segunda-feira, 30 de março de 2015

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Um dia perguntaram a ela o porquê de sua preferência pelos animais não humanos. Ela pensou bem e tentou com muita força duvidar de si mesma. Voltou ao animal do próprio humano, tentando nele encontrar as mesmas virtudes dos não humanos em vão. O animal no humano vinha com face endurecida, quase somente em momentos de fuga e defesa. A face espontânea, lúdica, ou até mesmo nas essencialidades; no alimentar, no reproduzir, no descansar e levantar, escapavam do humano. As pessoas estavam sempre em busca dos manuais porque desentendiam de tudo o que nelas lembrava instinto. Envergonhavam-se daquele esticar do corpo fora das academias; dedicavam-se exclusivamente aos bocejos em momentos de absoluta fadiga e tédio. O corpo ia endurecendo, enguiçando antes do tempo. Fatalmente a última recomendação seria o repouso. A falta de estímulos naturais do dia a dia enterrava o humano em um torpor quebradiço por falta de minerais, falta de essencialidades e brincadeiras. O humano se esquecia do código, das possibilidades marcadas; orgânicas. Nunca mais se lembrava, fingia que era máquina até obsolescer em si mesmo.

Inércia

Era certo que os animais e as máquinas tendiam à inércia, fosse em repouso, fosse em movimento. O desafio era encontrar o ponto de desatinar e o ponto de descansar em tempos de sensatez. O problema é que os pontos andavam sempre fronteiriços e havia guerra até o desenlace final. Ou morria - se em inércia consensual ou na euforia de não parar até o esgotamento. Guerra inglória.

quinta-feira, 26 de março de 2015

Cegueira

Nunca pensara que estivesse acima de qualquer suspeita. A própria palavra suspeita já remetia a essa suspensão, esse incerto de ser, ainda que se esforçasse em direção a uma conduta minimamente amigável, gentil. E tudo eram apenas instantes; uma virada de torso, de um olhar, e a oportunidade da gentileza escapara. Ou seria responsabilidade, responsabilidade pelo outro? Não fora intencional aquela ausência de gesto, senão uma distração perversa que sempre a tomava; pensamentos. Pra completar veio aquela bengala tecnológica a perscrutar aquela rua e os óculos meio cibernéticos. Ela jurara que o cego tinha algum apoio que fosse mais do que ela por ínfimos segundos, até que chegou alguém mais sensato e se dignou a atravessá-lo nos moldes analógicos. Ela então fizera parte da cena e saíra com o coração meio apertado pela falta de prontidão; gentileza.

terça-feira, 24 de março de 2015

Portugueses

Sempre me pergunto por que me encantam os poetas portugueses. Pois bem; eles falam de um sentimento intenso de amar, um transbordamento acidental que faz nascer flores. Eles falam também da intensidade da morte em nós, do vazio que nos recobre a despeito de todas as possibilidades de preenchimento. Eles revelam encanto e desolação, a quase exata medida de ser e não ser.

segunda-feira, 23 de março de 2015

Mineral

Um desejo mineral a perseguia desde tempos imemoriais. Havia um linguista russo que dizia sobre esse desejo humano fatalmente expresso no seu linguajar, no seu agir. Talvez uma necessidade de permanência mais duradoura jogasse o humano nessa vontade inaudita; desejo, pensava.Voltava-se pois a sua aparente forma orgânica, aos tecidos epiteliais que a abandonavam diariamente, e para os quais não havia garantia de substituto à altura. Restavam sucessos, insucessos e mutações favoráveis e desfavoráveis. Enquanto isso, estava lá o mineral absoluto, gasto ao longo tempo, com uma organização estável, tão apropriado para as investidas da arqueologia, das datações. Agora a investida na organicidade era abismal, um buraco sem fundo repleto de camadas justapostas em permanente mutação. Então esse desejo mineral devia ser sinal do medo do precipício que sempre a perseguia.

quinta-feira, 12 de março de 2015

Pequeno comentário sobre a arte...

Quando miramos a arte, ou vemos arte no que parece não ser arte, fazemos um deslocamento criativo, avançamos em direção a possibilidades aparentemente discretas ou até inexistentes. A realidade tem um peso que cega, que emudece e provoca surdez quando vista na sua forma pura, um passante desavisado. A arte vai na contramão; ela potencializa os sentidos absurdamente, preenche um vazio temporal. É como se estivéssemos aprumados sobre o mar.

Os outros

Certificava-se lentamente de que quanto mais se isolava, mas o mundo a jogava em direção às pessoas para confrontá-la com o seu estúpido sentimento de suficiência. Não fazia por mal, senão por um jeito de evitar conflitos. Só que agora precisava dos outros para desembaraçar seus caminhos tortos, muitos por contingência, outros por inexperiência; alguns por completa ignorância e submissão. Restava-lhe, ou melhor, sobrava-lhe a convicção de que o outro é uma necessidade permanente, imanente. E a vida se compunha dessa soma inevitável.

Tiro

Só a ação faz mesmo sentido. A palavra é só o tiro que marca o início da ação. Tem ação que nem tem palavra. Sempre teimei na palavração, na fé ingênua de fazer com palavra um mundo ideal. Não há ideais, senão ações que traduzimos em ideais. No papel, na tela; tudo somente um esboço, o tiro! Resta saber quem vai começar a correr!

quarta-feira, 11 de março de 2015

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A vida é lutar sim contra o hereditário, contra esse atavismo uterino imemorial, fincado lá no código genético antepassado que forja os preconceitos de toda espécie, as formas de dominação inciais e consolidadas, o submisso inaudito, consentido por puro acanhamento e até estranhamento. Estranho é tudo o que coage e cala.

Repete

A vida se repete no pequeno traço do passado; naquele perfil há tempos registrado e no alcance enviesado das aproximações que se fizeram distantes. A vida se repete no mesmo chão de encanto que depois vira desencanto; e é custoso compreender esse ponto de mutação de rumo desconhecido, esse foi não ido, essa máscara de segredo, antes limpa, de tão limpa informe, bela na imperfeição. De repente vem a rudeza do gesto que cumprimenta o antes nunca visto, e segue os passos, e segue o chão, e outros ainda passarão sem gesto algum ou emissão de som. E a vida se repete com suas fitas protéicas a dançar em mistura, empírica e modesta, enquanto a morte não vem.

sábado, 7 de março de 2015

Antes

Primeiro não veio a palavra. Veio o gesto, veio o som. Palavra é coisa que se usa para compensar o seu próprio desuso; dificilmente cabe bem, ora até cabe por força das circunstâncias, da emoção. Em outras, soa falsa, malidicente, inapropriada. Primeiro não veio a palavra. Aliás, não se sabe o que veio primeiro, quando muito, sabe-se o que veio antes.

quinta-feira, 5 de março de 2015

Enigmas

Toda vez que teimamos em fazer combinação de palavras estamos querendo é ser reconhecidos, ser devassados por dentro e por fora, como uma coleção de escrituras mágicas, repletas de fórmulas que traduzem ou obstruem o entendimento sobre nós mesmos. Combinação de palavras só é dada para quem nos lê e ousa perceber ou incompreender. Uns nunca saberão sobre nós, escritos encantados. Outros terão a ousadia, aventurar-se-ão nesse caminho de desencontro e tentação.

quarta-feira, 4 de março de 2015

eu você

Porque eu estou lá é dentro de você, naquele lugar obscuro em que você formulou minha personalidade e minha total ausência de persona. Foi lá, dentro de você que tudo se deu; na imagem que invadiu seus olhos, no cheiro ainda que insuspeito, nas minhas palavras cheias de contradição e certezas mancas. Foi lá, dentro de você que eu surgi em devaneio real, perfeitamente atinada aos seus meandros, aos seus escândalos e contenções. Eu ficarei sempre lá, dentro de você do jeito meu que na realidade é seu.

Sombra

Ninguém está livre da sua própria sombra; indiscreta ela se põe em qualquer ritmo que seja; pára, anda, corre, freia,desatina; é tal e qual, de limites precisos e repleta de si mesma numa fusão irrefreável; esse duplo que nos chama atenção para os múltiplos de nós em nós.