quinta-feira, 24 de dezembro de 2009

O gosto da solidão

A ausência de lembranças tem o sabor exato da solidão. E mesmo no mundo da lembrança tem buracos, fendas profundas que remetem a um sentimento de sabor acre ou de dissabor. Mas a solidão pode ser adocicada quando se está em paz, sem angústias ou expectativas. Ainda assim, a sensação é fronteiriça, nem contentamento, nem descontentamento. Talvez a palavra tenha jeito de aumentativo porque o sentir é grande em forma de ão, talvez tenha jeito de objeto sólido que excede porque é preciso atingir sua exata materialidade, escapar do sentir abstrato incompreensível de um para o outro. Solidão é par de incompreensão, solidão no amor, solidão na dor, solidão na euforia, solidão no gozo, solidão na tristeza, solidão na indiferença, solidão na diferença...Solidão é no coração, nasce, vira embrião e anfitrião, porque só nela percebe-se o de si para si, porque solidão é lembrança de ser não...ou se ser só sensação...

Ganhei o ponto

Hoje o ponto mudou de ponto,
Não tinha ponto,
Mas barracas em fileira,
Frutas, legumes, verduras e biscoitos em profusão,
Delícias...
Precisei mudar de ponto;
Perdi o ponto,
Que se desfez em linha,
De infinitos pontos...
Aquele ponto se perdeu de mim,
Mas ficou-me os gostos da expectativa;
Deletei a curva do ponto,
Fui na reta mesmo
Em busca de outro ponto;
Lastimei a perda da rotina,
Agradeci a perda do ponto,
Ganhei outro ponto,
Pude sonhar outros pontos...

segunda-feira, 30 de novembro de 2009

Passageiro

Déni era e não era um cavalheiro quixotesco,
Não tinha cavalo nem escudo,
Mas sonhava,
Manuseava rifles,
Voava na imensidão,
Atirava sem compaixão,
Defendia sem restrições,
Amava o selvagem de si,
O selvagem do outro;
Déni era livre,
Civilizado,
Incivilizado para datas,
Não queria compromisso com nenhuma Dorotéia,
Ou qualquer título de nobreza,
Ou dotes fabulosos;
Mas Déni amava fábulas,
Para ele os bichos eram melhores que gente,
Porque não tinham incertezas,
Somente eram certas as suas predestinações,
E a fala no olhar era mais palavra neles,
E os sons que emitiam tinham o ritmo para o momento exato;
Déni sabia que não era eterno,
Devia gostar dos contratos de prazo certo,
Mas odiava todos,
Fadados que eram aos limites do tempo,
Aos interesses do tempo,
Às posses descomedidas,
Às incertezas do poder e do amor;
Déni era passageiro...
E não comemorava datas...

terça-feira, 24 de novembro de 2009

Renovadora

Não existe mais Sapateiro. Agora passa lá na Renovadora de Calçados! Tem até orçamento sem compromisso. Serviço profissional para quem quer dar uma ‘garibada’ naquele calçadinho meio batido, mas que ainda dá um caldo, quer dizer, uns passos. O material é o mesmo do sapateiro; tem sola, preguinho, martelo, cola; tudo do mesmo jeitinho, só que agora é na renovadora de calçados. Na rua principal do bairro tem duas, com placa em letras garrafais e tudo, que sapateiro é coisa de outro tempo. Agora é o tempo das renovadoras de toda sorte, um apelo moderno para o antigo e batido sapateiro que precisa de um nome mais comprido e que não diga respeito a ele em especial, mas à renovadora de calçados. Ninguém mais quer ir ao João Sapateiro, mas sim à renovadora de calçados. Que negócio é esse de arrumar o sapato? Não, não e não. Na renovadora seu sapato sai renovado, praticamente novo, que sapato velho, usado, é coisa de outro tempo.

quarta-feira, 28 de outubro de 2009

'O Leitor'; sobre Literatura e Liberdade

A narrativa do relacionamento entre pessoas de gerações diferentes, que se aproximam e se distanciam durante a vida pelas contingências pessoais, sociais e políticas de uma Alemanha marcada pelo nazismo, mas que permanecem de certa forma unidas pelo amor à literatura e a tudo o que ela remete. O autor alemão Bernhard Schlink, em ‘O leitor’, conta a história do envolvimento do estudante Michael, de 15 anos, com Hanna, de 36 anos, logo após a Segunda Guerra Mundial. Por alguns meses eles têm encontros amorosos, durante os quais Michael lê para ela autores clássicos da literatura como Tolstói, Dieckens e Goethe. Até que Hanna desaparece e os dois se reencontram em um julgamento, em que muitas revelações vêm à tona. Ele, estudante de direito; ela, acusada.

Também um metatexto sobre a leitura e literatura, o livro de Schlink não tem a pretensão de ser um tratado sobre as características de um leitor e nem tão pouco sobre as expectativas do escritor sobre o leitor, senão chamar atenção para as mazelas e frustrações engendradas no regime totalitário racista e as implicações psicológicas na sociedade. A história e os personagens são conduzidos sem exageros panfletários, mas de forma suave e contundente, quase como um segredo que o desenrolar dos fatos desvenda de forma irremediável. Escrito em primeira pessoa, por meio do olhar do ‘menino’ Michael, o texto apresenta frases curtas, o que encerra o dizer reprimido das vozes ainda caladas pelo regime nazista. As descrições são, por vezes, resumidas, outras, detalhadas, ao sabor das ânsias e contemplações do narrador; “o prédio antigo tinha a mesma altura e quatro andares, um piso de blocos de arenito afiados como diamantes no térreo e três andares superiores de paredes atijoladas com arcadas de arenito, varandas e janelas gradeadas.”

Os diálogos mínimos, à despeito da discussão sobre intencionalidade do autor, terminam por esconder o que vai fundo na alma, as vergonhas, que em instantes aparecem como um afago ou uma violência exagerados; “Ela tinha nas mãos o cinto fino de couro com o qual prendia o vestido na cintura, deu um passo para trás e o lançou no meu rosto. Meu lábio estalou, e senti o gosto de sangue. Não doeu. Fiquei terrivelmente chocado. Ela pegou o cinto de novo. Mas não voltou a bater.” Contudo, algumas passagens demonstram uma poesia desconcertante como; “Quando ela estava adormecida sobre mim, a serra calava no pátio, o melro cantava, e das cores das coisas na cozinha só restavam tons acinzentados mais claros ou mais escuros, e eu era completamente feliz”, e os protagonistas se revestem de uma verdade crua, da impossibilidade de estarem juntos; “Hanna como doença. Envergonhei-me. Mas falar à vontade de Hanna é que eu não podia”, e da dúvida; “O verão foi o vôo planado de nosso amor, ou muito mais do meu amor por Hanna; sobre seu amor por mim eu não sei nada.”

‘O leitor’, fala de vida, da descoberta do amor e do sexo; fala de morte, morte em vida, vida em morte, e literatura. O leitor Michael é alguém que apresenta os mundos para outro alguém, Hanna, e que a deixa livre para fazer sua própria leitura, desobrigada, distante da realidade vivenciada, mas vivida no ato da leitura; “Ela gostava dos poemas entremeados. Gostava dos disfarces, dos enganos, das confusões em que o herói se envolvia na Itália. Ao mesmo tempo implicava com ele por ser um velhaco, não se responsabilizar por nada, não conseguir nada e nem querer conseguir. Ficava arrebatada e, horas depois que eu tinha parado de ler, ainda podia vir com perguntas.” Já Hanna é a mulher sem pudores, o colo de mãe, o acalento; é também a representação da força, de uma transformação, de como a oportunidade pode ser aproveitada em toda sua plenitude; “Era visível a resistência que Hanna precisou superar para transformar as linhas de tinha em letras e compor com as letras as palavras. A mão da criança tende a se desviar aqui e ali, precisando ser mantida no percurso da escrita. A mão de Hanna não tendia a lugar algum, precisando ser obrigada a seguir adiante.” Os dois protagonistas são leitores com seus pontos de vista, suas vivências, são livres naqueles momentos.

A obra de Schlink é um despertar para a discussão sobre os conceitos pré-concebidos, para as exclusões injustas, mas é também ode ao amor, ao amor que une as pessoas com motivação óbvia, quase irrefreável da atração física, mas de um amor maior, que sobrevive por aquilo que o outro tem a dar, a ensinar, o motivo maior da troca e da solidariedade. Mas é, sobretudo, um livro de exaltação à literatura e à descoberta da leitura e ao mundo novo que ela desnuda a cada momento, no reconhecer de si próprio e dos outros, na compreensão das diferenças marcadas nas pessoas pelo tempo, pelos lugares e até nas incompreensões, daquilo que não se explica.



terça-feira, 13 de outubro de 2009

Sinos sem dobres

Por sobre a rua estendiam-se as campânulas dos sinos sem dobre. A rua era pequena e as casas vinham uma a uma num ritmo lento até que os olhos se esgueiravam na busca de horizonte maior e ele não vinha. Não se sabe por que as badaladas já há cem anos não soavam mais, senão pela morte do último sineiro, que despencara lá do alto. E assim, todos choravam as mortes e comemoravam os nascimentos da vila ao som da Ave Maria ou do Pai Nosso entoado na próxima missa pelas vozes de ladainha, o que se ouvia até o fim da rua. Dos sobrados os rostos, de face lúgubre e festiva, não ousavam ultrapassar os batentes das janelas. Às vezes interpunham-se somente as pontas dos narizes mais compridos ou mesmo se insinuavam alguns fios de cabelo em dias de ventania. Não se sabe por que, cessadas as badaladas, o povo ganhou conformação intimidada diante de tudo e o movimento ficou também silencioso. Começaram todos a ver de forma descomedida e se assustar ao menor barulho por falta dos dobres dos sinos. E cada vez que alguém se pronunciava em alta voz, os ouvidos pareciam doer, como se estivessem submetidos aos mais elevados dobres, de quem está com as campânulas feito chapéu, por sobre as cabeças. Dizia-se que o coração delas batia em disparada a qualquer som que não fosse das rezas na igreja, e que antes do cessar das badaladas, eram todos mais calmos. Havia alguns que se colocavam de joelhos na escadaria dos sinos e que lacrimejavam na lembrança da magia dos dobres que anunciavam alegria e tristeza, depois alegria de novo, de modo que a cada tristeza seguia-se uma alegria e se a alegria vinha, a tristeza era recebida com resignação de quem já foi agraciado com momentos felizes. Morrer o dobre dos sinos foi como morrer a anunciação da vida e da morte, do destino e do recomeço na vila.

sexta-feira, 9 de outubro de 2009

Pedra

Pedra não quisera ser
Pedra só pudera ser
Posto que de tantas pontas de pés
Rolou e parou
E rolou e parou

Resolveu querer ser pedra
Sem pulmões que respirar
E dedos que buscar
E nesse estado de minério
Foi obra inabalável
Sem vertigens de amor e de dor

Pedra não quisera ser
E mesmo assim paralisou
E nunca mais falou
Sob pena de não ter ouvidos que ouvi-la
Deu um último grito e petrificou

E nesse estado mineral
Foi plenitude geológica
Amou a chuva
O sol
O vento

Na dureza do seu esplendor
Foi um adorno de sentimentos
Abortou pedaços e farelos
E sobrou
E rolou
E parou
E foi pedra que passou

quinta-feira, 8 de outubro de 2009

Penitente

Ela não gostaria que a acusassem de crime ambiental, nem tão pouco que pensassem dela uma enormidade de descaso com as coisas belas e providenciais da natureza. Mas sentia dentro de si uma predisposição para o homicídio, não de gente, que isso ela nunca pensou, salvo, é claro, quando sabia de um tarado molestador de crianças e mulheres. Pensava em assassinar um pé de pitanga e a imagem da moto serra na mente provocava-lhe quase um êxtase. A hipótese do veneno também não era má, mas cria piamente que aquele pé não morreria com medida tão silenciosa. Além do mais, não ia se queimar tanto, com ação tão condenável e muito menos escusa. Preferia o acordo.

Não tinha nada em especial contra a fruta vermelha, saborosa e até adocicada, mas aquela vermelhidão aguada que invadia seu quintal, junto com o verde numeroso daquelas folhinhas e o entupimento da calha recorrente em todos os períodos de chuva, despertava nela aquele sentimento ilegal. E a pitangueira nem era dela; a árvore pendia do muro do vizinho e as folhas e frutos desciam copiosamente, ou então, as florezinhas miúdas a soltar o pólen, num gozo frenético pela irritação nasal e pelas infiltrações na casa. De noite o quintal ficava atulhado de baratas frutíferas e na manhã seguinte, o horror da permanência das frutas vermelhas, posto que poucas se convertiam em caroços brancos, pois até os insetos kafkanianos ficavam enjoados, tanta era a quantidade. Dentro dos cômodos da casa saltavam também os frutos e as solas dos sapatos viravam carimbos de tinta púrpura.

Tentaram de tudo; varreção, adubo, suco, enfim, alguma solução que trouxesse sustentabilidade e paz ao coração, aquela sensação de alma apaziguada. Passaram-se anos e ela nunca tomou nenhuma atitude decisiva ou homicida, senão propor e realizar parcas podas para minimizar a enxurrada de frutos e folhas. O pé de pitanga virou uma espécie de penitência; sim, ela entendeu assim. Que de alguma forma aquele caldo avermelhado no seu quintal deveria ter alguma razão nobre, nem que fosse o encontro da tolerância com os caprichos do vizinho, que não se desvencilhava das árvores frutíferas em seu exíguo corredor, mesmo sabendo que penderiam todas para o quintal ao lado e que poderiam provocar litígios e até nódoas de sangue.

segunda-feira, 5 de outubro de 2009

Morte do tempo

Não é mais a hora da descoberta encoberta. Dizem e insistem que ela já passou e que não valem mais surpresas e encantos. Que agora restam o cotidiano e os anos que restam. Por isso, não cabem mais as poesias em momentos irrecuperáveis, perdidos. Não cabem nem prosas, nem diálogos infindáveis, porque as conclusões inconclusas não reverberam mais. É hora do resoluto viver, sem artimanhas e deslizes, sem prosas e poesias. Não há mais tempo para elas, que elas gastam o tempo do fazer, do ganhar o dia, o mês, o ano. Quem dirá então da subversão da poesia na ausência do intervalo, no instante da utilidade laboriosa do tempo? Quem ousar infringir essa regra máxima do trabalho e insistir na poesia está desconexo, absolutamente sem lugar. Aos sem lugar o pecado do lugar de estar sem lugar. Não pode mais a poesia, a prosa sobre incompreensíveis maneiras de não viver e viver, de pensar em não viver pelo narrar sem fim e até morrer de tanta poesia e tanta prosa perigosa. Não adianta. Perca o tempo com perfusão de imagens, disfarces hábeis para o vazio, mas não o perca com poesia e morra o tempo. Que a ausência de poesia é a morte do tempo.

quinta-feira, 1 de outubro de 2009

In(certos)

Corredores e portas
Além do vão da porta
Saídas e entradas
Repetidas sombras
De (des)atenção
No sobe e desce
Do elevador
Nos burburinhos
Dos andares
Números
E passos
Até o ponto de chegada
(In)certo
Até o ponto de saída
Ida
Além do vão
Da porta da rua
(In)certa

quarta-feira, 23 de setembro de 2009

Cor dos olhos

Pensei que era a cor dos olhos
Que o resumo da paixão tinha cor
De folha, de céu, de terra, de sol
E até de sangue

Depois atinei que era o movimento deles
Que em cada cor tinha um ritmo
Que minha mirada coreografava

No começo eles dançavam sozinhos
Depois faziam par com os meus
E a cor dos olhos já não era a mesma
Era um abraço de olhos
De cores sobrepostas
No início mancas
Depois saltitantes e cintilantes

Continuei a pensar na cor dos olhos
Até me esquecer da cor e do tom exato
E lembrar da história deles
Mesmo des(conhecida)
Do movimento da cor...

terça-feira, 22 de setembro de 2009

O pregador

Ele já surgira assim, com aquela verve, com aquelas mãos postadas sobre a pasta preta, cheia dos textos sagrados, e o entorno dos olhos arroxeados como se a visão avançasse de tal maneira sobre o horizonte, que gastava o viço da epiderme e subsumia os globos oculares já pequeninos. Em verdade, seus olhos eram luzes apagadas frente ao contingente de ligações neuronais demandadas naquele momento sagrado, e não faltavam vocábulos apropriados, nem tão usuais, que davam esse teor de que há algo revelador no dito. Na fronte, os primeiros sinais de calvície, hereditária, e aquele nariz ligeiramente aquilino a fortificar o sorriso de dentes miúdos e intervalados. Era irmão por parte de pai, mas jamais ela o vira com consistência, nem na infância, nem na adolescência. Portanto, foi mesmo pregador desde o primeiro instante irreal tão real.

Apareceu quase divinizado após a terceira década de nascido, trazendo a mão calejada e histórias de uma união enganosa com a mulher e intrigas com os pais; e ele parecia realmente disposto a se redimir pela palavra, sem ganância alguma. Ela, a irmã, achava, verdadeiramente, estranho conhecê-lo assim tão personificado, sem as nuances do convívio próximo, a resguardar surpresas a cada momento e, mesmo assim, capaz de gerar aquele afeto pelas incongruências. Estranhava aquele absoluto dito, vivido, e, por isso, via-o com curiosidade, bem distante do afeto. Seu empenho maior era em pregar de casa em casa a palavra dita pelo senhor, registrada na Bíblia. Dizia; prego a Bíblia. Segundo alguns a religião dele não tinha templo nem liderança. Passava horas na marcação das idas às casas de familiares e outros que se dispusessem a ouvi-lo, e até mesmo contradizê-lo, para que a palavra sagrada compensasse tudo, como se já estivesse lá acabada, sem dúvidas para qualquer objeção. Levava uma companheira para suavizar o desgaste da pregação e dar aquele tom mais feminino, que muitas vezes amolece a alma.

A irmã admirava aquela habilidade, posto que, o discurso era de fato bem formulado, enriquecido por informações de outras ordens, até científicas e filosóficas, do tamanho infinito do universo, da pequenez e da grandiosidade, das interpretações falhas da Bíblia. Mas o paraíso usurpado, a Eva malfazeja, a cobra venenosa e os corpos do pó ainda eram o início de tudo, e ele buscava os minerais dos ossos e dos processos neuronais e fisiológicos para consubstanciar o fantástico, em meio à cientificidade do mundo moderno. E se o interpelavam sobre algum espírita reconhecido por bondade e resignação, sua companheira era a muleta certeira: ‘a maldade se esconde por traz da veste da bondade’. E assim aquele homem, em verdade ‘um lobo na pele de cordeiro’, era julgado sob a veste da intolerância. E o juízo final? ‘Esse não fora marcado, e o aquecimento global talvez seja mesmo o anúncio do fim do mundo’. E a reencarnação? ‘Ora, se houvesse mesmo, o mundo não teria melhorado? Por que tudo piora?’ E o destino existe? ‘ A gente tem o livre arbítrio, tudo uma escolha’. E a companheira do pregador, por vezes, complacente com o pecado; ‘não é o tamanho do pecado que vale, mas o tamanho do arrependimento’.

E assim o Deus misericordioso que sumia, ressurgia de tempos em tempos. Mas em nenhum momento qualquer escolha ou opinião era de fato considerada. A palavra final era vertida, num quase monólogo de duas bocas, e ele saía resoluto das pregações, com apertos de mão, empenhando-se na marcação da próxima.

quinta-feira, 17 de setembro de 2009

Ida nua

A vida invade
A vida esvazia
Traz contos
Encantos
Ornamentos
Lamentos
A vida deságua
Aterra
Esfera
Infinita de pontos
Em rotação
Tonteia
Escamoteia
Sombreia
De sol
De lua
Esquenta
Amua
A vida desvia
Apruma
A vida é uma
Nenhuma
Alguma
A vida é rua
É ida nua

quarta-feira, 16 de setembro de 2009

'Com camisinha'

A despeito das divergências sobre as conveniências de se pegar um táxi, posto ser o transporte coletivo demorado e impessoal, havemos de admitir que nos ônibus as histórias fervilham, dado o contingente humano com suas nuances esperadas e inesperadas. Mas o motorista é quase um anônimo, robotizado, ali no compromisso de pegar e largar gente e, raramente, as pessoas se lembram da face do sujeito. Agora no táxi tudo muda; ou nos deparamos com um ser hermético e ávido pela corrida sem mais delongas, ou então, o caminho se torna o próprio divã. Assim, as histórias também se multiplicam ou se condensam na mente.

Não me lembro exatamente o nome da taxista, nem mesmo qual era a empresa a que servia, senão que chegou bem na garagem do prédio em que estávamos; o ar era de segurança e conforto. Mas quando adentramos o recinto motorizado, verificamos que a condutora estava um tanto nervosa e se embaralhava com vários objetos entre rádio escuta, sacolas plásticas e volante. Como o motivo era de festa e não havia horário determinado de chegada, relaxamos.

Iam eu, Vivi e Gabi pro samba. Pra onde é?, interpelou a taxista. Pra quadra da Mangueira, respondeu Gabi. Onde é isso?, perguntou a taxista. E a fachada de segurança se desmanchando, enquanto eu e Vivi no banco de trás nos olhávamos meio duvidosas, meio prendendo riso. Gabi logo direcionou a condutora, que deveria ir pela Serra mesmo; caminho menos tortuoso, mas que reservava uma descida considerável para uma motorista que parecia até aquele momento não se preocupar tanto com o volante. E dessa maneira seguiu os primeiros dez minutos do trajeto, sobretudo, na ânsia da escuta.

Na verdade, ela não se preocupava com o caminho a seguir, mas sim com o próximo que deveria fazer enquanto as falas no rádio em altíssimo volume a deixavam ainda mais ligada na disputa pelas corridas. Curiosamente, no meio do caminho, ela terminou entrando num papo ‘opinioso’ sobre filhos, os quais nunca quis ter, e sobre o uso obrigatório da camisinha com seu marido. ‘Terrível o número de mulheres casadas que contraem aids’, e nós assentimos, sem ter como questionar. Nesse momento percebi que a taxista não era nada confusa. Era simplesmente uma futurista nata. Tudo era milimetricamente planejado, por isso, o volante, de vez em quando parecia nem importar tanto, nem sequer os caminhos, porque o que valia mesmo era chegar no próximo destino. Agora voltar ali na Mangueira ‘nunca’, ‘quando vocês saírem daqui já estarei dormindo’...

Chegamos bem; aproveitamos o samba no melhor estilo e pra variar, na volta, pegamos um táxi. Só que o condutor dessa vez não parecia nada futurista; aproveitou o momento para paquerar, enquanto tentávamos, pegando carona na manha dele, livrar-nos do adicional do pedágio...Aqui o tom era leve e brincalhão. O assunto da obrigatoriedade do uso da camisinha não surgiu, e não nos livramos do pedágio.

segunda-feira, 14 de setembro de 2009

Encanto

O que me encanta em ti? Não digo, pois que encantamento não é coisa de se dizer. Tão logo se matuta sobre o que de encanto há, tão logo vem certas arestas, certas amarguras ou dúvidas, posto que encanto não nasceu pra ser dito, só ouvido e sentido como palavra exata. Talvez o que me encante em ti seja exatamente a palavra silenciada que não traz ofensas, nem disfarces. Guardo de ti aquela face de alvura mansa a refletir a luz como um clarão; e os olhos cor de folha semi-desidratada, quase um verde complacente e equilibrado com meus sentimentos meio tortos, como se a esperança ali condensada naquele olhar fosse o próprio dizer de encanto, e não valha a pena fazer interpelações ou elucubrações a ou sobre sua pessoa além daquele lugar de descoberta. Porque o lugar da descoberta é o natural encanto que não se desfaz, porque fica lá in memoriam, em quase estado de latência, numa potência de sentir plena e inesgotável. E aquele toque de bocas, um tátil inquestionável de um movimento meio ternura, meio curiosidade por aquilo que não se conhece, muito aquém da mágoa, dos pensares que antecedem o gesto espontâneo e justo. É isso o encanto; um lugar infantil, de brincadeiras e experiências, um lugar de jogo sem planos.

sexta-feira, 11 de setembro de 2009

Beija-flor

Seu José era como um beija-flor. Davam as exatas duas horas de permanência no baile e ele ia embora, feito pássaro saciado de seiva por aqueles instantes. Diziam que ia cedo porque morava longe e que se tardasse, sendo ele já um senhor na casa dos setenta, poderia correr algum perigo. Helena, também pra lá dos setenta, fazia par com ele todas as vezes que aparecia. A ‘parte’ era concedida a ela com tanta delicadeza e distinção que ela não pôde deixar de se encantar. Ela se encantou tanto, que sua ida ao forró, como todos diziam, era obrigatório, pelo menos duas vezes na semana. Helena ia de vestido de crochê tecido pelas suas próprias mãos já calejadas, mas ainda ágeis. Dizia que recebia elogios sem igual, que a chamavam de menininha, e sua voz de empolgação ao contar não desmentia a meninice dentro dela. Impressionava-se com a vestimenta de José, ‘sempre limpinho’, ‘bem arrumado’; lembrava-lhe um pouco seu marido pela altura e pela magreza. Aprendeu uma soma de dança com ele, forró, bolero e tango. ‘Tô dançando bem demais’, ela se alegrava. E desandava a falar de seu José, disfarçando a intenção de amizade, porque queria mesmo era um namoro daqueles que ela nunca experimentara, de beijos e carícias, coisa que seu falecido jamais entendera. Certa vez ousou dar-lhe um abraço e ele entendeu como um empurrão, lamentou-se da iminência da queda, com olhar de incompreensão. O beija-flor agora anda em seus sonhos e ela deixa que ele sugue todos os momentos com os passos de sua dança, até que se vá com seus braços de asa, voando, voando, até pousar de novo em volta dela no próximo baile.

quarta-feira, 9 de setembro de 2009

'Reencontro'

Poucos são os lugares a que retornamos, senão àqueles bem nossos, quase estados de alma, contra e a favor dos quais não sabemos dizer, só mesmo sentir. E, sem dúvida, não retornamos a nenhum lugar, mas sim a um estado de espírito curioso de novas visões mesmo que com vestes repetidas. Voltamos para o reencontro do aconchego, da nossa própria casa estampada nas outras. Voltamos para o olhar de consentimento e desaprovação cúmplice e solidária. Voltamos para rever o que nem tínhamos visto e saber do reencontro, sem nem mesmo ter encontrado antes. Foi assim essa nossa ida ao Rio. Eu e Vivi de novo na rodoviária, com alguns tropeços pelo tempo das partidas e chegadas repetido e novo, até retomarmos a conversa pelo caminho. Tudo seguiu cheio de movimento; na Lapa, na quadra da Mangueira, até na entrada do Castelão, que ficou só na concentração, e na praia. Agora um movimento foi, não diria inusitado, mais quase raro; o cuidado dos anfitriões. Gabriela sempre bem disposta, sorridente e companheira. Gláucia e Gilmar, espontâneos e acolhedores, na fala, no preparo das comidas, nas conversas vastas em torno da mesa da cozinha. Vitória que viu seu quarto multiplicado de gente e coisas espalhadas pelo chão, sem a menor expressão de irritação. Rhany, a visita constante e carinhosa. E todas as outras pessoas que passaram pela casa ou pela rua para nos ver ou nos rever, como Vânia, e a sensação permanente de ser de lá por aqueles dias, parte daquele lugar, no retorno sem nunca ter estado, como aquela história da ‘saudade daquilo que nunca se viveu’, e do ‘amor ferida que dói e não se sente’...desse sentimento que a gente tem daquilo que parece que já vivemos um dia assim que encontramos ‘em algum lugar do passado’, mas presente, supreendentemente vivo.

quinta-feira, 3 de setembro de 2009

Onde está?

O entrelugar está em migração,
Anda em direção ao outro lugar,
O contrário do lugar que era,
O outro inóspito,
Irreconhecível lugar,
De agostos passados,
De setembros passados,
De frio no lugar do sol,
Do calor inclemente,
Inesperado,
De chuva tempestade;
O entrelugar suave,
A delicada transição,
Deliciosa e sutil,
Esvaziou
Na inconstância do clima,
Nas certezas alienadas,
Nas almas em fuga...

segunda-feira, 31 de agosto de 2009

Azeitonar

Aquela reunião regada a vinho se repetira;
Dessa vez era um Rosé, quase um licor de morangos excessivamente maduros, barato, mas degustado com prazer; com jeito de caro nas mesmas taças repetidas, ávidas pelos lábios;
O vinho era fálico e o corpo amolecia;
As falas reverberavam na alma e os ouvidos se distraíam e voltavam, sem pudor de não ouvir, de não ter qualquer parecer sensato a dar, senão o contemplar do aconchego e da familiaridade do instante;
Na mesa o pequeno prato com azeitonas verdes e nas bocas o experimentar sendento das esperanças, verdes;
E as verdes esperanças eram engolidas sem respirar entre os dizeres e risos já amarelados, querendo esverdear de novo, azeitonar, com o sal na medida e o oliva reparador...

quinta-feira, 27 de agosto de 2009

Com quem será?

Sua cabeça fervilhava, mas não de uma perfusão de acontecimentos, lembranças ou versações da alma, e sim de um único assunto, o qual nada nem ninguém jamais conseguiria remover. Virgílio tinha, aparentemente, meia idade, porém nada em sua imagem revelava desgaste excessivo; o corpo era esbelto em baixa estatura, os dentes bem cuidados e as linhas pela face ainda rasas. Ela o conhecera na rua mesmo, paralela à estação do metrô, de camisa azul com logotipo, calças jeans. Os cabelos grisalhos colaboravam com a aparência distinta, mas o sorriso revelava algo de torpe, sedutor e enganador. Encontraram-se algumas vezes, muitas talvez. Contudo, a vida dele sempre pareceu, a ela, um tanto nebulosa. Diziam que era separado da esposa, era professor de instituição reconhecida, ainda que não ganhasse muito; pegava o trem urbano todos os dias e, por vezes, na sexta, tirava seu carrinho da garagem. Seus encontros foram sempre furtivos, guardados para beijos e roçar de pele e pêlos e mãos exploradoras, na praça, no bar, no cantinho escuro da rua. Nesse tempo ela andava com sorriso sonhador e queixo avermelhado. Disso tudo, sobrou quase nada na alma dele e tudo na dela, uma batida forte na cabeça; Virgílio, Virgílio, Virgílio...e uma seqüência de ladainhas, tanto que as falas se repetiam e também as inconclusões.“ Ele está com ela. Tô falando. Ela, a Mariângela, é ela, ou então é a filha dela, porque a filha dela é nova, bonita.” Outras vezes se lembrava de Mara, uma vizinha, que tinha se envolvido com Virgílio em primeira mão, ‘aquela traidora, que me trazia salgadinhos com a cara mais limpa’. Depois era a Gina, negra corpulenta da escola, bem vestida com pose no carrão. Mas agora era mesmo a Mariângela; ‘a conversa dela é esquisita. Ela comprou até cama de casal. Agora deve estar lá deitada com ele no bem bom e eu aqui sozinha.’ Ela se ressentia por não ter dado boa vida ao Virgílio. Lamentava não ter lhe dado a comida quentinha e outras quenturas descaradamente. 'Eu acho que a Mariângela deu até carro pra ele. Eu vi ele saindo do prédio dela na hora do almoço. Bem, ou tá com ela a Mariângela, ou com a filha dela, que é nova, bonita.' E interpelava e concluía: ‘ele não presta né? Nem vou mais ligar pra ele; ele não presta mesmo...mas é tão bonitinho...eu gostei tanto dele...’ E duvidava: ‘ou ta com ela, a Mariângela, ou com a filha dela, ou com a Mara...ele teve um caso com a Gina também...’

terça-feira, 18 de agosto de 2009

Aparição

Aparição é coisa de assustar. Tem visões que nem são visões e são visões, porque parecem visões. De tanto esperar e evitar e esperar aquela imagem, a surpresa pelo privilégio daquilo divinizado diante de si, fez faltar o ar. O corpo ganhou tamanha capacidade de sobrevivência e os tecidos, todas as células ficaram atléticas, apnéicas, mudamente histéricas, amitocondriais, enquanto a imagem dela desaparecia frente a sua fisiologia alterada naquele instante. Tudo que poderia ter dito se calou, porque o instinto de sobrevivência não permitiu nem raciocínio, nem fala que valesse ou suportasse a confusão por dentro dela. E a torcida era toda para que ninguém percebesse, tão incomum pareceria algo assim não dito e tão vívido e vivido. E qualquer gesto não valeria, porque simplesmente, tudo o que se apoderara dela era uma espécie de dormência, porque, afinal de contas, não havia mais oxigênio em parte alguma. Aparição é coisa de tirar o ar e não cabe entendimento algum. É uma espécie de constatação sem argumentos e sem salvação, simplesmente aparição.

segunda-feira, 17 de agosto de 2009

Uma cama no além

Ele vinha sempre, nos últimos meses, deitar-se ao seu lado na cama, naquela cama que insistentemente adquiriu, mais ampla, como se realmente houvesse alguém pra se deitar ali todos os dias, desde sempre. Foi divino já tê-la ali, espaçosa, ainda antes que ele chegasse. De fato, ele parecia meio fantasmagórico, posto que nem sempre se deitava na mesma hora que ela, nem mesmo se levantava quando os olhos dela se abriam para as manhãs obrigatórias, com seu coração ainda em sono de sonho. Ele surgia em horas imprevistas quando a mente dela divagava e o peito ansiava um afago, e o corpo sofria de uma angústia inexplicável. E ela se alegrava por tê-la, a cama tão grande pra que ele se aconchegasse, mesmo que não ocupasse todos os espaços, sempre insistente que era na superposição de corpos, como se o vazio o aterrasse, o vazio daquela cama. O rosto dele nem sempre vinha o mesmo, muito menos o corpo; por vezes parecia-se com alguém conhecido, mas ela pressentia que, de verdade, o reconhecimento era algo forçado, como se um fantasma não coubesse naquela cama, mas antes um desejo bem formulado, exato dos gestos que seu corpo pedia sem reservas. E aquele desprendimento todo, aqueles arrepios e convulsões vinham de um jeito sôfrego, porque sempre aquele que vinha se afastava, mas sem movimento algum, e aquele espaço da cama de estendia no além...

quinta-feira, 6 de agosto de 2009

Soletrado

In-sig-ni-fi-cân-cia… Era assim desse jeito soletrado que seu sentimento vinha, quase num ecoar de badaladas de sino intermitente, e essa palavra tinha quase a exata substância do que ela sentira durante muitos anos de sua vida, embora, por vezes, tentasse se enganar. E aquelas imagens de rotina, que vez por outra se mesclavam com uma ordem de insatisfação com tudo, mas sobretudo, com o passar do tempo irremediável. Ao lado aquela face já marcada e aquelas mãos já gastas no traje preto e nas pulseiras de contas a rememorar um tempo; e num paradoxo a mesma inquietude com o bater forte do sol na pele ainda sensível. Na descida de um ponto de ônibus qualquer aquela outra face de dentes alvos e olhos arbóreos, quase um esperar calmo, sem desatino, uma promessa. Mais uns passos e lá vinha a fadinha no borboletar de asas e óculos cor de rosa e aquele vestidinho verde água puxados pela mãe, apenas uma fantasia da vida que por não se saber vida real, sobrevive imageticamente, com delicada força, até desaparecer... assim como o passar do tempo...até desaparecer...In-su-por-tá-vel, assim soletrado também, era toda a ambiência em que ela se apresentava, porque dentro de si havia algo que faltava tão densamente, que transfigurava tudo a sua volta num remoer de coisa já moída, prestes a desaparecer...E ela não queria ser solidária, companheira, nada do esperado dos outros, senão a pura imagem do desprezo por tudo a sua volta, porque dentro tudo era confuso e triste e não havia sentidos para se mover nem sequer com os olhos, nem para ouvir quaisquer palavras, posto que tudo soava fúnebre ou irritante. E os sorrisos a sua volta eram luzes piscantes, ‘insubstantes’, e naquele mero instante vinha um sentimento de também querer sorrir, mas o rosto encontrava-se de tal forma retesado, que o sorriso sairia mais um desagrado ou um susto de dentes à mostra por força que por querença. E aquele movimento todo em busca do nada e do tudo a sua volta era um passo inconsistente no vácuo...e naquela vastidão aprisionada nas beiras de uma mesa qualquer, de umas paredes quaisquer, de uns aparelhos inevitáveis ela se postava feito um artefato qualquer, crente que alguém a confundisse, a esquecesse, até desaparecer...De-sa-pa-re-cer, soletrado assim...tinha algo de sublime que ela não queria, senão o desaparecer rápido, sem sílabas, num átimo...Que fosse o desaparecer esse próprio segundo, mas de primeira leva, sem seguridade, lamentações e hesitações...Sumir....Su-mir....até desaparecer...sem voz que sair, sem ouvido que guardar, sem olhos que consentir, sem nariz que farejar...Es-que-ci-men-to...

segunda-feira, 3 de agosto de 2009

Sono

Ninguém me subjuga ou me submete. Minto. O sono é meu dono; sujeito tentador e misterioso que me ronda todas as noites e pelos dias assalta-me a lucidez, a ingênua lucidez de estar acordado. Porque em verdade é quando acordo que durmo e quando durmo acordo para o mundo da irrealidade mais real e desejável que possa existir; estar com ele; o sono, é melhor que tudo. Quantas histórias ele me revela e dizem que elas já estavam lá, e ele, o sono, é só um despertar. Que sossego me dá; ele, o sono, que me tira a dúvida, pois que me faz não pensar. E nesse instante, minha mente é contingente de todos os sonhos pensados e impensados; o sono é esse louco amante que me submete, me subverte a todas as impropriedades do real, dessa sonolência de viver acordado, sem ser amado. Porque o sono...Ahh...o sono, ele ama-me com ternura indecente, com afagos irreverentes, com momentos inexistentes que estão lá a me espiar quando durmo acordada. O sono vem me acordar na dormida mais incógnita e aventureira que se pode pensar, pois que ele quer-me tão bem, que não me ilude com possibilidades, porque se pensarmos bem, as possibilidades nem sempre são prováveis, e isso faz-nos tristes e alegres, porque vem ele o sono acalentar; grávido dos sonhos, ele me carrega e embala e me arremessa sem piedade, e me faz de alguma forma reviver...

terça-feira, 28 de julho de 2009

De que me vale...?

De que me vale saber o seu nome e o que vai dentro da sua alma? De nada vale, pois que seu aspecto externo, a visão que tenho de você, e até mesmo da idéia auditiva que tenho do farfalhar das mangas de sua blusa sobre sua pele e do seu sapatear nos passeios já são tudo o que quero? E ainda assim teimo em não querer, por querer tanto assim esse externo que o envolve numa aurora ou num crepúsculo de mistério sem mistério algum, senão essa imagem que me submete em pensar em ti em qualquer instante e em instante algum... De tudo valeria se sua alma fosse alguma expectativa minha, mas em tudo sou confusa e infiel, posto que do seu externo penso românticos os gestos, mas em suas palavras dói-me a alma por serem às vezes ríspidas e impositivas. Assim, de nada continua valer tê-lo de corpo e alma, mas apenas vale essa bruma que o encobre pelos caminhos que visito e imagino. E de tudo, vale-me tanto a emoção que sinto ao pensar em você, nem belo, nem feio, mas de um feitio aterrador e inspirador para minhas ânsias sexuais, mas sempre e eternamente emocionais e textuais. Por isso, esse seu externo me toca tanto, esse seu personagem sem alma, sem nome, com quem posso criar qualquer roteiro, de chegada ou de partida, mas verdadeiramente sempre de partida, pra voltar com outras vestes e farfalhares de mangas e braços pendentes de abraços, e ombros ligeiramente projetados no ir e ao mesmo tempo caídos ou a volver para trás...De nada vale saber de dentro de você, porque só dentro de mim você se faz e se refaz no mistério, na curiosidade, e até no pensamento exato que se formou em qualquer tempo em minha mente, ou em outra qualquer que eu tenha roubado, e levianamente e inocentemente pensei que pensei...De nada vale ter você completo por fora e por dentro, pois tudo vale só pelo meu pensamento de você...desse externo e de todas as cores que você veste; do branco sóbrio, do vermelho quente, do verde quase anil...ou mesmo da cor da pele, revestida de suores e cheiros imaginários...

quarta-feira, 22 de julho de 2009

Não vivo sem Pp(essoa)

Não consigo mais viver sem Pessoa
Mas o Pessoa Fernando
Esse eu sinto e leio mais pessoa
Por isso não vivo mais sem ele
Porque por ele me ‘pessoo’ e me ‘desapessoo’
E se seu ‘desassossego’ foi tanto
Nele e com ele me desassossego
Sob pena de me sossegar
E me desapessoar
Por isso ‘Pessoo’ e ‘pessoo’
Não consigo mais viver sem pessoa...
Mas ele já vive sem mim algum tempo
Sempre viveu algum tempo
Em sossego e desassossego
E se foi no desassossego de nada
E de tudo
Pessoou tanto
Que pessoa eu e você
Até os Fernandos sem pessoa...

segunda-feira, 20 de julho de 2009

Até que os olhos se fecham...

Era uma perfusão de imagens fundidas em uma só, e ainda assim múltiplas, de facetas sérias e sorridentes. Não saberia precisar a exatidão e nem a inexatidão daqueles momentos de mirar-lhe o rosto, por vezes ranhurado das pregas do sorriso, por vezes retesado como um monólito; e por traz daqueles óculos, um certo olhar comprimido, como se fizesse um movimento de acendimento qualquer, pra ver melhor aquilo que diante de seus olhos poderia ser mera ilusão, ou simplesmente a tentativa de driblar o embaçamento das lentes de grau ou a penumbra das lentes de sol. A face se colocava também num relaxamento involuntário e os lábios entreabriam, mostrando os dentes incisivos principais desalinhados com os outros, em posição de riso brando, contemplativo. E as mãos buscavam a curva do ombro ou qualquer pedaço de pano pendente de sol ou luar, sem saber se queria vestir ou despir aquele momento de todas as intempéries do olhar e da audição. Não queria ser visto, mas ver e tocar o lapso de encantamento; encontrar alguma acertiva para os pensamentos involuntários que rondavam seu corpo, e a mente precisava conter o gesto que de tanto se fazer, desfazia-se num respirar vago e incrédulo. Incredulamente passava aqueles momentos diante de imagem meio obtusa, irritante e até ordinária. Credulamente se postava e pedia um afago qualquer que fosse pra crer naquele instante de divindade e afeto, de sonho refeito no último momento, ressuscitado. Roçava-lhe vagamente a pele do pescoço, num átimo, insuficiente para o gosto e o cheiro serem guardados, senão um único fechar de olhos, quando qualquer um aninha-se no outro, como a dormir na instantânea fragilidade de olhos fechados...

sexta-feira, 17 de julho de 2009

Movimento fatal

Poderia escrever algo sobre aquela pipa preta vagando sobre o céu...Sim, poderia pensar na dança da ave negra e do planar solitário no azul, e descrever das mãos do menino naquele movimento firme e rítmico para manter a sensação alada; o vento a bater forte, a pressionar os quadrantes plásticos de uma transparência quase de asa. Alguém me disse algum dia que eu poderia grafar sobre qualquer coisa, até sobre a bula de remédio, já escrita e revolvida por olhos de comiseração por tantas contra-indicações e efeitos fantasmagóricos sobre os patógenos, que nossos olhos só podem ver às custas de cultivos mirabolantes, adocicados, e em grupos de magia colorida e fétida...Poderia discorrer sobre aquela desconhecida mulher grisalha apoiada no meio fio com olhar tenebroso e perdido de coragem, de só estar ali sob a mira dos olhos chocados de interrogação...Poderia dizer em palavras rotineiras da repetição do trabalho do escritório, dos ares de respostas obrigatórias, dos atendimentos telefônicos e das faces escondidas sobre a docilidade da voz, da pilha de papéis inertes e esquecidos sobre as mesas e do barulho insuportável do ar condicionado e dos carros lá fora...Poderia falar de qualquer coisa e grafar com ares poéticos...Mas sinto uma vaguidão qualquer e um sentimento de dizer e escrever o que ninguém jamais escreveu e mesmo assim, forçosamente, devo admitir que tudo já foi dito e escrito, e isso também já foi dito e redito... Pobre de mim, mas sonho e queria vestes irreconhecíveis pra que as histórias soassem novas, e as palavras estivessem ali feito leito manso de rio, a receber corpos animados e inanimados a transbordá-lo de outras vestes...Mas escrever essa primeira veste que se reveste irremediavelmente de outras eu queria...Queria não me identificar com nenhuma escrita, nenhum dito, e me apossar da palavra última, pra que ninguém mais a dissesse em qualquer combinação que fosse, pra não amargar o sofrer de imaginar que ela está lá de alguma forma. Queria a palavra esquecida e lembrada apenas por um instante, repetida sem lembrança de ser repetida...Queria e não queria, porque ao mesmo tempo que me toca o afã da originalidade, tocam-me também as reedições dos pensamentos, dos livros que nunca pensei fossem ler de mim ou de qualquer outro pobre fazedor de historinhas que fosse...porque foi dito e não foi dito está em qualquer lugar, na memória esquecida e nas virtuosidades da lembrança, do aconchego, do reconhecimento da palavra cotidiana, do afeto e do desafeto com a palavra...e o estranhamento da palavra é só um entrelugar que se desfaz e se refaz, e a ida pro lugar estranho e o retorno pra esse mesmo lugar já reconhecido é um movimento fatal de qualquer fazedor de histórias, vivedor de histórias...

quinta-feira, 16 de julho de 2009

(In)exata cadência

Sofro. Sofro pela falta de momentos de desgarramento de mim mesmo. Preso na inconstante e forjada imaginação, me tomo de todas as delícias que a realidade não me permite, não me concede; porque também não se concedem delícias a ninguém, senão a um personagem qualquer, iludido no viver da realidade inexistente. Gostei de você, confesso! Gosto! Mil vezes confesso! Mas sem saber e crente ao mesmo tempo, certo como um devoto. Contudo, só o soube muito além da devoção e das possibilidades várias, irremediáveis e até improváveis.

Era tudo meio nebuloso mesmo, e ainda continua assim, escuro feito nuvem cinza, porém vagante, deixando o céu a descoberto por instantes. E nessa escuridão e por esse clarão, chego a sentir por momentos a solidez de um sentimento, irreconhecível, perdido e achado, perdido de novo e encontrado num lapso, num anuviamento da mente.

Agora tenho que admitir; gosto de você de um jeito estranho, não porque intuo que você não gosta e teimo em querer impossibilidades, mas porque você parece ter gostado de mim um dia, mesmo sem saber; disse que não sabia em olhos de interrogação; disse que sabia em olhos de contemplação.

O gostar de você, simplesmente, é o gosto do gosto dos pensamentos que me tomam todas a manhãs e em todas as horas que se fazem manhãs entre sono e lucidez, quando adormeço, por querer e não querer. E nos dias frios, em que o vento corta os intervalos da trama da lã da blusa, enrigela tudo por dentro, e a alma sonha sonhos de você. Algo que parece já ser o cume de uma geleira, apercebe-se quentura, por isso sente o gelo.

Até o cachorrinho castanho deitado na calçada imensa, com um tomate maduro, rubro ao extremo, diante de si, provoca-me arroubos de calafrios e febre, enquanto você me vem em passos firmes e entrevejo seus lábios vermelhos, quase fruta a derreter. E aquele senhor da vila, sentado na mesma calçada larga, encolhido, encurvado com seu cortador de unha a postos, extirpando as partes mortas, lembra-me ao longe uma fotografia de um parque distante, de alguém que não veio pra ficar, e dentro de mim se faz vila de outono, com folhas caídas, nariz enrubescido e olhos lacrimejantes.

Lembro-me de você e tenho dúvidas sobre se lembro de você ou do que imagino de você ou de mim com você, inimagináveis imagináveis, como num filme, a exata ficção; como na realidade, parca fragmentada, na (in)exata cadência do sentir.

segunda-feira, 13 de julho de 2009

Caminho matinal

Todas as manhãs ele a acordava com aquele suave roçar de lábios em cada meandro, em cada curvatura e reentrância de seu corpo ainda sonolento. E ela se punha quase inerte; temia que seu movimento o fizesse recuar. Era quase um despertar de cada sentido, como se ao final daquele ritual despudorado e delicado, ela finalmente acordasse com sensação de completude, com a percepção de cada parte e o todo, por vezes, até reconhecível. Era esse mimo de todas as manhãs, antes do sol se erguer por completo, que refazia as desajeitadas palavras, as indiferenças do dia a dia, que nem de longe se pareciam com aquele toque matinal, quase um nascer de nervos e capilares inertes, massacrados no quotidiano, e mesmo da noite de gestos urgentes de um prazer, de um instantâneo, de um apagar da memória e de um respirar ofegante, quase egoísta. Mas aquele caminho dos lábios pela manhã o redimia e o cobria de uma aura qualquer, de uma quase arqueologia a cada dia, dos cheiros, dos suores, da temperatura, da textura e das divagações lineares e obtusas de cada conjunto muscular, das tremuras e suspiros da pele e da alma no entressono. Tudo se reencontrava ali naquele instante, e ela despertava e se fingia de sonho, enquanto ele farejava sua superfície meio atônito, mas a controlar a exata tensão para não acordá-la...pra não cessar a noite, para não nascer o dia; para fixar-se na relativa luminosidade da aurora...e esquecer-se do ocaso...

segunda-feira, 6 de julho de 2009

Depois daquele tempo

Depois daquele tempo, em que a juventude já passara, mas ainda sobravam alguns resquícios, as pupilas brilhantes, os olhos meio rasos ao acordar...
Depois daquele tempo, quase um tempo milimétrico diante da imensidão das horas incontáveis, irreprimíveis de tantas vivências, os olhos subitamente começaram a mergulhar em poço fundo, suas órbitas ganharam bordas arroxeadas...
Depois daquele tempo, em que o sorriso se abria em músculos bem assentados, em gordurosas bochechas e covas, o riso começara a ficar solto, sem os limites aconchegantes de tempos outrora...e a graciosidade das marcas esculpidas desde o nascedouro escapavam...
Depois daquele tempo, os ossos da face já eram indiscretamente visíveis, marcando ângulos antes submersos; praticamente era possível entrever o esqueleto frágil, a verdade óssea camuflada...
Depois daquele tempo, o espelho não devolvia mais aquela imagem suave, de contornos agradáveis e harmônicos; via-se agora a irrupção de qualquer coisa, não se sabia qual, de passar e não voltar...de flexibilidade débil, como um esgarçamento qualquer...
Depois daquele tempo, o sono não servia mais de elixir e o rosto retornava até em pesadelo; sôfrego, não trazia mais o gesto do sonho encantado...

quinta-feira, 2 de julho de 2009

Algo mejor!

Tienen que conseguir algo mejor! Adamina de Las Casas esbravejava com a nora bem na descida do morro. Bem altas as duas, pareciam quase as extensão íngreme daquela rua que ia dar exatamente na vila onde o filho de Adamina resolvera construir seu ninho de amor e sua oficina de circo. A reforma seguia lenta e ainda se entreviam as vigas que iriam sustentar as paredes sobrepostas. As superfícies aos poucos iam ganhando tons alegres de cor, amarelo, azul e vermelho. Na porta, a kombi, mimetizada de palhaço, parecia mais um da trupe, e os olhos de Adamina cada vez mais estilhaçados de tanto terror. Pois então, não havia vindo de Buenos Aires exatamente pra ver todos bem acomodados? Artistas tão talentosos deveriam mesmo fazer muito sucesso no Brasil. Os projetos se multiplicavam; era visível naquele espaço pouco aconchegante. Ali se amontoavam pernas de pau, vestimentas, perucas, lonas e várias fotos na parede. No chão uns colchonetes e nas faces as almas repletas, mas Adamina ficara injuriada; Tienen que conseguir algo mejor!

quarta-feira, 1 de julho de 2009

Vinho

Vinha na mão aquela taça
De vermelho uva
Doce e alcólico
E você descontrolava palavras
Soltava riso e choro
Soltava imensa confusão

Vinha na mão vinho
Em taça firme e escorregadia
De líquido denso
Na língua faminta
Ardor de desilusão acre
Fulgor de ilusão açucarada

Vinha vinho naquela taça
Num tom bonina
Escuro sangue
Desaguando entredentes
Beijo liquefeito
Engolido
Acolhido ninho
Temido vinho
E a face enrubescida
Viva em desalinho

terça-feira, 30 de junho de 2009

?Idéia?

Mudo de idéia toda hora. Mudo de idéia, não aquela súbita, de pronto, perfeitamente utilizável para o momento. Mudo de idéia que cozinha, que ganha e perde arestas, que engurgita e vomita partes de dúvida, partes de medo. Mudo de idéia não porque sou mutante, estreante de uma cena mágica, inovadora. Mudo porque tem um vento presságio que sopra sobre mim, um anúncio sôfrego qualquer, uma outra idéia. A mutante idéia que me atinge é a soma de incongruentes idéias que tomam aquela primeira, assaltam aquele inocente pensar e agir espontâneo. Mudo e desmudo também, retomo aquela idéia já corrompida, gasta e invadida. Num lapso de momento chego a esquecer da idéia, aquela primeira. Mas jamais esqueço, no fundo jamais esqueço...Porque num dado instante era uma idéia de asas fortes e transparentes, e mesmo depois quando vira mariposa fincada na parede, ou a esvoaçar como num filme de terror, ela reivindica um agir qualquer, mesmo distorcido, assustado. Mudo de idéia, assusto a idéia, acalento a idéia e chego a ficar sem idéia; e a idéia mais óbvia me toma, a partícula mais presente, mais reluzente; a procura da
?idéia?...

sexta-feira, 26 de junho de 2009

Óculos

- Como você enxerga sem óculos?
- Como?
- Tenho curiosidade...como você enxerga sem óculos?
- Ah...tudo embaçado...o bonito fica feio e o feio bonito...
- Quer dizer que quando diz que sou bonita é por causa dos óculos?
- Mais ou menos...
- Explique-se melhor, por favor...
- O bonito não fica tão bonito...é isso....fica tudo meio borrado....os limites pouco definidos...mas no fundo no fundo dá pra sentir que sem óculos é bonito...
- Se apaixonou por mim de óculos ou sem óculos?
- De óculos...é claro...
- Qual meu problema sem os óculos então?
- Ora...estou sempre com eles...
- E se tivesse sem eles por algum motivo, exatamente, naquele dia em que me viu pela primeira vez?
- Não sei...talvez nem tivesse visto...vejo borrado sem óculos, mas só de perto...de longe vejo quase nada...
- Quer dizer que sem óculos eu seria quase nada?
- Não, não é isso...corrijo...meus óculos são como lupa, aumentam a beleza e a feiúra...sua beleza aumentou meu amor...
- Ah bom...mas tire os óculos por favor...quero ver os seus olhos...
- Não gosto deles sem óculos...eles, os óculos, me fazem apropriar do limite e me esquecer da imprecisão...da verdade...
- Já entendi...me vê mais bonita de óculos...tudo bem...não vive sem eles mesmo...

quinta-feira, 25 de junho de 2009

'Parecimento'

Acho que o problema é o ‘parecimento’. Tive olhando assim, com calma, o andar, o olhar, o desajeitar, o confuso do pensar...até o medo que dá nela. Oh gente, como parece comigo aquela menina. Tô crente que gosto dela, mas de repente mudo de pensamento; penso que é tanto parecimento...Será que dá certo isso Meu Deus? Parecimento parece aparição...a gente ali na outra pessoa. Me vejo nela assim com o passar rápido, numa correria danada nem sei pra quê...Me vejo naquela menina de olhar encantado, de desejo forte e fraco, de pisar flutuante pela visão inquietante do amor, e ao mesmo tempo de pisar pesado nos fazeres de todo dia. De verdade mesmo? Nem sei se é tanto parecimento assim, mas parece que é, sabe? Fico imaginando o jeito dela e tudo que vem neste meu olhar meio anuviado é parecer, é espelho. Nunca gostei assim de ninguém que tivesse parecimento comigo...nunquinha... Agora tô assim mais confuso ainda, porque nem vejo tanta beleza assim, muito menos elegância e acordo, mas acordo pensando nela, desajeitada abrindo os olhos, espreguiçando embolada em monte de pano, meio tonta e mal humorada, cheia de conversa séria, poética e, às vezes, tão real que dói. Penso nesse parecimento comigo, nessa dúvida até de mim mesmo e desse meu gostar diferente que nasceu...Oh gente...é tanto parecimento que nem sei...Parece que tô gostando dela...

quarta-feira, 24 de junho de 2009

Cansara-se

Cansara-se daquela boca entreaberta, nem palavra nem silêncio. Cansara-se daquele dito ínfimo, quase balbuciado, cheio de crispas, mal dizeres escondidos. Cansara-se daqueles dentes cerrados, apertados a impedir a saída do som límpido e libertado. Cansara-se de ter ao lado um não quisto, um quisto indelével, impertinente, quase um nada vestido de tudo, com poses dominantes, olhares foscos, irritantemente olhares, olhares sem querer; só obrigação, numa espécie de comiseração necessária, incontrolável. A face dele tinha mudado nos últimos tempos...ou será que ela não o enxergara antes? Realmente não sabia o que acontecera, mas tinha suas náuseas estomacais aumentadas e um tilintar na cabeça e uma dor no coração que se rompia em lágrimas engolidas, feito cachoeira virando poço fundo, sem saída. Ela queria entender como ele se transformara assim, ou se sempre fora o imperceptível...a mancha escondida naquele ar de todos os dias, um ar desgastado e corrompido por interesses pessoais, desumanizado...de peças carcomidas, enferrujadas pela ausência do lubrificante carinho e respeito.

sexta-feira, 19 de junho de 2009

Linha círculo

Nada mais lhe tirava tanto o sono como a incerteza. A dormida era entrecortada, poder-se-ia dizer um dormir cansado como um susto vago, sem explicações plausíveis, senão a dúvida. Afonso aparecera do nada e ela tinha medo que desaparecesse da mesma maneira, que deixasse apenas lembranças frágeis, imagens borradas. Sua cabeça pesava de uma densidade desconhecida, quase um planar e afundar de súbito; um entrelugar, não daqueles lúdicos, misturados, carregados de saberes sobrepostos, pendulares, num vai e vem inconstante e inevitável, mas um pesar sem encanto de fronteira, angustiante. Sua vida andava calma, sem novidades, e ela finalmente descobrira que sua própria existência, sua família, seus amigos e suas pequenas conquistas do dia-a-dia eram um mundo, senão feliz, até razoável. Mas Afonso entrara e virara um tilintar impreciso, às vezes encantador e amigo, às vezes estranho e perturbador. Vinha aquela sensação do que viria a ser, de alguma fração escapada, a que se habituara, e ela sinceramente receava alterar e retomar expectativas que não figuravam mais em seus horizontes. Mas depois de Afonso, seu horizonte não era mais sóbrio e tênue a perder de vista, tranqüilizante. Era uma linha em desassossego, uma corda de brincadeira de criança, balançada à exaustão e deixada de lado, uma linha círculo, duvidosa.

quinta-feira, 18 de junho de 2009

Cortejo de risos em Nossa Senhora

Os pingos de chuva desciam na coreografia do vento. Fria e copiosa, a chuva, às vezes branda, era persistente. A rua Nossa Senhora de Copacabana se estendia até o sem fim e na procura da estação do metrô Siqueira Campos a moça menina de véu branco, contas pretas no colo e vestidinho curto de motivos indianos, esgueirava-se por entre as raras sombrinhas, posto que a maior parte dos passantes preferiam as marquises e as corridas nos intervalos. Uns iam bem agasalhados, outros em clima de praia; todos confusos diante do choro do céu e da ventania.

Marcinha pequenina ia na cadência de suas canelas finas, ligeiramente arqueadas e ágeis, na liderança das outras duas. Estas iam sempre atrasadas a sorrir e se lamentar do tempo ruim, principalmente porque a caminhada sucedera um considerável prato feito de carne de panela e aipim; isto depois de um banho de mar morno regado à chuva friinha bem na pontinha da praia, beirando as rochosas do Arpoador, e da providencial banana debaixo dos cavaletes pra pranchas na calçada. Pareciam três meninas desavisadas, em busca do mar, na fuga da chuva; teimosas e insistentes com o tempo, no eterno esperar do sol, mas sinceramente desapontadas.

Até que em uma das quadras, quase no meio da romaria em Nossa Senhora, deu-se o curioso sorriso do mendigo, digno de lembrança. Marcinha de véu suscitou risos incontroláveis no figura ali meio deitado, barbas compridas e pele morena, e as companheiras pegaram ele no ponto e sorriram também da corrida da menina do véu. Não se sabe ao certo que grotesco ele percebeu, se a figura misturada, se o ritmo, se o cortejo nada religioso em meio à multidão, mas gargalhou deliciosamente e fez da chuva um riso...

quarta-feira, 17 de junho de 2009

Revisto

Há lugares que revisitamos e nos tomamos subitamente de desagrado, de sensação repetida, enquanto outros parecem sempre novos, ou velhos o suficiente para nos dar sensação de aconchego. Há lugares falados, repetidos ao extremo e ainda assim novos. Aquela rua desaguando na montanha, aqueles largos apinhados de carteados de chapéu e cãs, a lanchonete da esquina com seus notívagos sonolentos, o museu parque de águias de asas abertas no embalo de mais uma caçada e o sobrevôo do avião gigante; a família canina de jogos e brincadeiras à beira mar, o patinho mergulhão, as elegantes gaivotas e os urubus, de negritude rara. Uns chamam Catete, outros Aterro do Flamengo, uma linha divisória tênue no entre, de histórias Machadianas, de habitat nobre e até ditatorial, mas hoje, delicado, esquecido e lembrado. Um lugar no Rio de Janeiro para ficar, passar sem medo, revisitar.

Visita

Quero que me visite,
Mas só os pedaços;
Quero que se despeça,
Sem demora, nem pressa;
Quero que venha,
Como dama,
Só cheiro e noite,
E olhos caídos,
A me convidar pro sono;
Sonho juntado,
De pedaços fundidos,
Feito ferro aço,
E maçaricos cortantes,
Ferventes,
Pedaços grudados e esfacelados;
Quero que me visite,
Inteiro e despedaçado,
Descalço,
Inquieto e cálido;
Quero aquele dedo percorrendo faces,
Aquele peito grudado,
A saltitar leve,
A escapar veloz,
Aquele gesto sem restos,
Honesto,
Perdido e honesto...

quarta-feira, 10 de junho de 2009

Sonhos

Sonhos
Claridade na noite
Nos arrabaldes de nós mesmos
Sonhos
Em ângulos dispersos
Incongruentes
Na congruência dos desejos
Sonhos
De olhos cegos
E mentes iluminadas
Até raiar o dia
Até cair a noite
Sonhos
Inventos de vida
Precipícios
Planuras
Aquele fio horizonte
Aquela lâmina d’água
Aquele lusco fusco
Sonhos
Claridade na noite
Nos arrabaldes de nós mesmos....

Imortal

Sonhas imortal ser
Crês na vida em constante surgir
Num trocar compassivo
Sem fim
E tens aversão à morte
Sonhas imortal
Feito quadro de parede justa
Ou preferes um epitáfio sonoro
Sonhas imortal
Tanto que olhas pra si
Tanto tanto
Que esqueces
Sonhas imortal
E não vês
Os outros
Onde poderás ser imortal...

quarta-feira, 3 de junho de 2009

Traslados póstumos

Traslados póstumos nunca fora uma opção instigante de trabalho. Mas sua Caravan era espaçosa, de cor sóbria, e as mortes tão corriqueiras quanto os nascimentos. Só nunca pensara na possibilidade de conviver tão perto da morte, embora ela sempre estivesse a espiar. E foi como uma oportunidade mais ou menos plausível que os traslados pós mortem entraram definitivamente em sua vida. Foi até a casa funerária e ofereceu seus préstimos...Hoje passeia garboso em sua banheira motorizada, mortiça, de letras garrafais cor se sangue anunciando o inevitável...Ressente-se quando alguém manifesta desdém de seu ofício e cumprimenta todos da vila onde mora com sorriso largo, vívido e resignado.

terça-feira, 26 de maio de 2009

Profecias no entrelugar

Algumas ‘profecias’, que em princípio soam como algo vago, dão o ar da graça e nos acompanham por toda a vida. Há alguns anos um professor profetizou a respeito das nossas respostas imunológicas; ‘pode ser que sim, pode ser que não’, ou seja, o cerco de anticorpos se fecha em torno do antígeno, ou não. Aos poucos, percebi claramente a intenção imunológica incerta do corpo, refém de vários fatores - alguns quase secretos -, e sua utilidade perfeita para quase tudo na vida. Algum tempo depois assisti o filme ‘A Máquina’, direção de João Falcão, e lá entoavam uma musiquinha que dizia assim; ‘amanhã pode acontecer tudo, inclusive nada.’ Lembrei-me da afirmação do mestre de outrora e senti a perfeita harmonia com o dizer do filme, das profecias de incertezas. Os serviços de meteorologia tiveram sim, nos últimos anos, assombrosa melhoria. Ainda assim, o tempo dá suas voltas e malandramente nos surpreende. Vivemos nesse turbilhão de setas e objetivos, ou acertamos ou nos acertam, dizem. E nesse meio de profecias incertas, teimamos em acreditar que algo é tão certo e definitivo. A certeza nada mais é que uma muleta manca; precisamos dela para caminhar, mas em cada superfície ela nos expõe a um desequilíbrio obrigatório para a retomada do caminho. Hoje digo e repito ‘o pode ser que sim, pode ser que não’ daquela realidade fisiológica imunológica e apelo para minha imunidade suportar tanta incerteza cheia de certezas incertas e profecias imprevisíveis. Por isso, na dúvida, duvido.

quinta-feira, 21 de maio de 2009

'Levanta essa cabeça'

Levanta essa cabeça...a gente conquista mulher é assim. Falo isso com a minha todo dia e ela nem pode sonhar que fico dizendo isso pras outras. Mas digo. Digo mesmo. Levanta essa cabeça tem efeito de levantar mesmo. É infalível pra entrega de panfletos. Trabalho com isso sabe? E é dureza chegar nas mocinhas que vão atravessar a rua no sinal. O levanta cabeça parece ordem e depois vem o pensamento; será que estou de cabeça baixa? Cabisbaixo é terrível né? A moça olha e pega o papel e tem que ser educada. Por isso sorrio mesmo sem os dentes de cima e dou aquela motivação na galera, principalmente nas moças; levanta essa cabeça...a gente conquista mulher é assim...

quarta-feira, 20 de maio de 2009

Triângulo em descompasso

Novamente ele vinha ocupar os espaços nos seus sonhos de natureza confusa e repetida. Quando vinha o sono profundo, era feito uma espécie de morte; quando vinha o sono breve, era uma tormenta, semelhante ao que ocorre nos delírios de doenças, quase alucinações. O fato é, ele retornava sempre nessa morte ou neste tumulto dela ao dormir. E na última vez veio familiar e estranho em uma terra distante, o sertão de seus antepassados, e de muitos que ainda não passaram. A casa era ocre, toda ela parecia uma terra erodida, não havia móveis e o ar tinha um peso, uma densidade de pó em suspensão. Todos se falavam, mas não pareciam ter intimidade, senão o parentesco. Ela ligava-se a ele de forma persistente mas sem toques; os dois pareciam não interagir com os habitantes da casa, senão entre eles mesmos e com uma weimaraner de olhos claros, de pupilas retintas, quase dois buracos negros. Ele e a cadela cinzenta se afastaram num dado momento e de longe ela os olhava, até que surgiu pretinha entre os dois. A weimaraner os seguia, ele e a pretinha, indefinidamente por todos os cantos da casa, grudava-se ansiosa a eles, não compreendia aquela interposição inusitada, irritante. Uma cena de ciúmes e provocação ali diante de seus olhos em sonho a fez desesperar e acordar e perguntar? Por que ele apareceu de novo e neste triângulo em descompasso?

terça-feira, 19 de maio de 2009

Reconhecer

Ele chegou sorrateiro por trás e colocou suas mãos sobre os olhos de Lia. Não era uma tentativa de ser descoberto como habitualmente se faz, mas de ficar conhecido só pela suavidade e pela temperatura da pele. Temia que seu rosto algum dia revelasse a ela algum traço ou traçado obtuso, alguma incongruência de sentimentos, ou mesmo a ausência completa, naqueles momentos de esquecimento dele mesmo. Toda vez ele repetia esse mesmo gesto na tentativa insone de virar uma surpresa permanente na vida de Lia, mas a virada da moça vinha como um vendaval e aquele beijo rápido de um já visto tirava toda força imaginativa dele. Ele sonhava com uma recepção de enlace desconhecido, quase um reconhecer todo dia; as mãos dela na dele num passeio familiar e inóspito, encantador e aterrador. Então ela se viraria lenta de olhos ainda cerrados e buscaria seus lábios como quem fareja uma congruência, um encaixe inevitável, acolhedor. E assim ele se repetia no gesto e ela também, sem palavras e explicações, até que ele um dia desistiu e subsumiu à rotina dos gestos dela; resolveu olhá-la sempre de frente, ainda que temesse desnudar-se de olhos sem brilho, mandíbulas inertes, quase um desprezo da face. Um dia depois de muitos dias de gestos de desencanto, resolveram não mais se ver, e Lia sonhava todos os dias com aquela virada que ele imaginou; de olhos fechados a farejar e tatear os caminhos da face dele.

quarta-feira, 13 de maio de 2009

Baleiro

Ele vinha sempre naquela hora, bem no finalzinho da tarde com seu apito estridente, imitando um chilrear de ave, um grito de águia. O carrinho do baleiro tinha toda sorte de doces caseiros, balas, pirulitos, chicletes, pipoca à isopor e pequeninos brinquedos de plástico, que aguçavam todas as crianças da rua. Chegavam os olhinhos curiosos na vitrine e viam lá quase um paraíso de delícias. Na mão o trocadinho suado, implorado em casa, e na mente a expectativa de experimentar cada sabor. Lilinho era comprador inveterado, já ficava agitado na hora do baleiro, era o momento mais esperado e feliz do dia. Planejava as compras semanais ao sabor dos olhos e assim ia fruindo um doce de cada cor, de cada formato. Às vezes o menino desatinava tanto que dava bocadas alternadas sem saber ao certo qual era o doce, de forma que os sabores se confundiam e ele no outro dia parecia experimentá-los pela primeira vez. As outras crianças faziam a conferência da compra do Lilinho; havia umas que até copiavam, entravam na onda dele. Achavam a estratégia fabulosa, cheia de artimanhas. Cresceram assim na toada do baleiro, de açucares grudados nos dedos, impregnando línguas de lambidas ávidas, os olhos adocicados...

Passar

Talvez a vida seja mesmo um passar, não uma passagem como dizem por aí. Porque é no verbo que se abrem os caminhos e se fecham outros. Os substantivos são figuras obtusas que denotam limites mais precisos, não carecem de tantos complementos, terminam por se tornar personas, biografias insanas ou cultas. Somos o verbo e por ele desatinamos, mudamos os objetos, fazemos trocas e troças, entrelugamos. Deliciamo-nos com sabores da boca e da alma, e somos pegos pela angustia, nada mais que um passar por dentro. Somos mesmo um passar de asas, de pernas em desalinho, de braços abertos e cruzados, de olhos brilhantes, curiosos, inquisidores e a desaguar. Um passar de tudo que nos acomete e passa sem passar, a serviço do próximo passar...de vaguidão, escuridão ou clarão. Passemos então sem pudores dos olhares sórdidos e inquiridores para nossas respostas indecisas e incompletas.

segunda-feira, 11 de maio de 2009

Anuviados

Ele ficou guardado no tempo, no exato feitio esperado, esculpido na mente com precisões estéticas e incongruências cegas. Permaneceu na adolescência sonhadora e na juventude infantil, de batidas disparadas no coração, de suores gélidos e tonteiras passageiras, na subida da rua, na descida, no recreio da escola, no meio fio e em tantos passeios no entorno do colégio, da casa e da praça. Virou menino de olhar anuviado, nariz empinado, e no sonho desse olhar e desse passar que nunca a vira ele se foi. E bem depois, solidificou-se no olhar desencontrado que nunca a tinha visto mais uma vez, embora ela jurasse de pés juntos que ele olhara pra ela sem olhar. Encontraram-se e desencontraram-se sem as reverências justas ao amor que ela devotava a ele. Passaram-se anos bem depois do depois e nada cresceu ali senão lembranças engraçadas e até nobres de uma ilusão de amor de quem nem sabia o que era amor, mas o fantasiara de todas as formas, rodeado de guirlandas, de sorriso largo de menino quando mostra os dentes depois de retirados os aparelhos ortodôndicos; daquele dia de liberdade do riso dele, das olimpíadas do colégio e das pernas finas correndo no salão atrás da bola com tênis redley e recebendo as medalhas de ouro. Depois do bem depois e dos anos bem depois do depois o menino permenacia lá, magrinho, de andar meio contido e olhos brilhantes de pupilas sangrando a enganar os olhos da menina que ele nunca vira...A menina é que tinha os olhos anuviados e nem sabia...

sexta-feira, 8 de maio de 2009

Arte por Cony...

‘Quem é feliz não escreve, não faz arte’, disse Carlos Heitor Cony em uma entrevista. No início aquela afirmação transpareceu algo nubloso, quase uma ofensa às artes, para ele seguidoras da inquieta tristeza. E disse mais o Cony, mais ou menos assim; ‘talvez isso só não valha para a música’. Então a música de todas as artes seria a única que poderia se harmonizar com a felicidade? Por quê? Difícil resposta. Quem sabe a arte não seja apenas catarse; o discurso já tão repetido da catarse, a expressão pura do sofrimento? Pode ser. E quem faz música não sofre? Somente se diverte? Quem sabe. Cony quis simplesmente dizer que pra viver, a maior arte, não carece arte. Não há tempo para ela, porque a gente incorpora de tal forma a arte, com tamanha intensidade, que vamos viver e ser objeto de arte de alguém entristecido por aí. E a música? Talvez uma transpiração dos sons da gente, um fruir, muitas vezes coletivo, um fisiológico que não ocupa os escassos tempos de uma vida.

Era pra ser o sim do não?

‘Vai ver não é pra ser mesmo’, profetizou. Engraçado como as expectativas mal acomodadas, mal realizadas se convertem em ‘inexpectativas’; ‘vai ver não era pra ser mesmo’...será? Era pra ser o quê ora? Vai ver não era pra ser mesmo, senão um esperar inconstante, perguntador...Afinal de contas...o que era pra ser? Se nem se sabe o que era pra ser como se vai saber que não era pra ser mesmo? Eh teimosia da expectativa, esperança do ser acontecer. Não era para ser nada e tudo. Nada estava pronto; nada não tinha script, roteiro, mas o filme estava lá...Nada era vazio e multidão de esperas. Então, não vem com essa ‘vai ver não era pra ser’...Era pra ser o quê? Vai ver só era pra ser o não, o sim do não, o que ficou só na imaginação.

quarta-feira, 6 de maio de 2009

O sushi da Ana

E lá foi ela degustar o famoso sushi da Ana Paula. Mas desta vez queria mais que simplesmente o contato prazeroso do sabor do bolinho japonês, encharcado de shoyo, nas papilas gustativas. Fora mesmo pelo gosto do encontro com a amiga, posto ter fruído a sensação um tanto inusitada de outra vez, nem sabor, nem desabor; talvez mero reconhecimento. Naquele passado, a angústia de experimentar fez do momento um anuviamento, um apressamento de quem quer saber quase sem saber. As mãos disputavam sem cerimônias os bolinhos recém nascidos sem o cuidado da mesa posta e o agradecimento ao cozinheiro. Mas desta vez, ela vaticinara; o sushi sumiria e se esconderia feito uma lembrança e um esquecimento, pois seria somente mero pretexto de afeto. A considerar pelo tempo e pelo cuidado necessário para o preparo, seria quase um degustar de palavras delicadas, lembranças e risos. E assim foi aquela tarde, porém sem os exageros de formalidades, regada ao tom de humor dos convidados e pincelados de raiz forte brava wasabi. Os grãos de arroz bem unidos, sem vergonha dos soltinhos; a alga bem enrolada virando flor, os cortes suaves da lâmina em lágrimas; tomates secos, salmão e cream cheese; quase um encontrar de propósitos raros.

sexta-feira, 24 de abril de 2009

A suprema cronicidade cênica

E a corte suprema, o Supremo Tribunal Federal, a residência dos soberanos homens de capa preta se reuniu em sessão solene na última quarta-feira, dia 22, logo após as comemorações do Dia de Tiradentes. Mas os ânimos latentes resolveram se manifestar de forma veemente, sem nenhum galanteio ou cordialidade, senão um tanto de desafetos estourados repletos de humores de acusação fundadas em informações há muito, desde sempre varridas ou simplesmente cindidas, vagas o suficiente para garantir os ritos ordinários e até extraordinários sob as vestes da justiça.

Assim seguem os supremos tribunais e quaisquer instituições de deliberação coletiva, que antes de qualquer outro interesse, deveriam atentar para o interesse público. Até que alguém resolve se insurgir de modo ‘descortês’ e põe em leilão uma história mal contata para ser bem contada. E a mídia atenta cada vez mais ao teor espetacular, às cenas de imagens escandalosas e sorrisos irônicos, na busca de uma audiência estarrecida, em dúvida sobre o exato gênero encenado, ou quem sabe a certeza sobre o perfeito entrelugar tragicômico.

Enquanto isso, o olhar curioso, crítico, investigativo, democrático às partes envolvidas, rende-se à exibição fragmentada, no estilo cada vez mais mercadológico. E as notícias na TV se seguem na ordem ‘suítes’, se possível também na cadência cênica cheia de atrativos, em uma cronicidade sem causas aparentes, de etiologia vaga, recuperando fatos de interesses duvidosos.

segunda-feira, 20 de abril de 2009

Repetidor Barthiniano

O amor se repetia. Vinha de todas formas, só aparentemente diferentes, mas iguais e repletas de todos os sentimentos cabíveis e incabíveis. O amor se repetia tanto que cansava. Porém, chegava disfarçado de novo, de expectativas nobres, de desejos incontidos, de toques descomedidos. Era sempre na epiderme que ele se mirava, no intervalo de pêlos sobre a pele e até nos mesmos pêlos prestes a cair, ou serenamente cortados, sem dor. Mirava-se nas células superficiais, frágeis, farelos. O amor tinha algo de descamação, de substituição provável e inevitável, porque tinha fissura pelo objeto da perda, pelas unhas endurecidas enraizadas na carne, prestes a serem separadas do corpo. O amor ia somente pra vir de novo, na sua pretensa e ilusória originalidade. Era assim; ele, o amor, tinha apego pelas partes sobrepostas que denotavam vida em constante renovação, inconstante. Era o amor pelo amor, não pelo objeto amado. O objeto era vário, mas a curiosidade se renovava exatamente naquele objeto, acusado de conter o amor, apenas por ser improvável; a vida se desfazendo; os fragmentos de epiderme, a causa do desejado amor. O amor se repetia na multiplicação celular, no advento da vida, prenúncio da morte. O amor era atento justamente nas partes que se perdiam no objeto, nos fios de cabelos, nos nacos de unhas, nos pêlos nascidos imponentes, mas arrancados facilmente. O amor se repetia no tom da cantiga da epiderme, insurgente, multiplicadora, mortífera...o amor pele e discurso se repetia como antídoto da vida.

quinta-feira, 16 de abril de 2009

E qual é mesmo a verdade?

A verdade, às vezes, vem a passos lentos, na cadência impositiva da ilusão. E qual é mesmo a verdade? Não passa de um instantâneo? Não seria a ilusão a verdade do momento, tão crível que nos faz cometer desatinos? Então, a verdade é o crível? Dir-me-eis que não. O que crês é ilusão, mentira disfarçada...E qual é mesmo a verdade? Tolo, direis...Verdade verdadeira é um tão somente espaço de tempo e mente na mesma cadência, quase um alento...um piscar de olhos, um registro, um palpável...até vir a escapada, o tempo seguinte e a imagem se desfez, e a crença se compadeceu, morreu pela verdade de mentira...Era uma vez é mentira? Não, era uma vez foi uma vez contada, imaginada, verdade criada...Era uma vez é verdade do momento...virou verdade e se foi no era uma vez...Verdade mesmo a gente corre atrás...Coitada da verdade perseguida...E qual é mesmo a verdade?

segunda-feira, 13 de abril de 2009

Sem pontos e sem palavras

Tem poema
Que nasce
Fininho
Depois ganha corpinho
Devora todas as palavras e pontos
Se enche de três pontinhos
Até ficar embriagado
E se perder no caminho sem pontos e sem palavras

Devorador

Ah...o tempo,
Tempo terrível,
Devorador,
Tempo imprevisível,
De visível passar;
Ah o tempo,
Rato,
Roedor de bocados,
De bocadas precisas,
‘Levador’ de brincadeiras,
Adolescências insones,
‘Adultecências’ cômodas,
Incômodas;
Ah o tempo;
O que o tempo leva...
Tudo o tempo leva;
Antiguidades,
Modernidades,
Atualidades,
Pedaços de quaisquer;
Ah o tempo,
Leva quaisquer...
Pega quaisquer...
Faz lembrança invisível;
Ah o tempo,
Fazedor de lembranças,
De tempos devorados,
Insurgentes e esquecidos na memória...
Desmedido tempo,
Medidor do tempo de qualquer...
Devorador do tempo de qualquer...

quarta-feira, 8 de abril de 2009

Anúncio poema

Ela procurava um chão;
Não um chão qualquer,
De revestimentos foscos ou brilhantes,
De gramados bem aparados ou erosões;
Ela procurava um chão,
De mosaico movediço,
Acolhedor de passos e danças,
Coreografados de última hora;
Ela procurava um chão de fronteira,
Que levanta e afunda,
De sentimento de queda e escalada,
Elástico,
Um pêndulo em forma de chão;
Procura-se um chão movente;
Ela escreveu no sétimo chão,
De um prédio qualquer,
Num chão sobreposto,
Com um pé posto,
E outro em balanço de pensamento...

terça-feira, 7 de abril de 2009

Vira pulo

Quem disse que gato não tem medo de altura? Quem disse nunca se deparou com um felino autêntico. Felino mesmo é aquele que sobe cada vez mais, sem saber como vai descer. Aí é uma choradeira, uma 'miação' dos diabos e aquela pata indecisa. Tem que pegar cadeira, escada, fazer gracinha com voz fina e mansa pra ver se desce. E não desce mesmo; só vê a altura quando está no alto, de baixo acha que é brincadeira. Felino é assim; não pensa pra subir, então sobe feito virasse pulo, e quando assusta está lá no barranco perigoso, com a visão do nada lá em baixo, do nada que é seguro. Por isso chora, mas não resiste; ah... não resiste a agonia encantadora da subida, vira pulo o danado. Foi assim com a gatinha grafite. Acompanhou a mãe no muro, viu árvore de galho bambo, subiu. Ficou o dia todo de castigo, miou...Em vez de descer, subiu mais...Veio o resgate. Agora se acomodou no muro, mas o trauma passa e ela vira pulo de novo.

A moça, o florista e o mendigo

A chuva descia copiosa e escorria pelo toldo da schin, bem na porta do casarão da seresta, na esquina da praça. A moça, o florista e o mendigo se encontraram lá debaixo; um na expectativa do lanche prometido pelo funcionário da casa de materiais de construção; os outros somente na contingência do tempo cinzento e chorão. Enquanto a água caía ao montes chegou o pastel de carne moída e o café quente; ‘cuidado, tá quente demais, não vai queimar a boca.’ E a carne do pastel escapava pelos intervalos de dentes, pela ansiedade do alimento, e caía no chão, e o café descia quente mesmo pela goela ressecada. A moça se virava só em meio círculo, reticente, sem saber se comovia-se com a cena da refeição partida perdida pela debilidade dos membros do mendigo, ou se entrava logo e molhava toda feito criança do sertão em chuva morna, quase ouro do céu. E o florista? Esse tinha calma; sabia que algumas pétalas não resistiriam aos arroubos do vento e da tempestade. Esperava o destino do tempo.

segunda-feira, 6 de abril de 2009

Coisa difícil

Oh coisa difícil essa menina gente! Te juro Juninho, já fiz de tudo. Já olhei com olho de quem diz oi e outras coisas mais. Já esbocei até na boca um cumprimento que não saiu. Já balbuciei ei vizinha! A danada olhou e não olhou; respondeu nadinha, e eu fiquei com aquela decepção. E a cara de quem deu manota nos dias que se seguiram? Oh gente! Dá pra entender não...somos vizinhos...chamo todo mundo de perto assim; oi vizinho, oi vizinha... Outro dia desses tomei foi coragem mesmo...Tinha festinha lá em casa. Pensei; vou lá e convido; pronto, acabo logo com isso. Tomei umas, até que poucas, mas deu uma coragem...Ela mora quase em frente. Saí de manso, atravessei a rua, bati a campainha uma, duas, três, quatro vezes...Já passavam das dez, era sábado, a luz tava acesa. A menina não veio, veio foi a mãe. Tive que convidar a mãe mesmo e quem sabe mais 'alguém' que estivesse por lá... Bacana a mãe dela; bateu ‘lero’ comigo, falou dos problemas de casa, dos vazamentos persistentes na rede hidráulica, no cansaço. Resultado; não iria, ficava pra próxima. E a menina nada, deu nem sinal de vida, a mãe disse que já tava dormindo. Oh dificuldade...Da próxima cumprimento de novo...Já falei com a mãe dela né? Agora acho que ela responde...será? Aí nem vou precisar ficar olhando de viés, atrasando a entrada no portão pra olhar e muito menos ficar virando pra trás. Cumprimento e pronto. Ela responde, converso e quebro o ‘encimesmamento’ dela; oh se quebro... e acabo com minha cisma...será Juninho?

quinta-feira, 2 de abril de 2009

'Quietinha'

Acho bacana gente assim; ‘quietinha’ como vocês...Como? Por quê? E chega o ônibus antes da resposta. Aquela observação soou como um veredicto incômodo. O que ela quis dizer afinal de contas? O que na sua aparência denotava quietude? Quem eram as outras pessoas do 'como vocês'? Achava-se despojada; simples no trajar, cara limpa, unhas limpas sem tintas, pés bem assentados no chão; enfim, nada que indicasse quietude, talvez uma inquietude branda. Mas a senhora, apinhada de sacolinhas e suporte de madeira para cortina, de cigarrinho na mão a deixou incucada. O que ela vira? Terá sido a sombrinha nas mãos na antevisão da chuva, que iria mesmo cair? Ou as faces sóbrias ‘mentirosas’ a esconder nuvens de tempestade? Poderia ter falado qualquer coisa, mas se chegou no ponto cego, impreciso de toda sua existência. Pertubou e se foi sem explicações, sem ponderações...Deixou aquela assertiva posta, quase imutável. Então ela era assim; ‘quietinha’, irritantemente ‘quietinha’...

sexta-feira, 27 de março de 2009

Confesso

Confesso que já estava me achando um tanto teimosa e arcaica sobre as opiniões satisfatórias e mal argumentadas sobre a famigerada reforma ortográfica, até que li o texto primoroso de Glauco Mattoso, 'O orphanato inglez e o asylo portuguez', no site Cronópios. Confesso agora que encontrei explicações plausíveis que tocaram minhas faces práticas e poéticas...Texto bem escripto, sem apologias ao trema, mas acolhedor crítico dos hífens e da riqueza da língua...Por que apagar a história, a etimologia, confundir os dizeres, matar o entrelugar, a identidade com a palavra segura e expandida no tempo? A mutação das palavras é uma urgência tranqüila, uma inteligência da língua, um entrelugar...

Link:
http://www.cronopios.com.br/site/colunistas.asp?id=3880

segunda-feira, 23 de março de 2009

Cachoeira nua

Cai tão garbosa,
Enevoada de fumaça,
De barranco tão bem formado,
Que dá vontade é de olhar,
E quedar...

Canta seu som de sereia,
Quase exala suavidade,
E extravasa pingo forte,
De ardor delicado na pele,
Que dá vontade é de desaguar...

Queda tanto,
Sem medo,
Em ninho poço escuro,
Sem muros,
Até escorrer de novo,
E queda no sem fim,
Perene, nua sob o sol, sob a lua...
Que dá vontade é de ‘nudar’...

sexta-feira, 20 de março de 2009

Saudosa

A saudade nem sempre foi,
E nem sempre esteve no ponto certo,
Na lembrança pronta;
A saudade é visguenta,
Gruda até na expectativa,
Nos gestos indeléveis
E naqueles só rascunho,
De olhos sedentos de imaginação;
A saudade é premente,
É demente,
Mas se finge de ausente;
A saudade tem unhas afiadas,
De gatos manhosos e fugidios;
A saudade corre,
A saudade morre;
A saudade se compraz da chuva e do sol;
Aguça os ânimos calorosos e melancólicos,
E se o desanimo a pega,
Ela se põe a reviver em desatino,
E a gralhar fino de asas descompassadas,
Pela lembrança perdida,
Pela lembrança que desencontrou.

quinta-feira, 19 de março de 2009

Abandonou a cidadela

Ela andava reticente pelas ruas, sempre cabisbaixa, em uma linha quase reta, não fosse a premência das curvas pelo caminho. Pensava sobre o que haveria nas casas, quase fortalezas amuradas, reservadas. Envergonhava-se de incomodar alguém com o olhar. Pensava sobre si, incompreendida de si para si, voltada para o fim. Até que um dia começou a virar o rosto, ainda meio desconfiada da luz dos objetos e das pessoas. Olhou para o alto e percebeu árvores imensas, postes imponentes de luzes quase lua; tudo pareceu a ela tão elevado, mas não assustador. Percebeu seu espírito livre, que os caminhos não precisavam ser os mesmos, que poderia flanar, perambular sem destino, longe das tormentas que assolavam sua mente, seu corpo, seu caminhar. Resolveu se meter em qualquer lugar e sair sem dizer até logo, mesmo sabendo que não retornaria. Voltou-se para todos que passavam com sorriso e cumprimentos suaves e, por vezes, curiosos. Deixou-se sentar em quase todas as praças e contemplou todo o vai e vem, todo o lúdico e erótico dos passantes e dos ficantes. Chegou quase a se esquecer de onde morava, de onde viera, até que se cansou e se lembrou, e voltou, mas nunca mais na disposição do fim. Sua casa se tornou também meio, de conversas ávidas, fartas de histórias; e ela sempre reservou um tempo para flanar, robustecer-se com a beleza das trivialidades e das excentricidades, dos humores do ar e do céu, dos encontros previstos e inusitados. A cidadela de sua alma se perdeu e se achou no entremeio.

quarta-feira, 18 de março de 2009

(In)condicionado

Debaixo do ar condicionado
O menino se deliciava
Fugia do mormaço
Do ritmo fervente
Do funk da boate
Fazia a sua dança
Sob a brisa condicionada

Debaixo do ar condicionado
O menino escapava
E olhava
Quem o aprouvesse
Um par
Uma dança sob o ar
Sob a brisa condicionada

Debaixo do ar condicionado
O menino sorria
Balançava
Compartilhava a brisa
E interpelava alguém
E procurava alguém
E sonhava alguém
Sob a brisa condicionada


Debaixo do ar condicionado
Não tinha condição
Senão o a brisa condicionada
E a leve sensação
Do afeto incondicionado
Sob a brisa condicionada

Intruso bem vindo

Ninguém mais que Nietzsche tem me aproximado tanto do entrelugar. Minhas releituras de parte de sua obra me tocam agora de tal maneira, que a inquietação quase me sufoca. Talvez seja o ‘espírito livre nietzscheniano’ a me cutucar de forma insistente. E essa transmutação em direção ao desapego das coisas sem importância é dolorosa de fato, porque, simplesmente, não parecem sem importância; o sentir se confunde no entrelugar. E como o parecer nos assola nestes tempos de pós-modernidade ainda com mais força. O ser, de fato, cada vez menos importa, e isso é atualmente alavancado com força total pela difusão descontrolada das imagens e da reprodução de objetos de consumo, cada vez mais voláteis. Creio que seja um dos principais motes da psicanálise tratar exatamente dessas escalas de valores morais e da organização social que absorvemos durante a vida, e que, constantemente, enganam-nos, porque ‘se prestam’ a preencher falhas muito mais profundas, que negamos mesmo que inconscientemente existir. E a filosofia é esse ponto transdisciplinar estimulante do pensar além do orgânico, além do individual, para exatamente alcançar o indivíduo naquilo que ele tem de mais essencial. Todo o organismo se ressente e se abate por força até do pensamento do desligamento daquilo que os valores sociais engendraram e nós introjetamos de forma quase irremediável. E o espírito livre é esse ponto de instabilidade, de inconformidade para os olhos dos outros e até da gente mesmo. Talvez proximamente faça uma ode ao espírito livre, este intruso bem vindo do entrelugar contraditório, angustiante, doloroso, apaixonante e libertador.

terça-feira, 17 de março de 2009

"Niilistas Graças a Deus"

Se niilistas estamos é porque cremos sim, mas na conduta humana como a máxima culpa; não a malévola culpa, mas a conseqüência de escolhas e das responsabilidades sobre elas. Esse questionamento sobre o uso das ‘muletas’, quando Deus é invocado como agente fundamental, quase como se fôssemos marionetes, fez do niilismo um movimento quase sempre ligado à concepção divina. Talvez por isso mesmo Friedrich Nietzsche tenha apontado Deus como o responsável por sua própria morte e também da religião, embora essa idéia na época ficasse reduzida a um grupo pequeno de pessoas e que hoje ainda seja invocada com tanta força, porque a ânsia do divino é uma urgência própria do limitado ilimitado humano.

Deus é exatamente essa necessidade de origem, de um pai todo poderoso, da hierarquia consagrada com finalidade de ordenação social, da perpétua luta contra os ‘vícios morais’, das obrigações de condutas pré-estabelecidas, das ‘punições necessárias’ e muito mais, da tentativa de manter o poder institucional e de sairmos parcialmente ilesos das nossas próprias ações, sob pena de expiar eternamente. Mas no mundo ‘real’ nem sempre expiamos o que a sociedade julga como pecado. Porque a noção de pecado é variável e mesmo aquela tida como inquestionável como os crimes terríveis, está sob a mira das regras forjadas na própria sociedade; e Deus entra como ator coadjuvante, mesmo disfarçadamente. Quem decide mesmo é o humano com poderes divinos, inspirados na sabedoria ou na ignorância.

De fato, o Deus, freqüentemente aclamado, é uma das faces da luta pelo controle, pelo poder. Se invocamos o sagrado, de forma alguma devemos ser condenados. É permitido transcender, às vezes, até preciso, dada a nossa fragilidade ou inconseqüência de perceber e de mover. Mas é permitido também buscar provas mais concretas da nossa existência, formular perguntas sem respostas, acreditar na nossa capacidade de reunir argumentos, explicações possíveis, ainda que sempre nos escape um detalhe. O divino, que dizem estar em Deus, é muito mais uma forma de agir com nós mesmos e com os outros, a que devíamos chamar sabedoria. A entidade Deus, por vezes tão necessária, não é senão um jeito de buscar a melhor conduta. Por isso, é lícito invocá-lo, mas não como um mero dispositivo substitutivo para aquilo que não compreendemos. É justo humanizar o divino instituído, tal qual fez José Saramago em ‘O Evangelho Segundo Jesus Cristo’. É lícito também nos fiar em nós mesmos e em tudo aquilo que ilumine a visão.

Des(crer) humano

É preciso romper os laços frágeis,
Quase inexistentes;
Romper as ilusões;
Os contratos não firmados,
Sem fatos,
Incompreensíveis,
Ininteligíveis;
Cortar expectativas;
Esperanças falsas;
Sonhos tortos;
Imaginários forçados,
Nascidos mortos,
Esfarrapados,
Sob veste
Aveludada e protetora;
Desnudar o inconsciente;
Abarcar a antevisão;
Abrir o olho da fronte;
De cabeça baixa,
Escutar som,
Imagem,
E sensação;
Jamais olvidar-se
Dos entremeios certos
E das finalizações incertas;
Mas no ‘humano, demasiado humano’,
É preciso se desfaz,
Na crença
E na descrença,
Extorquidas
Pelo desejo latente,
Ou premente,
De (des)acreditar...

segunda-feira, 16 de março de 2009

Entrelugar ‘nietzscheniano’

Longe e perto de provocar-me encantamentos, a filosofia de Nietzsche traz-me senão um susto calmo, um remanso de inquietação. E agora, vendo-o mais humanizado em “Quando Nietzsche Chorou”, de Irvin Yalom, ponho a me perguntar de seu “Humano, Demasiado Humano” nos seus aforismos dispersos, quase a exaltar o devir humano, a inconstância, embora em constante busca do si por si mais verdadeiro. E se “Entre o Bem e o Mal” estamos, é exatamente nessa transmutação permanente que invocamos o destino da nossa existência, quase o prenúncio de um tombo ou de um surgir de asas. É essa constatação tão própria do entrelugar que tento por vezes devassar e ignorar que me emociona alegremente e também me entristece. Porque o caminho não está posto, embora permaneça lá para ser traçado, inquiridor, ameaçador e acolhedor. E o amor ‘nietzscheniano’? Será mesmo como um corpo relacional, quase político, nada mais que uma disputa de poder, a necessidade de contrair para si a segura crença na previsão, no controle da situação? Talvez. Contraditório? Talvez. Mas se é a contradição que mora no entrelugar e o devir é o próprio entrelugar, Nietzsche deve sim ter chorado lágrimas ferventes e gélidas com os lábios em movimentos de riso e solidão.

sexta-feira, 13 de março de 2009

Por que o nome?

Por que o nome?
Se nenhum está mesmo inscrito na lápide da alma?
Por que o nome?
Se são tantos e, por vezes, irreconhecíveis?
Porque o nome?
Se a identidade é senão um substrato a serviço das normatizações,
das identificações rasas?
Por que o nome?
Se tão frágil,
desfaz-se na multidão de repetições,
das palavras sempre ditas, ouvidas,
Por que o nome?
Se o personagem se encontra e se dispersa num emaranhado de sentimento,
no volátil do existir?
Porque o nome?
Se as alcunhas,
forjadas na surpresa e no carinho,
podem ser muito mais apropriadas,
embora engraçadas,
ilícitas
ou constrangedoras?
Por que o nome certificado, doutrinado?
Por que não os nomes?
Prontos para as transmutações dos corpos, dos gestos e do que os anima?

terça-feira, 10 de março de 2009

Sem fim

Hoje vi a lua gigante enfumaçada no céu de meio clarão,
Veio uma comichão de voar irreprimível,
De balançar de asas em sustenido,
Até todo corpo desfalecer em ninho de nuvem;

Hoje você passou perto e distante de mim,
Lançou o olhar ao longe,
Absorto,
Perdido no sem fim,
Nem ousou olhar pra mim...

Hoje eu nem quis mirar você,
Sob pena de afogar-me em mágoa de mim para mim,
Porque se olha e não me vê,
É porque nem vê mar,
Nem cardumes coloridos,
Nem corais delicados,
Nem pôr do sol,
Nos meus olhos
Quase de mar-fim...

segunda-feira, 2 de março de 2009

Coisa estranha

Nervosia é mesmo coisa estanha. Vem no bem, vem no mal. Se nos encantamos ficamos trêmulos de nervoso. Se um desconhecido amedronta e se aproxima vem aquela nervosia do mesmo jeito. Doideira isso; o bom ficar tão perto do mau, o entusiasmo tão próximo do medo. Será que é porque alegria dá medo? Nem sei...Sabe quando vem aquela imagem esperada e inesperada ao mesmo tempo? O anunciamento de um afeto delicado, uma espécie de amor? A gente fica nervoso, de mãos trêmulas e palavras saltitantes, quase a tiritar como no frio. Se desconfiamos do perigo, aí é que o trem fica feio, é tremura pra todo lado e suador frio e perna bamba. Parece mais é agonia de paixão. Eh coisa misturada meu deus! Num entendo mesmo esse negócio de nervosia. A gente não devia era ficar nervoso, nunquinha! Nervosia é denúncia de amor que não tá na hora de declarar, e de medo. Deve ser porque amor dá medo e a gente tem medo de não ter amor.

domingo, 1 de março de 2009

Atravesse

Se há alguém do outro lado da rua
Que seja mesmo uma avenida
Se te dá uma comichão
Uma curiosidade
Pelos trajes
Pelo menear dos cabelos
Pelo andar vacilante ou seguro
Atravesse sem medo
Diga olá
E verseie
Fale de Fernando Pessoa
Recite até Camões às avessas
Mas faça algo lisonjeiro
Aceite ver o nascer do sol
Mesmo em dia nublado

Quem não se conhece merece odes
Altivez e reverência
Porque a surpresa é amiga da vida
E se lá do outro lado não encontrar um grande amor
Daqueles de turbilhão inesquecível
Poderá encontrar a exata afinidade rara
Os dizeres de quem se reconhece
Mesmo de repente como se há muito...
Se já houvesse um outro encontro
Escondido no tempo irreconhecível
Colocado no presente esquecido do passado

Se há alguém do outro lado da rua atravesse
Não hesite
Mesmo que do outro lado não haja o que espera
Ainda assim atravesse no instante certo
Antes que a imagem se desfaça
Que vire sonho perdido
Amizade roubada pelo vento
Por favor, atravesse...
Em linha reta
Ou obtusa
Balbucie ou grite
Mas retenha o momento
Fortaleça a lembrança
Atravesse...
Se achegue...

sexta-feira, 20 de fevereiro de 2009

Almas em circo

Não quero a carnavalização dos corpos,
Quero o carnaval das almas em circo,
Embebidas em elixires mágicos,
A equilibrarem-se em cordas bambas,
Na ânsia de pedaços de azul e estrelas distantes;
Quero o encontro genuíno,
Descontraído de tanta contradição,
De facetas escondidas e escancaradas no susto do tambor,
Na ginga mansa e veloz dos quadris,
Nos olhares soltos e aprisionados de encanto...

quarta-feira, 18 de fevereiro de 2009

Varais

Quantas roupas estendidas
Devassadas pelo tempo
Pelos arroubos loucos
Roçar de corpos
Quantas cores vivas
Cinzentas
Quantas rusgas de mãos
Entremeadas nos panos
Almas em imersão desinfetante
Quarar, quarar...
Quantos sentimentos
Dependurados
Nos varais suspensos do coração...

segunda-feira, 16 de fevereiro de 2009

Cheia de senões

Que visão quer ter de mim? Que imagem reivindica? Que ângulo o aguça se qualquer um pode provocar encanto e desencanto? Por que insiste em vários quadros imperfeitos, se a perfeição imperfeita está em qualquer um deles? Por que insiste no engano, no pano epidérmico de luz e sombras, que não vê em profundidade? Nos pêlos superficiais que recobrem poros e raízes distantes? No registro fotográfico repleto, mas sempre vazio, um instantâneo obtuso? Por que se ilude com a quantidade de poses fragmentadas, com a ilusão da completude inatingível? Por que insiste se o que vê sempre será engano, perspectivas misturadas, entrecortadas? Se quer um pictórico acertivo encontrará dúvidas. Se quer um negativo se surpreenderá com afirmações incontidas, retratos atemporais. A imagem se dilui, se condensa, entorpece; é um fetiche da realidade, tão irreal e envolvente, tão cruel e aterrador; um tão cheio de senões.

sexta-feira, 13 de fevereiro de 2009

Entre Carretas

Nem toda ação depende de programação. Nem tudo que não é programado sai tão ruim. Viagens pedem saída e chegada com hora marcada, sobretudo as de trabalho, mas alguns destinos tomam o sentido contrário ou ficam mais distantes e recheados que pensamos. ‘Vamos à noite; assim já acordamos lá no hotel e resolvemos tudo logo cedo’, profetizaram. Assim foi, com um pequeno detalhe que nos escapou; saímos às seis da noite e chegamos às duas e trinta da manhã. O percurso que deveria durar duas horas chegou a quase oito. E não pensem que foi tão terrível assim. À beira da estrada e entre carretas fomos, voltamos, paramos. De adiante vinham notícias entrecortadas, aumentadas, diminuídas. Dois acidentes logo à frente, um no Viaduto das Almas, fizeram uma fila de almas se formar, se estender, nos encaixotar. Resolvemos, eu, Breno, Flávio e Cristiano, retornar, comer pão com lingüiça, o prato típico das estradas de Minas, e tomar uma cerveja. Era gente chegando, pagodeiro dançando, ‘Big Brother’ na tela chamuscada e profecias pululando, intrigando; ‘só uma hora da manhã liberam’. E foi perto de uma hora mesmo que o fluxo começou a escorrer, mas ainda deu tempo para tirarmos aquela foto entre as carretas, com riso solto, lua encoberta e pingo de chuva. Depois passamos pelo viaduto e não avistamos as almas envolvidas no acidente, porém seguimos finalmente pela estrada de terra acidentada ao som ‘Nação Zumbi’. Chegamos sonolentos. Uns foram dormir, outros ainda se dedicaram a um jantar reforçado. É...toda programação depende de muitas almas...caminhos e tempos incontornáveis, imprecisos...