quinta-feira, 24 de julho de 2014

Irrepetíveis

Por não saber o que fazer com as palavras é que as juntava; era quase um empirismo, um jeito de misturar sem saber ao certo no que ia dar. Não, não era uma psicografia, nem uma intenção bem formatada, adequada. Sabia que essa reunião emergia ponto a ponto e ia fazendo rede, fazendo linha. Rede e linha também se desfaziam em não reconhecer essa formulação injusta do momento. Reler era inusitado, era dolorido também. Sim, os registros doíam, provocavam febre, tinham existência própria; sorriam e debochavam dela, dos seus insuspeitos instantes de delírio. Ainda assim, ela os fitava curiosa, derrotada e inexistente, posto que tudo virara palavra. Por que as juntava? Não saberia dizer, senão que sentia e juntava; esvaziava cada substância orgânica naqueles escritos. Eram cores, cheiros, suores e sons suspensos em sílabas enigmas. Pobres palavras insuficientes e tão repletas, jamais repetíveis naquela junção de sentir.

A mão de Deus

Ela se perguntava sobre a mão de Deus; se uma mão tão grande cobriria os humanos de conforto ou punição, ou se uma mão tão grande quedaria provocando espanto e soterramentos; se uma mão tão grande penderia flácida, desvitalizada, como se o destino dos humanos não passasse de um mero acaso, de um caos na eterna tentativa de se organizar; tudo sobre a mão pendular, gangorra a brincar...

terça-feira, 22 de julho de 2014

Irficar Ficair

Como ideia muda na cabeça da gente. Uma hora é sentimento de proteção, depois vira libertação. E é no meio do caminho que coração dispara de dúvida; e ficar ou ir nem é decisão que se tome assim de supetão. Mas que dá vontade de ir e ficar em definitivo isso dá; ou a coberta acolhedora ou o caminhar sem fim cheio de fins.

Cenas redimidas

Quantas e quantas vezes ela andara por caminhos em descaminho. Descaminho de mente crucificada; e a despeito dessa posição redentora, era tão absolutamente descrente. Crença de fato não se resumia em posições aniquiladoras para suspensão de supostos pecados. Até prazer e boas intenções vinham em turbilhão confuso, como veste malfazeja; tudo por conta da descrença de momentos de genuína alegria. " Não, não poderia vir assim em minha direção dessa forma tão explícita e doadora, a alegria", ela duvidava. E tanto duvidava, que a cena se redimia tal qual pecado penitente e descrença sobrevivia, e descrença reagia como realidade.

Todas

Andava se empanturrando de palavras, gordas, magras, castas, eróticas e pornográficas. Seguia-se um regurgitar leve vez por outra, mas que não resultava vômito clássico, inundado de saliva. Por vezes, pensava que ruminava palavras e gestos traduzíveis em palavras. Queria sim mimetizar os absurdos de dizer, despudorados dos lidos inconstantes, dos lidos que causavam surpresa por fazerem cena em sua mente. Que delírio seria escrever assim teatral, cinematográfico. Fazer fade, fade in, fade out, na mente dos outros; deixá-los embasbacados, encurralados em sensações espúrias, mal cheirosas, ou até de cheiros vencidos, reprimidos. Veio-lhe de sobressalto esse sadismo, essa tortura pela palavra; dizer o inabitual, estranhar a poesia do belo com a feiura límpida, absolutamente escultural, humana.

...

É engraçado, sentir saudades e não querer matá- las...Querer fazê-las ingredientes de sonhos, não mais de ilusões...Querer fazer sonho sem ilusão, tão crente da realidade que dá pra dormir até acordado e experimentar sonho e matar saudades.

terça-feira, 15 de julho de 2014

Demora

Demora, demora um tanto. Mas a gente escreve, registra; a gente fala, grita. Demora, demora um tanto. Demora tanto que cansa tanta palavra que invade a mente e desatina a falar e escrevinhar quase por conta própria. Parece até descaso com o caso, os corações abatidos banidos de mente sã. Demora, demora um tanto. Mas a gente descobre que esperteza mesmo é calar. Demora, demora um tanto. Se chega e cala nem saberá dizer. Mas que demora, demora. Demora tanto.

segunda-feira, 14 de julho de 2014

Ecoar silêncio

Duas sabedorias: silenciar e não esperar. Não seria fácil aprendê-las, mas por força de viver e não sobreviver teria que se esforçar para tanto. Talvez o silêncio fosse mais complexo atingir do que a falta de expectativas. Esperar constante leva a um desgaste emocional e físico, a um não ser estar, que termina por apagar, enfraquecer qualquer que seja. Leva tempo aprender não esperar, mas torna-se forçoso com o passar dos anos. Tão forçoso que a leveza paira insolente, parece brisa em folha seca. Os anos trazem isso; brisa em folha seca, porque coração já palpitou, imaginação já inventou possibilidades, incontáveis cenas. Aí vem a fadiga que vira a expectativa do avesso. Agora o silêncio; esse é tão alto ou tão baixo, que assusta. A palavra pula da boca feito gafanhoto na planta, praga. A linguagem assume gesto que tem palavra. A linguagem, mesmo irrefletida, era você e eu no jogo da inconsistência, nos desentendimentos a tentar compreender. A linguagem, por certo, era tentativa de compreender. Mas silêncio não; silenciar era transcender, era reconhecer o não dito explícito, pornográfico vazio que a própria linguagem não abarca. Silenciar é constatar a dubiedade, o contraditório de tudo que se afirma, do senso comum ou incomum, menos ou mais elaborado. Silenciar é virar grito, é ecoar nas paredes orgânicas para desaperceber a materialidade em qualquer seja. Silenciar é ecoar pros ouvidos surdos, e fazer neles uma criação redimida das ideias permanentes.

sábado, 12 de julho de 2014

Sempre porque amei

É verdade que te amo e também que não te amo, não porque pensei que te amei, porque se já virou pensamento foi sentimento vivido, remoído. Se não te amo mais ainda te amo por instantes que te amei; e a lembrança permanece nos mínimos de trocar palavras, no toque delicado das mãos, na ansiedade e na descoberta do beijo. Mas é pelo sorriso que mais te amei e te desamei e, por isso, amei. Amei a graça da boca estendida cheia de dentes e a gargalhada do simples contar que vive; graças que a vida dá no cotidiano, dos afetos, dos avós, das praças proibidas. Graças das neuroses que parecem enlouquecer, mas que viram graças ainda maiores no contar; são cantos no contemplar. Graças de te ver dormindo, respirando, graças da vida que vive.

Intemporal

Dizem que amor tão grande dura é no tempo. Lisandra duvidava do tempo e nem por isso desacreditava do amor; para ela amor era intemporal, gastava o tempo de um suspiro e de uma lembrança intermitente. Amor tanto era muito mais amizade, esse amor de eternidade. A vida e o amar andavam assim sazonais, invernais e primaveris, nos tempos de alternância, hibernação e floração. Quando dormia a vida era sonho de amar; quando florescia era deslumbramento de inquietar, um respiro forte de doer coração.

quarta-feira, 9 de julho de 2014

Pontos de mutação

Compreendia lentamente que as pessoas andavam em busca de outras que fossem repletas, em busca de uma ilusão em identidade forjada, fixa, quase inerte. Esqueciam-se dos inúmeros pontos de mutação, que colocavam qualquer que seja em um vazio profundo, em um não lugar permanente. O resto eram só disfarces, personagens para alguém ver; para construírem seus contos de fada, seus contos de fatos, registros memoráveis para contar. Enquanto isso, o presente se esvaía na perda do vazio mais profundo e prolífico, onde cabiam tantos gestos e palavras dispersas, espontâneas, capazes de gerar o verdadeiro afeto, afeto livre.

Um caminho

Já havia se acostumado com os caminhos e seus pés parcialmente doloridos, vivos. E nessas ruas havia silêncio e ruído, e placas; muitas promessas comerciais e até utilitárias. No último que percorreu 'amolavam tesoura, faca e alicate de unha', vendiam 'coisas e koisas'; havia também um centro de flores. Incompatibilidades a parte, entrevia que seu olhar não as teria mirado sem propósito algum. Os objetos usados tinham recuperação, havia coisas e 'Koisas', e as folhas modificadas, a que chamam flores, preservavam a poesia.