quarta-feira, 28 de outubro de 2009

'O Leitor'; sobre Literatura e Liberdade

A narrativa do relacionamento entre pessoas de gerações diferentes, que se aproximam e se distanciam durante a vida pelas contingências pessoais, sociais e políticas de uma Alemanha marcada pelo nazismo, mas que permanecem de certa forma unidas pelo amor à literatura e a tudo o que ela remete. O autor alemão Bernhard Schlink, em ‘O leitor’, conta a história do envolvimento do estudante Michael, de 15 anos, com Hanna, de 36 anos, logo após a Segunda Guerra Mundial. Por alguns meses eles têm encontros amorosos, durante os quais Michael lê para ela autores clássicos da literatura como Tolstói, Dieckens e Goethe. Até que Hanna desaparece e os dois se reencontram em um julgamento, em que muitas revelações vêm à tona. Ele, estudante de direito; ela, acusada.

Também um metatexto sobre a leitura e literatura, o livro de Schlink não tem a pretensão de ser um tratado sobre as características de um leitor e nem tão pouco sobre as expectativas do escritor sobre o leitor, senão chamar atenção para as mazelas e frustrações engendradas no regime totalitário racista e as implicações psicológicas na sociedade. A história e os personagens são conduzidos sem exageros panfletários, mas de forma suave e contundente, quase como um segredo que o desenrolar dos fatos desvenda de forma irremediável. Escrito em primeira pessoa, por meio do olhar do ‘menino’ Michael, o texto apresenta frases curtas, o que encerra o dizer reprimido das vozes ainda caladas pelo regime nazista. As descrições são, por vezes, resumidas, outras, detalhadas, ao sabor das ânsias e contemplações do narrador; “o prédio antigo tinha a mesma altura e quatro andares, um piso de blocos de arenito afiados como diamantes no térreo e três andares superiores de paredes atijoladas com arcadas de arenito, varandas e janelas gradeadas.”

Os diálogos mínimos, à despeito da discussão sobre intencionalidade do autor, terminam por esconder o que vai fundo na alma, as vergonhas, que em instantes aparecem como um afago ou uma violência exagerados; “Ela tinha nas mãos o cinto fino de couro com o qual prendia o vestido na cintura, deu um passo para trás e o lançou no meu rosto. Meu lábio estalou, e senti o gosto de sangue. Não doeu. Fiquei terrivelmente chocado. Ela pegou o cinto de novo. Mas não voltou a bater.” Contudo, algumas passagens demonstram uma poesia desconcertante como; “Quando ela estava adormecida sobre mim, a serra calava no pátio, o melro cantava, e das cores das coisas na cozinha só restavam tons acinzentados mais claros ou mais escuros, e eu era completamente feliz”, e os protagonistas se revestem de uma verdade crua, da impossibilidade de estarem juntos; “Hanna como doença. Envergonhei-me. Mas falar à vontade de Hanna é que eu não podia”, e da dúvida; “O verão foi o vôo planado de nosso amor, ou muito mais do meu amor por Hanna; sobre seu amor por mim eu não sei nada.”

‘O leitor’, fala de vida, da descoberta do amor e do sexo; fala de morte, morte em vida, vida em morte, e literatura. O leitor Michael é alguém que apresenta os mundos para outro alguém, Hanna, e que a deixa livre para fazer sua própria leitura, desobrigada, distante da realidade vivenciada, mas vivida no ato da leitura; “Ela gostava dos poemas entremeados. Gostava dos disfarces, dos enganos, das confusões em que o herói se envolvia na Itália. Ao mesmo tempo implicava com ele por ser um velhaco, não se responsabilizar por nada, não conseguir nada e nem querer conseguir. Ficava arrebatada e, horas depois que eu tinha parado de ler, ainda podia vir com perguntas.” Já Hanna é a mulher sem pudores, o colo de mãe, o acalento; é também a representação da força, de uma transformação, de como a oportunidade pode ser aproveitada em toda sua plenitude; “Era visível a resistência que Hanna precisou superar para transformar as linhas de tinha em letras e compor com as letras as palavras. A mão da criança tende a se desviar aqui e ali, precisando ser mantida no percurso da escrita. A mão de Hanna não tendia a lugar algum, precisando ser obrigada a seguir adiante.” Os dois protagonistas são leitores com seus pontos de vista, suas vivências, são livres naqueles momentos.

A obra de Schlink é um despertar para a discussão sobre os conceitos pré-concebidos, para as exclusões injustas, mas é também ode ao amor, ao amor que une as pessoas com motivação óbvia, quase irrefreável da atração física, mas de um amor maior, que sobrevive por aquilo que o outro tem a dar, a ensinar, o motivo maior da troca e da solidariedade. Mas é, sobretudo, um livro de exaltação à literatura e à descoberta da leitura e ao mundo novo que ela desnuda a cada momento, no reconhecer de si próprio e dos outros, na compreensão das diferenças marcadas nas pessoas pelo tempo, pelos lugares e até nas incompreensões, daquilo que não se explica.



terça-feira, 13 de outubro de 2009

Sinos sem dobres

Por sobre a rua estendiam-se as campânulas dos sinos sem dobre. A rua era pequena e as casas vinham uma a uma num ritmo lento até que os olhos se esgueiravam na busca de horizonte maior e ele não vinha. Não se sabe por que as badaladas já há cem anos não soavam mais, senão pela morte do último sineiro, que despencara lá do alto. E assim, todos choravam as mortes e comemoravam os nascimentos da vila ao som da Ave Maria ou do Pai Nosso entoado na próxima missa pelas vozes de ladainha, o que se ouvia até o fim da rua. Dos sobrados os rostos, de face lúgubre e festiva, não ousavam ultrapassar os batentes das janelas. Às vezes interpunham-se somente as pontas dos narizes mais compridos ou mesmo se insinuavam alguns fios de cabelo em dias de ventania. Não se sabe por que, cessadas as badaladas, o povo ganhou conformação intimidada diante de tudo e o movimento ficou também silencioso. Começaram todos a ver de forma descomedida e se assustar ao menor barulho por falta dos dobres dos sinos. E cada vez que alguém se pronunciava em alta voz, os ouvidos pareciam doer, como se estivessem submetidos aos mais elevados dobres, de quem está com as campânulas feito chapéu, por sobre as cabeças. Dizia-se que o coração delas batia em disparada a qualquer som que não fosse das rezas na igreja, e que antes do cessar das badaladas, eram todos mais calmos. Havia alguns que se colocavam de joelhos na escadaria dos sinos e que lacrimejavam na lembrança da magia dos dobres que anunciavam alegria e tristeza, depois alegria de novo, de modo que a cada tristeza seguia-se uma alegria e se a alegria vinha, a tristeza era recebida com resignação de quem já foi agraciado com momentos felizes. Morrer o dobre dos sinos foi como morrer a anunciação da vida e da morte, do destino e do recomeço na vila.

sexta-feira, 9 de outubro de 2009

Pedra

Pedra não quisera ser
Pedra só pudera ser
Posto que de tantas pontas de pés
Rolou e parou
E rolou e parou

Resolveu querer ser pedra
Sem pulmões que respirar
E dedos que buscar
E nesse estado de minério
Foi obra inabalável
Sem vertigens de amor e de dor

Pedra não quisera ser
E mesmo assim paralisou
E nunca mais falou
Sob pena de não ter ouvidos que ouvi-la
Deu um último grito e petrificou

E nesse estado mineral
Foi plenitude geológica
Amou a chuva
O sol
O vento

Na dureza do seu esplendor
Foi um adorno de sentimentos
Abortou pedaços e farelos
E sobrou
E rolou
E parou
E foi pedra que passou

quinta-feira, 8 de outubro de 2009

Penitente

Ela não gostaria que a acusassem de crime ambiental, nem tão pouco que pensassem dela uma enormidade de descaso com as coisas belas e providenciais da natureza. Mas sentia dentro de si uma predisposição para o homicídio, não de gente, que isso ela nunca pensou, salvo, é claro, quando sabia de um tarado molestador de crianças e mulheres. Pensava em assassinar um pé de pitanga e a imagem da moto serra na mente provocava-lhe quase um êxtase. A hipótese do veneno também não era má, mas cria piamente que aquele pé não morreria com medida tão silenciosa. Além do mais, não ia se queimar tanto, com ação tão condenável e muito menos escusa. Preferia o acordo.

Não tinha nada em especial contra a fruta vermelha, saborosa e até adocicada, mas aquela vermelhidão aguada que invadia seu quintal, junto com o verde numeroso daquelas folhinhas e o entupimento da calha recorrente em todos os períodos de chuva, despertava nela aquele sentimento ilegal. E a pitangueira nem era dela; a árvore pendia do muro do vizinho e as folhas e frutos desciam copiosamente, ou então, as florezinhas miúdas a soltar o pólen, num gozo frenético pela irritação nasal e pelas infiltrações na casa. De noite o quintal ficava atulhado de baratas frutíferas e na manhã seguinte, o horror da permanência das frutas vermelhas, posto que poucas se convertiam em caroços brancos, pois até os insetos kafkanianos ficavam enjoados, tanta era a quantidade. Dentro dos cômodos da casa saltavam também os frutos e as solas dos sapatos viravam carimbos de tinta púrpura.

Tentaram de tudo; varreção, adubo, suco, enfim, alguma solução que trouxesse sustentabilidade e paz ao coração, aquela sensação de alma apaziguada. Passaram-se anos e ela nunca tomou nenhuma atitude decisiva ou homicida, senão propor e realizar parcas podas para minimizar a enxurrada de frutos e folhas. O pé de pitanga virou uma espécie de penitência; sim, ela entendeu assim. Que de alguma forma aquele caldo avermelhado no seu quintal deveria ter alguma razão nobre, nem que fosse o encontro da tolerância com os caprichos do vizinho, que não se desvencilhava das árvores frutíferas em seu exíguo corredor, mesmo sabendo que penderiam todas para o quintal ao lado e que poderiam provocar litígios e até nódoas de sangue.

segunda-feira, 5 de outubro de 2009

Morte do tempo

Não é mais a hora da descoberta encoberta. Dizem e insistem que ela já passou e que não valem mais surpresas e encantos. Que agora restam o cotidiano e os anos que restam. Por isso, não cabem mais as poesias em momentos irrecuperáveis, perdidos. Não cabem nem prosas, nem diálogos infindáveis, porque as conclusões inconclusas não reverberam mais. É hora do resoluto viver, sem artimanhas e deslizes, sem prosas e poesias. Não há mais tempo para elas, que elas gastam o tempo do fazer, do ganhar o dia, o mês, o ano. Quem dirá então da subversão da poesia na ausência do intervalo, no instante da utilidade laboriosa do tempo? Quem ousar infringir essa regra máxima do trabalho e insistir na poesia está desconexo, absolutamente sem lugar. Aos sem lugar o pecado do lugar de estar sem lugar. Não pode mais a poesia, a prosa sobre incompreensíveis maneiras de não viver e viver, de pensar em não viver pelo narrar sem fim e até morrer de tanta poesia e tanta prosa perigosa. Não adianta. Perca o tempo com perfusão de imagens, disfarces hábeis para o vazio, mas não o perca com poesia e morra o tempo. Que a ausência de poesia é a morte do tempo.

quinta-feira, 1 de outubro de 2009

In(certos)

Corredores e portas
Além do vão da porta
Saídas e entradas
Repetidas sombras
De (des)atenção
No sobe e desce
Do elevador
Nos burburinhos
Dos andares
Números
E passos
Até o ponto de chegada
(In)certo
Até o ponto de saída
Ida
Além do vão
Da porta da rua
(In)certa