segunda-feira, 29 de setembro de 2014

Morreu MPB

Mirou aquela sardinha gigante com cheiro de mar. Guelras absolutamente coradas, olhos brilhantes, carne firme. Olhou fixamente para o aquário do mundo, desfez redoma, fez hipnose musical. Rodou uma MPB, ignorou o rock. A sardinha coitada ficou seduzida pelos olhos vidrados e pela malandragem dos movimentos, meio samba. Foi morar em sua boca felina; pobre sardinha. Nem teve tempo de mostrar seu bebop, seu lamento blues, seu balanço Mick Jagger...

sábado, 27 de setembro de 2014

'Raskolnikov'

Sabia que era assim; uma pessoa ou algum fato seriam fatalmente responsabilizados pela erupção de suas profundezas. Ela estava assim uma Raskolnikov, só que sabia do crime e não compreendia o porquê do castigo. O certo era ultrapassar aquele rasgado do carpete do corredor e avistar o número do quarto; sete passos apenas para a linha de chegada, um alívio para os olhares indiscretos e julgamentos que ela imaginava.

sexta-feira, 26 de setembro de 2014

Culpa

A culpa do que aconteceu foi toda minha, e eu não vou me desculpar por ser eu. Vítimas são barcos no porto, perfeitamente ancorados por tempo indeterminado, ou enferrujados, carcomidos. Culpados são barcos em alto mar de velas içadas, emaranhadas ao vento. A culpa foi toda minha. Agora, da sua culpa, eu não posso saber.

Sentimentalidades

Não haveria porque desamar, porque não havia amado, e ainda assim havia o amor pressuposto, imaginado, realizado portanto. Amar não passava de uma ideia compartilhada ou imaginada, aberta aos sentidos vivos; cenas, audição, cheiros, gostos e toques; e aos sentidos esquecidos não haveria de dar importância. Sentidos esquecidos são a reta final; morte, e para quem imaginou ou viveu, eles estarão; os sentidos latentes ou florescentes na raiz da ideia amor. Tudo uma suposição na concretude dos sentidos; afinal só por eles se insurgem existências amorosas ou sonhadoras de amar. Os sentidos ilusionados também vivem, e qualquer desgosto se apaga pela lembrança do momento de sentir. Eternidade é um passo longo e nefasto; sentidos não podem se eternizar senão na imaginação; daí advém a repetição de quem abraça a ideia do amor, repetição com confeitos ou com ingredientes insuficientes; performances inovadores de sentir. O enquadramento geral repleto e descuidado; o close inundado de detalhes, apenas um fragmento. Cada filme do sentido, único. Todo filme uma especialidade; a descoberta dos ombros ou do pêlo indiscreto da sobrancelha. O cenário conhecido de tomadas já visitadas ou a locação recém descoberta, que nunca mais se verá.

segunda-feira, 22 de setembro de 2014

Na pele e no fundo

Toda gente, por certo, em algum momento da vida se pergunta sobre a existência do amor, sobre essa realidade cada vez mais parca, quase de infinito desaparecer. Por certo também alguns o cultuam e bradam em alto tom o amor que sonham, que almejam num lampejo de magia. Há outros também que subvertem os sentidos, quase os enganam em relações assépticas, formais no jeito de um rito permanente de disfarce. São faces de tantas interpretações quais sejam as que mais lhes convencem e com as quais se deparam. Certo é que há tantos mais; os divididos, os crucificados, os ilusionados, os usurpados, os esquecidos, os lembrados, os de carne viva, os de morte lenta. Mas de todos esses, e ainda dos que não são por falta de palavras, há os indiscretos; talvez os mais hábeis em forjar o significado da palavra amor. Roland Barthes disse em seus fragmentos amorosos dessa indiscrição, dessa morbidez do discurso amoroso, das peles, dos pêlos; essas vestes que escondem os músculos, os ossos e o líquido divino da vida; dessas vestes que nascem e morrem por instantes. Às mucosas, às peles molhadas Barthes não fez referência, talvez lhes resguardando a viva umidade que escapa ao olhar; ficam reservadas às secreções incontidas, espermas luzidios e inconstantes, salivações amalgamadas de visões e enganos, lágrimas de rios fumegantes tal qual crosta terrestre.

À Deriva

Estamos eternamente à deriva; o mar que nos balança é o mesmo que nos afunda; não há saídas, somente esse navegar sem fim em busca de terra alguma; um frio na barriga enquanto o mar em imensidão nos submete; de vez em quando uma ilha vestida de árvores cheias de frutos e cabanas aquecidas; em outras vezes continentes inteiros a nos sumir por dentro e por fora em um anonimato cansativo e inebriante. E o mar, sempre o mar a levar o barco que somos nós de proa hesitante, de seta equivocada e cheia de si, e vazia de si; um não saber a navegar infinito em busca de coordenadas alienadas, confirmadas em gestos fugidios, silenciadas em ilusões. Nós todos um barco à deriva quase a alcançar um pedaço de terra, uma miragem dissimulada de descoberta.

terça-feira, 2 de setembro de 2014

Deusa

A escrita vinha num fluxo irreprimível...Se não deixava correr rio, a memória não segurava as palavras que viriam; elas, as palavras se distraíam; já não eram as mesmas; os encaixes com os sentimentos e pensamentos se perdiam. O que vinha era assim impreciso, parecia um registro do passado focado no presente futuro. Assim, toda vez que se colocava em escrita, cada instante era único, irrepetível; as palavras e conexões jamais seriam encontradas novamente daquela forma, e talvez a onda psicanalítica, o deslanchar de sentimentos se contivesse nesse mesmo momento pra renascer não sei onde, de um jeito imprevisto. Por isso mesmo, impressionava a ela a capacidade da memória e sua amplitude de descrição ao sabor das particularidades do tempo; bastava um segundo e o dito já era outro e os detalhes já não eram os mesmos. Os registros, por certo, eram volúveis, embora a memória permanecesse intacta nas suas múltiplas potencialidades. Tudo está contido nela, mas só fatias são recuperadas de tempos em tempos...incompletudes...A escrita então era sempre essa parca tentativa de ser memória, a deusa memória.