segunda-feira, 29 de setembro de 2008

Festa

Talvez de toda narrativa, a mais difícil seja a Crônica de Festa. É uma história fadada ao descompromisso, tem um vazio repleto, refém do sentir. O lugar costuma ser um só. As pessoas, porém, surpreendem. Chegam, às vezes, comedidas, como se estivessem atrás do palco; meditam o papel, que antes de ser um papel ensaiado, é vivido e repetido. Crônica de Festa boa é aquela de gente que já se conhece, sem espaço para espantos. É o lugar do esperado inesperado; do canto, da dança, da bebericagem, da degustação, dos namoros, das declarações de amizade eterna, da nostalgia; o momento é de desarme-se, aqui o relógio dispara. Por isso, perder uma Festa boa é perder uma história peculiar, uma lembrança, o tilintar de um lugar que transpira magia.

Indolor

Na brandura incolor,
Indolor...ficar...ficar...
No menos mais ou menos,
Sem surpresas,
Sem lamentos,
‘Indoor’,
De cor,
Estaticamente,
Décor.

sexta-feira, 26 de setembro de 2008

Desfazer

Sempre cruzava com aquelas flores que se desfaziam,
Foram anos assim,
Ou o vento soprava e as pétalas bailavam no ar,
Ou o sopro quente da boca as desmanchava;
Nasciam feito pragas,
Em qualquer buraco de chão,
Espalhavam a semente compulsivamente;
De repente não apareceram mais;
Estranhamente;
Foram em busca de pedaços de chão mais distantes,
O desfazer delas se desfez no meu caminho...

Cabeçudo

Escureceu de novo, e em casa de pau-a-pique é mais negra ainda a noite. E aqui nestas bandas dorme-se cedo, com o despedir do sol, e nem sempre tem lua. Que jeito! Deito-me na rede larga no lado da de Maria, minha irmã, companheira de tantas noites. Acho que o cabeçudo gigante vem é por causa das redes; gosta de brincar com elas. Noite passada ele me balançou tão alto; pensei que ia voar e me estabacar no chão. Maria choramingou baixinho: por que ele voltou de novo pra nos incomodar? De manhã a gente contava o que se passara. Esperávamos que alguém viesse velar nosso sono. Diziam que era sonho. Mas como podia haver sonho assim com testemunha? Acabou de escurecer de novo. Que jeito...

quinta-feira, 25 de setembro de 2008

Poema incontido

Quando vem o vazio,
No molhar do corpo,
E a água escorre rápida,
Intrépida lava leva,
Forças, gestos,cheiros,
O movente valente;
Humores congelam,
Adormecem...
... ... ... ... ...
Infalsas pernas,
Ar dolorido,
Quando vem o vazio...
... ... ... ... ...
Até encher de novo.

No 'pequeno' teatro

Para minha surpresa o teatro era pequenino, cadeiras em meio círculo abraçando o palco. Cenário simples de janelas dependuradas, um piano solitário e um lugar pro Santo. As faces tão próximas, os risos e olhares ali ao alcance dos olhos; os tombos, afagos e deleites sentidos à meia luz. Figurino cadeirudo enlaçado de babados, exagero de revelações veladas. O Avarento estava lá bem na Rua da Bahia, no Teatro da Praça. Texto comedioso, de palavras de outros séculos com palavras dos mais próximos, barroco e moderno, bem adaptado do Molière. Fui ver Marcela encenar, e vi outros também. Música, dança, falas; como deveria ser a vida, sempre de trilha sonora alternada com silêncio e movimentos expressivos do corpo; sem a monótona repetição, ou mesmo os intervalos tediosos sem festa. Muito bom rever Marcela e conhecer O Avarento daquela forma, e quem sabe encenar uma peça todo dia.

Presságio

“Tens realmente faces encantadoras”, destilou em sua carta de amor. Era um amor à espreita, quase espectador. Ela lhe parecia um filme de carne e osso e “olhares sedutores”, que sequer o miravam. Melinda o achava feio, sem graça, e nem todas as palavras a tocariam. Nunca havia sentido o sabor do beijo de qualquer rapaz, somente as mãos entrelaçadas, o tato lábio; mas o moço das cartas parecia-lhe improvável, quase ingênuo. Casou-se tempos depois; casamento sem beijos, sem abraços e dezena de filhos e dezenas de anos. As cartas e poesias de amor sem igual ficaram na mente de Melinda. Até hoje ela recita os versos e se lamenta dos beijos que viriam, dos toques daquele moço, do presságio das palavras.

quarta-feira, 24 de setembro de 2008

Partido

Tô achando que o riso é um sorriso partido,
De tal forma cindido,
Que vagueia reticente ou loucamente,
Por tantas bocas em vão;
Tô pensando que o riso sofre de solidão,
Abandono em tantas bocas,
Com saudades do sorriso, da larguidão;
Tô acreditando que o riso é um visco,
Sem fruição,
Sorriso vago sem exatidão.

Volto

Já vai?
Já vou...
Já vai mesmo?
Vou... quer dizer...posso ficar mais um pouquinho...
...
Agora vou mesmo.
Já vai?
Agora vou...preocupa não...amanhã eu volto...
Amanhã cê volta mesmo?
Volto...
Cê volta né?
Volto, mas agora já vou.
Fica com Deus.
Vai com Deus...o que seria de mim sem você....
Até amanhã...
Até...
Pega a chave...
Tem que levar mesmo a chave?
Cê não volta amanhã?
Volto...
Então leva a chave...
Me dê a chave aí...
Pega aí...
Peguei a chave...até amanhã.
Até...
E retomba a porta...
E cric, cric na fechadura...
Amanhã eu volto?
Volto, volto sim...

O calango

Nunca pensei que mamãe fosse se interessar por um calango. Sempre teve aversão por seres rasteiros; as minhocas então!Dizia que, nos tempos de infância, botara muitas lombrigas por culpa de elixires desumanos; ficara traumatizada. Mas tomou amores pelo bicho estranho, nem um pouco comunicativo. O motivo do seu afeto parece ter nascido no quintal lá de casa; nunca se soube ao certo. Mamãe se encantava com ele, com sua pele rajada e suas mãos pequeninas e ágeis. Seus olhos meio ofídicos nunca sugeriram a traição, o bote. Tornou-se resoluta em alimentá-lo e até acariciá-lo. Com o passar dos dias, a sedução parecia mais impossível. O calango tentava quase diariamente a travessia para fora de casa; até que um dia conseguiu ganhar a frente da casa. Passou dias ‘enfeitando’ o jardim, ganhava pão, carne fresca e elogios. De vez em quanto subia na árvore do passeio em busca do manjar de formigas, e voltava. Depois ganhou a rua de vez. Tem dia que aparece calango grande lá em casa. Mamãe jura que é ele; diz que ele está muito bonito, bem nutrido, encantador.

terça-feira, 23 de setembro de 2008

Blusinha branca

Blusinha branca já deu música e história também. Eu tenho mais de uma. Quase todo mundo tem alguma. A minha, porém, já se tingiu de vinho, água salgada, água doce, percorreu lugares quadrados, redondos e sem forma. Blusinha branca é peça fundamental; tem algo de fantasmagórico, muda e nunca muda de cor. É quase indelével até o primeiro furo. Guarda segredos sem deixar marcas. Guarda mãos apressadas, delicadas, suores e olhares. Pode lavar com sabonete, mergulhar no cloro ou no sabão em pó. Às vezes ganha um tom azulado, fica hipotérmica a coitada, mas só até a próxima levada e lavada. Depois volta branca, cheia de manhas e avessos; suspira no guarda-roupa, implora o afago; aventureira blusinha branca sambista, alpinista. Sem blusinha branca eu não vou.

Riso

Da gente mesmo?
Do outro?
Do ‘nosco’,
Vício tosco,
Desenrosco;
Consente,
Desarma,
Separa,
Falha,
Ponto desaponto?
Veredicto sem suspeitas?
Febre maleita,
Escudo das tormentas,
Medo;
Riso alegria?
Sem cria pensamento,
Vai dentro;
Fomento,
Sem lamento;
Instantâneo,
Sem sucedâneo;
Espontâneo.

sexta-feira, 19 de setembro de 2008

Passou

Entre eu e o belo passante,
Do outro lado da rua,
Havia um tronco de árvore;
Lutei contra o arranjo de floemas e xilemas,
Apertei o passo,
O moço também;
Soltei o passo,
O moço também;
E o tronco sempre no caminhar nosso,
Irritantemente no meio,
Num passar quase combinado,
Pra gente não se ver;
O moço se foi,
Eu fui também...
Nem pude ter certeza do belo que passou...

quarta-feira, 17 de setembro de 2008

Quase nada

A alegria é o quase nada,
O quase nada é o olho fixo,
Sem cruxifixos,
Sem inimigos.
Olho despudorado,
Indiscreto,
Infinito no finito.
Ah! O quase nada tudo!
Jamais todas as cenas.
Olho fixo no horizonte?
Olho de angústias,
Indecisões,
Solidões...
O quase nada fixo?
Instantâneo repleto,
Incontinências,
Encantamentos,
Desaparecimentos...
Simples é a alegria;
É quase nada...

terça-feira, 16 de setembro de 2008

No ponto

Tudo vai
Tudo volta
É no circular
No eixo
Que a gente se ‘em volta’
E no átimo
Desatino
Se confunde
No horário anti-horário
Na fuga do ponto
Grudados no ponto
E ponto

segunda-feira, 15 de setembro de 2008

Brumosas

Expectativas sempre brumosas,
Por que não dá-las o aroma da surpresa?
Esquecê-las,
Combatê-las delicadamente,
Buscá-las sem arroubos,
Sem roubos,
Deixar os corações sossegados,
Afagados sem enganos e decepções?
Expectativas espadas,
Empunhadas,
Riscos iminentes,
Fadadas descontentes,
Copos sem beiradas,
Corpos reluzentes sem mente,
Inocentes,
Expectativas esperanças,
Ânsias,
Reentrâncias na gente,
Por que ficar descontentes?
E não atentos?
Ao vento presságio,
Ao gesto delicado,
Ao inesperado?
Expectativas futuro?
Só passado cozinhado,
De miasmas,
Vapores irreconhecíveis,
E sabores duvidosos...
Expectativas espectrais,
Multicores,
Desvios,
Arrepios fugidios...

terça-feira, 9 de setembro de 2008

Tempo Continente

Poucos são os momentos na vida em que temos a impressão que o tempo não é mais, não é menos; é apenas o tempo no seu curso espontâneo. Não corre e sai atropelando a gente; não passa monótono, irritante, dando a impressão de eternidade vã. Foi assim esse final de semana em Itaipava; tranqüilo e movimentado, com jeito de entrelugar. Conheci o anfitrião Rodrigo em Ilha Grande, exatamente em um passeio de barco, onde o tempo ao contrário do que se imagina, não passava modorrento, mas festivo, com um quê de realidade fantástica. Apesar de estarmos cercados de água, a sensação não era de ‘ilhação’, ‘solidão’; as pessoas se amontoavam, o sentimento era continente. E Itaipava pareceu-me mais continente ainda, desde o trajeto de ônibus.

Lá fomos nós, eu e prima Ana Márcia. Eu de olhos abertos, mirando estrelas vivas lá fora, estrelas do céu e estrelas baixas, luzes artificiais cintilando na bruma. Ana Márcia pelejando com o sono que não vinha...até que surge uma conversa curiosa no banco da frente. Não soube o nome da senhora, mas boa parte de sua vida ela contara ali no caminho, pra quem quisesse ouvir. Fizera tantos negócios, comprara pedaços de terra, trocara, fora enganada...mas o que mais achei interessante foi o formato verbal da traição fofocada... ela dizia: “ele ventilou no ouvido de fulano, perdi o lote...” Rimos tanto que relaxamos; Márcia desistiu de dormir e o sono veio; eu desisti de perseguir as estrelas.

Chegamos na Rodoviária de Petrópolis no sábado com o nascer do sol, retornamos à Itaipava e demos um tempinho pra ligar sentadinhas no murinho do terminal. Eu, mineira, um tanto desconfiada; Márcia mais despachada só no incentivo. Afinal de contas, conhecera Rodrigo muito pouco, quase rapidamente. Liguei e o menino da Ilha já estava acordado; veio prontamente com os mesmos cabelos de caracol, só que de voltas mais generosas, o sorriso...Foi familiar o encontro...não teve a estranheza do reconhecimento. Seguimos, nos alojamos em sua casa, mistura de coisas antigas e novas, sem ânsia desenfreada por consumir sem pensamento...tudo, cada objeto parecia ter um motivo.

O roteiro do dia foi montado ali mesmo, na base do improviso; a sugestão vinha certeira, ao gosto. Fizemos uma bela trilha no Parque Nacional da Serra dos Órgãos para conhecer a cachoeira do véu da noiva. Rodrigo mais esperto, suando cachoeiras; Ana Márcia habilidosa, mesmo de chinelos; e eu sempre mais lenta, precisando de uma mãozinha. Entramos na água fria exclusiva, comemos pãozinho de batata delicioso e bananinha adocicada.

Depois da trilha feita, a decepção do caldo de cana da dona Maria, que não rolou, até que seguimos para Corrêas, onde bebemos um chope, que desceu como água, e comemos uns pastéizinhos de angu com massa bem mais leve que a mineira. Seguimos para o Bordô, lugar mais fino, com corredorzinho para carros de pessoas elegantes. Lá, tomamos mais uma cerveja, agora de Itaipava mesmo, e experimentamos o primeiro croquete. À noite fizemos refeição em casa; macarrão à minha moda, picanha à moda do Rodrigo, sangrando; depois bem passada ao nosso modo. Findamos o dia no Nucrepe, barzinho de música boa, freqüentado nos velhos e novos tempos pelo Rodrigo.

Domingo foi dia de dar uma olhada em Petrópolis, conhecer a falante e simpática Monique, e visitar o Parque São Vicente, lugar para decolagens de asa deltas e parapentes. Almoçamos pão com lingüiça combinado com croquete no Alemão, e seguimos para os preparativos do show da banda do Rodrigo, a Serra Soul, no bar Nas Nuvens, lá mesmo no parque. As nuvens não deram chance ao pôr do sol, mas os pingos de chuva não foram suficientes para estragar a festa. Encerramos com pizza de massa finíssima e sabor delicado. Retornamos com nevoeiro, como quem está mesmo descendo das nuvens. Quando pensei que o passeio já era todo continente, Rodrigo gritou na hora do café de segunda: “Vai querer vitamina Keila?” Eu tinha dito pra ele da vitamina da minha mãe...– “Quero”, respondi...A vitamina tinha o gosto da minha casa, e é essa lembrança do cuidado do menino de Itaipava que tornou o tempo continente.

quarta-feira, 3 de setembro de 2008

Pretinha

Era imponente a pretinha. Olhos frontais, novilha bem conformada, escore médio. Só os chifres pareciam destoar, sobretudo para a ordenha do leite. As recém formadas ‘veterinárias’ fizeram longa viagem, porque Pretinha morava nas terras do meio do país. A propriedade era um pedaço de uma maior dividida entre vários irmãos. As moças tencionavam usar seus dotes acadêmicos; fizeram mochação de bezerro; deixaram os responsáveis do curral indignados. ‘Vê lá se isso é serviço pra mulher.’ Depois de toda labuta, resolveram fechar com chave do ouro o dia. Vamos fazer a descorna? Sugeriu uma delas. A famigerada cirurgia serve para dar um aspecto bonito, para facilitar o manejo...nada muito além disso. Mas quando se complica a tal descorna, é sinusite da brava, pontos infecionados. Só que esse não foi o caso; o caso foi bem pior. O campo cirúrgico ficou restrito; os olhos fixaram-se tão longamente nos chifres, que pretinha sofreu, sofreu...Esqueceram-se da pretinha...Deu o último suspiro, morreu...Morreu? Repetia uma delas sem acreditar...Como pode ser? A bichinha ficou horas em decúbito lateral com seus órgãos digestivos enchendo-se de gases, seu pulmão comprimido...e em nenhum momento atentaram para a vida em suas mãos, que sequer precisava da tal cirurgia estética...cheia de vasos a esguinchar, pele escassa para cobrir o que já era coberto pela natureza. Passaram a noite separando os músculos da pretinha para refrigerar e ‘aproveitar’; atordoadas, repensando os motivos da morte. Correram em busca da explicação pelos corredores da escola de veterinária, e ninguém soube dizer com precisão o que teria ocorrido. Várias possibilidades foram aventadas, mas e a alma da pretinha, e seus olhos frontais brilhantes? E seu corpo todo, seus parâmetros vitais desprezados e a peia a impedindo de fugir? Pretinha nem sabia que era bonito ficar sem chifres e que eles eram tão ameaçadores. Nenhuma das duas moças seguiu carreira, não se sabe se por causa da Pretinha.

Todas as palavras

Entre o aqui e o ali,
Cabe pouco,
Cabe muito...
Aí vem o homem e inventa um nome grande
Pro que não se entende, e se finge entender...
E se disfarça saber...
E nem tem ilusão nisto...
É só escuridão...
De vez em quando vem o clarão,
Mas depois o nome não encaixa,
Porque cabem mais,
Talvez todas as palavras.

segunda-feira, 1 de setembro de 2008

Cantiga pro Azulão

Azulão cantava livre, até que Azulão preso ficou
Canta Canta Azulão....Azulão continuou...
Um dia Azulão entristeceu e o canto sumiu...
Ô tristeza Azulão... não canta mais, ô tristeza...
Resolveram soltar Azulão...foi pro mato Azulão,
Esverdeou e avoou, avoou, avoou....
Ê Azulão, ê ê ê, que alegria Azulão....ê ê ê...
Virou folhagem de ventania, tomou banho de chuva...
Esqueceu da prisão o Azulão....
Esverdeou e avoou, avoou, avoou...
Ê Azulão, ê ê ê, que alegria Azulão....ê ê ê...
Canta livre de novo Azulão...eô, eô, êo...