pro sol do quintal. Mas era preciso viver o momento cubo fora do jogo, quarto frio de pontas afiadas e ouvidos sensíveis, de cheiros clorados em excesso, de manutenções comerciais. A vida morria um pouco ali no cubo, escapava a poesia do sol, do ar, do céu. Imobilidade e solidão no cubo, dado fora do jogo.