quarta-feira, 31 de maio de 2017

cidadela

Mortal! Não havia melhor palavra para descrever aqueles domingos de inverno na cidadela. Até o recepcionista da paragem concordara; 'não há palavra mais adequada'. Depois do vinho e da massa quente, um certo rubor interno, acalento de instantes. E os cafés? ! Deveriam decretar expressamente; 'não podem fechar em dias de inverno'. Pois a pena de tê - los fechados era condenar os estrangeiros à total insignificância. Eles mereciam pelo menos a visão reconfortante da fumaça da cozinha e o cheiro do café pra resistirem aos invernos da cidadela.

terça-feira, 30 de maio de 2017

Amor

Por incerto que fosse, sabia e dessabia da palavra amor...Por isso, achava que amava imenso, muito além da palavra. ..Era o céu e as pontas de árvores feito pássaros. ..tudo era mutável. ..cada hora numa visão de olhos em arrebol. ..Pra ela amor era assim; a surpresa do arrebol...

quinta-feira, 18 de maio de 2017

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Nunca soubera diferenciar muito bem os animais humanos racionais dos outros ditos irracionais. Simplesmente porque achava os ditos irracionais sempre coerentes com seus anseios e deliberadamente sinceros. Por vezes via esses ditos racionais em turba a manifestar a mais pura selvageria; idolatram deuses, dinheiro, poder ou qualquer objeto que se lhes dê prazer. Os outros irracionais são o próprio prazer, são indivisos com a natureza e absolutamente personificados. Quem são os racionais?!

Escarlate

Sonhara com uma névoa escarlate, morna a flutuar em seu entorno, corpo. Uma ambiência quase sonora a beirar silêncio, medrosa de importunar o enlace suave, toque de nuvem. A névoa carregava, embalava, faiscava sem incendiar; vela cumprindo pedido. Era como uma oração sinuosa, um rito pagão santificado, exorcismos de sentir; a névoa morna; abraço escarlate.

gente

A gente é coisa que não se entende mesmo; a gente se sente, não se entende; e a gente que se sente, sente parte, um naco no aparato incerto de ser; porque gente é toda gente, é seres; e a gente é só uma gente nesse mar de gente que se sente.

Pessoas e coisas

A pensar sobre pessoas e coisas; esses dois entes distantes e tão próximos porque intercambiáveis. Pois que é tão comum coisificar pessoas e personificar objetos. Ora veja, o objeto que tem história; até mesmo um carro, símbolo mais alto da indústria do consumo pode carregar em si a lembrança de viagens ou mesmo a ternura das paisagens. E das pessoas que as contemplaram.Pode guardar ainda a repetição do cotidiano, essa realidade que nos consome, e que nos constrói de certa forma. Há ainda aqueles objetos parcos de histórias, mas que vieram de uma mão amiga, ou que guardam apenas uma história, uma lembrança eterna na memória; um livro de história ou um pequeno objeto de afeto. Agora o tudo coisificado, usado e desfixado da memória é de uma brutalidade sem medida.É condenar o ser humano e o objeto carente de história à morte de não ser. É a própria incapacidade do homem de se auto gerar e se fixar como matéria de poesia, a única fonte próxima do sentido mais encantador e desafiador da vida. É nos guardados de memória, é nos pequenos museus de cada um; mesmo com suas traças e poeiras, que está o homem ser e seus objetos personificados.

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Há que se resistir aos pavores da distância para se encantar com os prazeres da proximidade; há que se resistir e submergir em rio negro e fundo para reaparecer em nudez; há que se dizer infinidades de silêncios e fazer zumbido de ventania em ouvidos surdos de linguagem desdita para acalentar a palavra amor; há talvez que amar para fazer dança de pálpebras em olhos de brilho sol, de onda mar; amar e ir e voltar constante na repetição ressabiada, loucura de repetir em potência sem fim de descoberta; vai e vem de ave no ar e o pouso sonho esquecido e lembrado; há que se misturar esses mistérios revividos a exaustão; há que se desejar amar como sem saber e saber sem sentidos lógicos; há apenas que sentir, deixar anuviar e clarear, clarear e anuviar as íris retintas; quadros de paisagem aconchego, colo lar, amar nunca caberá; há que se mergulhar para amar.

Mundos distantes da realidade

...antes que enlouqueça, antes que pesadelos tomem conta da sua mente e do seu corpo, saia por aí sem rumo que seja, vá passear em mundos distantes do sonho e da realidade; somos expansão e o abismo do buraco negro; somos o que não sabemos, embora queiram essas identidades parcas e bem delimitadas encerradas em nós...e nós enterrados, abismados e abismais...

Fatalidade

Estivera a pensar meio 'rosianamente' sobre a fatalidade da vida. Por mais que se esgueirasse estava lá a fatalidade. É que fatalidade não é acidente mesmo, é como coisa agendada, anunciada, mesmo com atraso no tempo. É o fatal rosiano, róseo, inflamado até irem-se as pétalas...Bom era que depois de todo fatal vinha um vento presságio, como uma sabedoria de perceber esse fatal; fatal bom ou ruim; perceber nas entrelinhas do dia a dia a poesia da realidade e a mera ficção. Sim, era isso; pressentir os personagens inventados pra esconder o fatal. De qualquer forma, era assim em agonia que ficara, ainda que descrente a pedir ao alheio divino 'jesus amado' uma proteção pra prever a fatalidade.

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O controle social se alicerça basicamente sobre duas condições: a existência das leis formais e informais. Além da norma contratual ou tácita há o desejo que escapa às nomenclaturas. Mas o homem como ser de palavra, afasta-se do desejo irracional, prende - se aos nomes das coisas e vira coisa, categoria. Aí se encontra e se perde.

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O que aconteceu com a psicodelia? Que elixir de loucura sã tomaram os psicodélicos? Tantos que foram nesses mares de sonhos, e hoje só cabines de navios, nada de velas...

Danação

A gente estava falando de música, e enquanto a música tocava, de xote baião, veio raul, chico e a menina da pele preta de olhos azuis. A gente pensava em fazer música, mas ela já estava ali, pés sincopados, do ritmo querendo encontrar poesia a flertar com a melodia.Ela estava em todo lugar, já feita a danada da música, uma danação de todo lugar, trilha em ação...ela já estava em todo lugar, trilha em ação, uma danação....

Especulações de Eduardo Coutinho

Pois que deus não é mesmo o homem que morreu?! Disse a menina ; e rezava o pai nosso início, meio e fim conforme todos nós; todos a rezar pelo homem que foi lá pro céu, como diz a oração; vivemos mesmo é de dizer, de desdizer também...agora o dito redito fica tão mais dito, desmedido, ladainhas de viver e conviver...

O homem das pedras

Foi-se o homem das pedras....Sim, Todorov sempre foi pra mim o homem das pedras. O conhecido linguista estruturalista ,que analisou os formalistas russos, não passara pra mim de um homem das pedras. Ele dizia sobre o desejo mineral do homem, desejo de ser pedra. Poucas vezes na vida tive tamanha sensação de clarividência; o tal desejo mineral, a solidez desmanchada a custo pelas forças da natureza, e o fatal retorno à terra, sem apodrecimentos; uma deterioração lenta amiga do tempo, suficiente pra condensar e expelir energias, suficiente para construir sabedoria. Pedra...confesso aqui meu desejo mineral, esquelético descarnado das futilidades do mundo. Confesso meu desejo mineral, densidade e silêncio, paralisia pensante a passar por tudo e permanecer, terra. Confesso meu desejo mineral...

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Há tempos ela questionava o porquê dos seus interesses tão variados, possivelmente divergentes. Tomava-a uma angústia irreprimível de passar por tantos lugares em tempos diminutos, como o da hora e o do dia. No ano então, perdia-se completamente sob o constrangimento da memória perdida, das palavras, dos nomes, das cores, dos sons e dos cheiros; tantos eram os caminhos de destinos provisórios. Sim, eram provisórios porque se metiam a entrar uns pelos outros em forma de fronteira eterna; da mesma forma que se encontravam e se identificavam, sumiam-se os destinos e se faziam pontos de largada, recomeços incessantes.

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Toda vez que teimamos em fazer combinação de palavras estamos querendo é ser reconhecidos, ser devassados por dentro e por fora, como uma coleção de escrituras mágicas, repletas de fórmulas que traduzem ou obstruem o entendimento sobre nós mesmos. Combinação de palavras só é dada para quem nos lê e ousa perceber ou incompreender. Uns nunca saberão sobre nós, escritos encantados. Outros terão a ousadia, aventurar-se-ão nesse caminho de desencontro e tentação.

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Primeiro não veio a palavra. Veio o gesto, veio o som. Palavra é coisa que se usa para compensar o seu próprio desuso; dificilmente cabe bem, ora até cabe por força das circunstâncias, da emoção. Em outras, soa falsa, malidicente, inapropriada. Primeiro não veio a palavra. Aliás, não se sabe o que veio primeiro, quando muito, sabe-se o que veio antes.

mar ilha, ilha mar

Pois então, o mundo e suas 'coisas' não são todos representantes em oposição? Não existem por oposição?! Os mundos e os desmundos; as coisas e as não coisas. A saber; não coisas podem ser sentimentos, imaterialidades quaisquer, essas coisas que nos estranham, atormentam e encantam?! Pois então; não é que outro dia ela sonhara que o mar é que era a ilha?! Sim, estava ele ali todo azul e denso de ondas medianas a conversar com terras em volta. Ele, de fato, não queria assaltar as terras de susto. Enquanto isso, ela nadava e se debatia dentro do azul, essa fluidez imensa. Restrito feito uma uma ilha, o mar cercado de terra. Era pois o aquoso quase terra, a partir de onde não se navegava. Então, possível talvez fosse navegar na terra?! Ora, é que mar e terra nem são tão distantes assim, opõem-se por pura convenção, necessidades práticas da racionalidade. O mar dela se fez terra, ao nadar não se desgrudava como se fosse árvore fincada! Queria então desesperadamente navegar na terra. Ironias! É como desmundos; por vezes é o mundo distante mais próximo, o mundo de cada um. E as não coisas! Ah, as não coisas, que belas coisas. Pode-se com elas fazer um mundo, são geratrizes. Pois então, nem há mais oposição! Meras muletas da razão!

Viagens

Há três tipos de viagem; aquelas em que excursionamos por lugares desconhecidos delimitados nos mapas, aquelas em que nos embrenhamos por nossos pensamentos ao ponto de chegarmos a lugares até inesperados, e a mais aventureira de todas; o sonho. Há quem diga sonhar acordado, mas aí é uma estratégia de pensamento. A viagem sonho mesmo não goza da racionalidade, pois que é da ordem do desejo ainda que inconsciente. Aqui não há limites afetos à realidade e sim o espaço fluido, as inversões, as contaminações de toda ordem; nada de assepcias. Ora, não era que ela sonhara assim com aquela figura aparentemente distante?! Pois que estavam os dois frente a frente em um encontro não marcado, distância de menos de meio metro, assentados frente a frente a dizer do quanto tempo...Ela tocou levemente a face dele, ao que ele registrou no ato saber que ela faria aquilo. O sonho era pois a constatação da expectativa imaginada do outro, a dizer dela, espelhada nele, e o que ficou na verdade foi simplesmente a sensação real provocada pelo toque no sonho; os dedos por sobre aquele rosto barbado. Em seguida, o beijo roubado ao lado da boca, tão próximo, que o registro poderia ser outro; uma prova inconfessável de um desejo avassalador. Mas não, apenas um beijo torto, enviesado, desejado, mas mal dado. Agora o mais surpreendente veio abaixo dos pés; aqueles felinos comprimidos sobre o piso incorreto em sobressalto.Quase dezena deles, aparentemente reais, até que já eram uma ninhada e sua mãe, até que começavam a virar figuras multicoloridas com rabos a pavão, jubas em leque. A realidade sumiu no sonho, perdeu totalmente a assepcia do real, o esperado da forma. Fez-se o sonho enfim; uma aventura inesperada. Seriam os felinos o desviar da incongruência daquele encontro irreal?! Seriam eles a verdadeira realidade da mente dela? A fantasia daquilo que subverte o real e, por fim, muito mais concreto na profundidade do olhar, a invenção do olhar? O encontro preto e branco a ganhar cor felina em efeitos surreais? Não à toa pode-se confundir sonho e arte; ambos sem as assepcias da realidade.

Mágoa

Tem gente que magoa a poesia. Ela cerca, dá volteio, sobrevoa; não tem jeito. Tem gente que magoa. Poetar reserva a mágoa do nunca lembrado, pássaro ido.Tem gente que acolhe poesia, faz graça pra ela; sopro de beijo mesmo sem beijar. Poetar também reserva contentamento, alento. Poesia é apenas o tempo; deixa entrar ou deixa passar.

Pensamentos

O prazer não é um abismo ou um encontro assentado nos aparatos da fisiologia. A ciência peca toda vez que tenta fazer esse enquadramento preciso. É fora do quadro que mora a fruição, o prazer estético. O gozo está no pensamento, apenas nas idéias prévias que vão compor qualquer cena. O prazer é pensamento potencializado pelos sentidos e fisiologia.

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...nesse circo desinteressante em que encenamos não quisera estar, mas no circo malabarismos, palhaços, brincadeiras sem fim em pernas de pau para alcançar o céu...

Inutilidades

Amava a utilidade das inutilidades; buscava-as todas a palpadelas, miradas, fungadas, saboreadas. Ouvia-as. Que paraíso instantâneo provocavam, avivavam e extasiavam. Ah! Inutilidades todas; quanta utilidade, quanta pessoalidade e adesão, tesão!

Sem fim

Toda vez que se punha a pensar naquela amizade sem fim, transbordava em tempestade. A palavra vinha oca, num vácuo de imprecisões de um amor que não se consolidava, mas explodia. Teimavam em dizer que ela era sua mãe, mas essa palavra não cabia nos máximos de sentir. A cada dia uma nova raiz crescia em seus pés, mas a ponto de se fixarem, rompiam a terra seca no incentivo de liberdade que aquela amizade inspirava. Toda proteção era apenas o desejo de libertar em alegria. Era além do tempo aquela amizade. O amor maior.

Gigantes

Estivera a pensar na utopia dos ouvidos; algo como um mundo fantástico de ouvidos gigantes para absorver todas as falas na infinidade dos detalhes, na sutileza, no perdão das incongruências; mas aí estaríamos todos mudos ávidos por ouvir o não dizer do outro; só ouvidos seríamos. Quanta gentileza nesse silêncio de ouvidos gigantes, quanto espaço para gesticular e abraçar e beijar e dar as mãos.

Deuses Pan

Somos todos deuses Pan, rodeados de pandemônios, pândegas, pandemias. Cabeças de homens com instinto ruminante, de pensar que não se acaba, com adornos córneos insistentes de histórias que escapam. Somos todos deuses pan, de pés laminados inflamados a caminhar por descaminhos em busca de anestesia. E os pelos que nos nascem em espessura e tamanho são essa mesma lembrança epitelial dos tempos ancestrais pan, que nos sobrepujam para esse contemporâneo fadigado de pensamento, loucos para correr pelos campos em desatino e encontrar, e tocar a flauta mágica num lamento de ironia e libertação.