sexta-feira, 10 de dezembro de 2010

Casabarco

Ela sonhara que morava numa casabarco, e nesse navegar sem fim em oceano, sem porto qualquer, ela se perdia e se encontrava apenas por instantes. Eram tão insolentes, porém, esses momentos, tão absurdamente graves, que nela ficavam marcas de encontros e desencontros, tão precisos e precisados. E se o mar avançava por terra ou cruzava um rio a beirar o continente, ela de súbito pressentia uma idéia vaga qualquer de solo firme, estranhamente movediço, cheio de angústia. E a sensação de tanta prisão por ficar, aportar, fazia com que ela volvesse o leme pra no mar ficar. E a casabarco já era parte dela, exatamente por não ser casa, apenas barco intruso na imensidão, enquanto seu corpo era corpo que passou, como o barco passou. Sua casa se fingia de barco, ela se fingia de navegante, enquanto toda fluidez por si passava, toda fluidez de si escapava e caía no mar. Então ela era mar, era amar cada vaivém pra se aprumar.

quinta-feira, 2 de dezembro de 2010

Quisera

Quisera escrever um texto de fôlego. Quisera construir uma história em que os personagens caíssem feito estrelas cadentes na trama de infinitos nós. Quisera imaginar todos os possíveis fatos, até os inimagináveis, e fazer deles matéria prima de enredo, sem arremedos, sem medos. E colocar em cada fato o personagem mais embrenhado, cúmplice sem restrições, e que por pensamentos e atos se fizesse tão humano, frágil e forte, sempre no entrelugar, na oscilação, na contradição inerente ao viver. Quisera fazer um longo texto que coubesse a prosa e a poesia, todas suas fusões e incongruências, até vir o real, até beirar a irrealidade. Quisera conduzir o leitor nesse caminho sem volta, nessas vidas cheias de voltas, até vir o começo, até chegar o fim. Quisera escrever um texto de fôlego. Que fosse longo o suficiente para cobrir dias e noites de dedicação por puro envolvimento voluntário. Mas que fosse na medida oposta a qualquer monotonia, senão àquela que viesse no momento exato, que monotonia é parte natural de qualquer movimento que se espere mais extenso, prolongado. Quisera ter essa respiração profunda a inspirar todos os poros, a inundar todos os vasos, a exalar perfumes doces e ácidos. Quisera, quisera tanto, que ansiava não fechar qualquer texto, qualquer vida grudada nele, e deixar uma reticência depois de conclusões inconclusas, diálogos intermináveis a germinar na alma do leitor.