quinta-feira, 30 de outubro de 2014

Tempo...

O tempo voltara a se manifestar naquele exato instante improvável. O tempo que passara voltara para avisar que estava ali em júbilo, perfeitamente assustador. Já não era a primeira vez que acontecia. Dar de frente com aquela figura adolescente, agora de cabelos de algodão naquela mesma escola em dia de pleito eleitoral; ela saindo, ele chegando. Agora ele vinha com uma miniatura sua puxada pelas mãos. Os olhos se cruzaram num reconhecer discreto, mas seguramente revelado na lembrança das outras mãos dadas na oração do pai nosso em uma missa distante qualquer. Havia também os olhos castanhos dele destacados na pele branca, reluzente; olhos castanhos adolescentes a revelar um amor imaginário. Agora era só o tempo que passara e a suposta lembrança.

quinta-feira, 23 de outubro de 2014

Soldado

Sempre fora um soldado mal aparentado, meio despenteado, sem farda e botas, com armas imaginárias; Mas sempre um soldado, embora de vestes imagináveis da mente que não discutia ou tergiversava, que apreendia o sentido da ordem, da obediência; Sempre fora um soldado pela exigência de um limite qualquer por medo insensato de virar liberdade; pavor da extremidade do prazer que esbarra no tédio desmedido; Sempre fora um soldado mal aparentado, por bem que pudesse fazer de suas boas intenções; até um dia descobrir não por absoluto, mas quase certo a maldade das boas intenções; Sempre fora um soldado mal aparentado a descaminhar entre a veste e a mente; Desmanchava a expectativa da veste, enquanto a mente em agonia; Até quis pentear os cabelos para esperar a hora marcada de qualquer compromisso; mas descobriu outras possibilidades; Quando alguém não vinha haveria outro alguém por ali em arremedo de distração para organizar a ordem aparentemente desfeita. Sempre fora um soldado mal aparentado a tentar sumir com os relógios em vão, sempre na busca desse tempo irreal que some qualquer ponteiro das vestes de viver.

quarta-feira, 15 de outubro de 2014

Sesmarias

Houve um tempo de descobrimento, quando tudo respirava tropical naquela terra de ninguém. Ar quente temperado de torrentes de água; clorofilas de toda cor. Não havia instituições formalizadas, senão aquelas conquistas do dia a dia, o colher que a terra dá, o colher que o alguém planta, as hierarquias consentidas pela sabedoria que a vida leva, do natural que a vida oferece e que gasta o tempo do processo, o tempo da natureza. De repente, aportaram caravelas, naus indiscretas a perguntar sobre o destino das roupas e a duvidar da limpidez do espelho de rio. Quem era rei sem coroa virou alienígena, indígena. Vieram brancos de corpos bem vestidos, oprimidos pelo inverno, deslumbrados com as partes pudendas expostas, o arrepio do vento e os ouros da terra, paus e minerais e cafezais. Começaram então a provinciar tudo, sesmariar a terra, agora de alguéns; o início da fidalguia, oligarquia. Se antes era desmando, banho de rio; agora eram perfumes e laçarotes ao pescoço e pés em solado. Depois vieram uns quaisquer de pele escura pra suportar o escuro dos porões que navegam, dos porões feitorias do branco bem comportado para esvaziar riqueza da terra. Fizeram de todos eles, alienígenas, ocres e escuros, alguma mistura pra dar nome a um tipo qualquer, habitante feito de história perdida. Fez-se então a história de uma terra dividida enorme para alguém imperializar, domesticar. Os anos se passaram e as sesmarias viraram desenho no mapa, compridas, estreitas, largas e finas; enquanto alguns borrões ao norte, mais mato e sertão, sobraram sem nome e diligências. Ainda sobrariam alguns ninguéns a serem recuperados. Por oportuno, os das naus trouxeram anchietas e também atravessadores da riqueza que não se continha. Depois fazendearam tudo, comoditaram o que de comer, sobreviver. Coronelizaram as almas, afastaram os ninguéns da sua cor ocre. As ocas agora viriam enfileiradas, lineares na horizontal e na vertical. A terra de ninguém ficara moderna, com fumaças envaidecidas a sumir antiguidades mobiliárias, enquanto os núcleos se multiplicavam em acordos bem apropriados para não dividir a terra. Hoje, a terra graça a mesma divisão, que se saiba; colonizador e colonizado, rico e pobre; tudo por conta das doações sem lastro fato. ‘Achei, pego e divido como quero, ou não divido, faço onda, discurso raso; peguei, está tomado.’ Hierarquias forjadas na força do leite que falta, do café que sobra, da mente iletrada, desatinada, arremessada no circo, picadeiro de caras em bocas, de gestos acuados, de olhos enraivecidos; tudo pela sesmaria. Fosse possível descolonizar e toda terra voltasse a ser de ninguém, alienígena indígena poderia voltar misturado até com naus em cidadela da memória, talvez nômade, ou à beira de um rio sem que ele fosse secar. A terra daria de tudo para quem quisesse aportar sem sesmariar.

sábado, 11 de outubro de 2014

Grito

Decididamente não era um bom vivã. Esquecera-se de deixar de remoer fatos que agora só restavam na memória. Não havia repercussão alguma deles, senão as reprimendas que fazia a si próprio por ter figurado naquele cenário de circo; as silhuetas flutuantes, as palavras amáveis, os rostos curiosos, a bebida na medida do sonho. Agora adentrava seu quarto a avistara pela entrada do banheiro aqueles ladrilhos de parede. As mulheres se repetiam com sombras e traços indeterminados; retratos nos ladrilhos. Cada uma delas, uma boca em grito; um só olho e nada de narinas. A visão era baça, assimétrica, metades irreconhecíveis de qualquer coisa. O cheiros sumiam até dos perfumes. Por certo teriam perdido o nasal naqueles sucessivos espirros. A boca gritava fundo pra dentro, pra fora; e o grito não saía dos ladrilhos, sufocava.

sexta-feira, 10 de outubro de 2014

Arte na velhice

Por certo a infância tinha lá sua graça, as brincadeiras de fazer arte sem saber arte. Mas na velhice com arte, os cabelos brancos, as cartilagens desgastadas, os dentes postiços, são mais infância ainda em fazer arte, uma demência inovadora por consequência do tempo inconsequente, absolutamente abstrato em dissonância com o aspecto físico em deterioração, ressonância de ainda estar vivo pela arte. Há um vício qualquer neste caso da velhice com arte, uma forma de desmerecer a morte; quase um lugar de estar sempre a brincar pela arte. Velho que faz arte se faz criança com arte.