domingo, 29 de junho de 2014

...

Humanos são realmente estranhos; sucedem-se em supostos erros e acertos; a dita e revelada humanidade se desfaz e se conserta em pulos no abismo e nos vôos até o céu estrelado...

...

Todos nós temos plena absolvição de nossos atos, uma vez que dependem exclusivamente do valor que damos a eles; bons ou ruins são adjetivos meramente subjetivos. O fato é: conveniências determinam qualificações.

quinta-feira, 26 de junho de 2014

Devíamos

Devíamos sempre respirar fundo antes de dizer qualquer palavra, ainda que em momentos emergentes, quando não dá pra adiar porque ela vem solta e cheia de emoção. Devíamos ponderar mais para evitar o imponderável de nós mesmos em desatino. Devíamos soletrar a palavra pra nós mesmos ou encontrar um buraco escuro e gritar para ver que tom adquire, que vida cria ou mata. Devíamos ser mais avisados da navalha dos fonemas reunidos, dos cortes insanos forjados entre mente, língua e coração. Devíamos até ponderar o aparente imponderável, porque a reflexão é doída, mas leva a lugares enormes, distantes e tão completamente outros, que o dito fica subversivo, parco, excessivo para pouco, incompreensível depois de algum tempo. Devíamos evitar a confusão entre palavra e sentir, por mais que ela tente dizer do sentir. Devíamos nos conter, inspirar profundo, engolir, saborear, deglutir, ruminar como um bovino, calmamente em pasto largo sob a luz ou o sereno a espera de uma digesta mais elaborada, finamente cortada pra virar um nutriente precioso do diálogo. Devíamos, mas raramente somos dever ser, somos apenas ser.

quarta-feira, 18 de junho de 2014

Incompletudes

Ela sofria de incompletudes; mas não eram incompletudes quaisquer...eram máximas de tão mínimas, corpos em detalhes. E nos dias frios ela se abraçava num instinto natural de conservação, na busca do aconchego, do calor, no receio de petrificar. Não que virar rocha soasse inóspito. Muito pelo contrário; parecia-lhe, por vezes, que ser mineral era até um desejo muito humano; estar lá ao sabor do vento, perfeitamente integrado e vivo a despeito da aparente imobilidade. Mas incompletude mesmo era coisa orgânica; a superfície tão repleta dos objetos e ideais de posse, e as profundezas, cheias de nada. Ela sofria de incompletudes, mas cria cada vez mais nesse compartilhamento de nada, do nada. O amor deveria ser assim, o compartilhar das falhas, dos vazios em abismo, das profundezas. Era o nada e não o tudo que fazia realmente o movimento dos afetos.

Por dentro e por fora

Sorrir por fora é fácil; Difícil é sorrir por dentro; Ficar repleto, ecoar alegria; Ficar repleto, dançar e rodar pra ninguém ver; Difícil é virar criança e ver graça no mais simples; Ficar repleto, mergulhar em rio de peixe colorido; E afundar, leve nas profundezas do mar; Difícil é encher-se de corais e flores astrais, folhas secas teatrais; E abraçar, e beijar, e acariciar a pele em adoração; Difícil é fazer sorriso vazar, escorrer cachoeira sem nem perceber; Difícil é sorrir por dentro e afundar...

Maria

Maria teria que escolher entre o intenso e o protetivo. Maria teria que fazer várias vozes em reflexo dela mesma pra saber qual tom dar; qual caberia nessa escolha de ser sem sofrer na pauta de uma música de viver. Um tango, um rock, um popularesco qualquer, uma valsa, um blues, um jazz. Teria que fazer vezes de procurar um ritmo adequado para cada história que viesse. Maria teria que ter olhos atentos quase insones para não deixar manifestar as displicências da alma, do coração que quer sem medida e pulsa, e pula e derruba o corpo e aliena a mente. Maria teria que encontrar o exato intenso do momento e esquecer pra crer que foi verdade e não mentira todo aquele aparato de dizer. Teria que absorver momento como fisiologia, como ar de respirar, comida de comer, cheiro de cheirar, pele de pagar, olhos de ver. Maria teria que arrumar o de ser pra viver.

Admito

Admito minha máxima estupidez; Admito sem reservas esse emburrecer na ânsia de acreditar; Admito e me coloco diante de qualquer que seja, derrotada em minhas fraquezas, maculada nos sonhos desfeitos; Admito que a dor não é provocada por outrem; A dor nada mais é que um de si para si por viver momentos de total displicência; O outro só dói por si; A dor mim é esse ego que se desfaz repleto de vergonha, marcada na entranha com ferro quente; Sim, é de ferro em brasa que doemos, e cada lágrima é pequena, só faz acender mais o fogo; Só mesmo quando vir era glacial poderá apagar; Que todo sentir em desatino destrói tudo até vir o gelo, até o sol derretê-lo devagar na esperança de nascer vida em potência de sentimento.

O Quarto

Não há nada mais quadrado que o quarto; Pra todo lado que se olha quadrado, teto, chão parede, e o cubo se perde; E o infinito adormece; a paisagem da janela escurece; Quarto, quadrado, cubo, quarto, cubículo, cercado; E a janela anoitece! “É tanto excesso que falta...” É tanta falta que excede...

quinta-feira, 12 de junho de 2014

Assassinatos

Ela tinha que assassinar seus sentimentos dia após dia como fossem matérias. Ela tinha que torná-los perfeitamente conformados, objetos desprezíveis nesse mundo banal. Ela tinha que esquecê-los por mais que fossem intensos, matá-los na mente e no coração, e fazer sorrisos pra alguém ver, pra ninguém ver. Morte e sorriso rimavam sem rimar, no mundo feito dessas matérias fortes e superficiais. Lembrava-lhe a mão com aquele segmento de pele a descamar, epitélio suicídio, linfocítico, guerra de dentro pra fora, guerra deflagrada sem saber, auto guerra, bombardeios imunológicos. Lembrava-lhe toda fragilidade da alma revelada no corpo, porque não conseguia de fato ver desumanidade. Mas sentia-se desumanizada, um pedaço de carne sem alma. A morte dos sentimentos vinha assim, dia após dia nas matanças diárias dos sentidos, dos cuidados, dos afetos nascentes.

quarta-feira, 11 de junho de 2014

Morrida e Matada

Eu sempre achei que morte matada era por tiro ou faca; e que morte morrida era morte sem jeito, de doença, de bebida, de velhice. Tempos depois comecei a entender diferente. Morte morrida é morte por fora, tem cerimônia formal de despedida, está lá pra qualquer um ver. Agora morte matada acontece lá dentro da gente, mesmo que ninguém veja.

terça-feira, 10 de junho de 2014

Um despertar

Passara meses dormindo, talvez anos; só acordava por força das obrigações cotidianas; não que não lhe trouxessem algum prazer, por certo traziam. Mas o sono vinha em qualquer recostar, e vinha pesado em sonho esquecido, uma espécie de inércia, dormia e não queria acordar. A realidade parecia-lhe pouco curiosa, parecia-lhe que o sono era um sustento da alma descrente, da alma que cansava o próprio corpo. Não mais que de repente despertou num susto, viu sentido onde já não mais havia; as imagens ordinárias ficaram suaves, familiares, amigáveis. Queria passar por outras ruas, alternar o passo com dança, recitar em alto tom, queria conviver. Seu corpo já não era o mesmo, cada parte dolorida se compadecia de outra, de forma que se criou um mecanismo de absurda solidariedade. O mínimo toque era sentido em potência, não como delírio. Cria que não sonhava, embora sonho fosse sua matéria principal. Era tão real aquele tempo sem planos, de futuro incerto, mas certo o presente de sentir. Não via verdadeira ressonância nisto tudo, salvo em si e em almas parecidas para quem contava seus pensamentos insanos que lhe pareciam tão saudáveis. Essas almas irmãs davam a ela um pouco de alento no mundo sem sonho. E ela não separava corpo e alma; todo o erotismo parecia sangrar e pulsar por dentro e por fora. Ela era rio, água pra peixe nadar e desovar. Ela era um amontoado de químicos em propulsão criadora. Ela também era terra pra brotar e se refazer em fertilidade mineral, a revolver toda e qualquer camada mais profunda. Ela era um pouco fogo pra queimar, mas sem a menor intenção de machucar qualquer que fosse; queria provocar um aquecimento de estufa, brando e prolífico. Ela também era ar; e solta no ar podia voar.

sábado, 7 de junho de 2014

Subida

Empanturrou-se com uma porção gigantesca de nhoque ao molho vermelho de calabresa; Regou aquelas substâncias máximas e avermelhadas com uma taça de vinho seco de marca desconhecida; Subira o meio aclive sem cambalear, mas sob um relaxamento taciturno; Os carros subiam, desciam, gritavam e perguntavam pra onde iam; Chegou, subiu três lances de escada em tempo de eternidade; Recostou-se repleta; Não conseguiu dormir.

Noite tonta

Num susto tudo mudou, tudo chegou no ponto, desapareceu do outro ponto; Num susto tudo mudou, não era mais a mesma face, o mesmo corpo, O coração tinha outra batida, era de fanfarra; Num susto o ponto ficou no outro ponto, Num susto tonto, de noite tonta, tudo chegou no ponto.

Frio e Saudade

Frio é primo da saudade; traz vontade de cheiro de cozinha de mãe, de papo solto; tudo na partilha de picar no meio do bate papo, enfiar colher na panela e experimentar queimando a língua; e falar que delícia com vontade e exagero, só pra voltar de novo...

(...)

Interessava-a amar intensamente, com sustos e sossegos, com egos inflamados e solicitude irrepreensível, com carícias e gestos bruscos de sentir; carecia o amor dessas nuances contrárias, dessas metades mal acabadas, assimétricas; carecia o amor do valor indefinível, que não se tem; que não se percebe; carecia o amor daquilo que não se nomeia; de um abismo escuro e um lago límpido; de umas formas espúrias só por serem incompreensíveis, carecia o amor somente de sentidos, desde que não fossem parcos.

sexta-feira, 6 de junho de 2014

A validade da arte

Estive pensando sobre a validade da música, do cinema, dos livros, da poesia; serenamente e sinceramente. Nada mais são do que 'esvaziadores da alma', instrumentos hábeis em nos fazer pensar na absoluta falta de necessidade da praticidade e de tantas utilidades que poderíamos descartar. Sim, são esvaziadores da alma, pra ela caber, encher, esvaziar e caber de novo...Caber de novo com ternura, sorriso no olhar e batida de coração...

Palavra pra acordar

Desde que te conheci fiquei meio esquisita, insone; Parei de dormir pra fazer palavra no lugar de sonho; Desde que te conheci o sonho não vem, e a palavra escorre sonâmbula; O sono vem tarde no sonho insone, acordada por você; Sonho no quarto de panos, pernas e braços em laço, largados no ar; Sonho no quarto de bocas perdidas em dizer e silenciar; Desde que te conheci fiquei meio esquisita, insone; Parei de dormir para acordar na palavra de sonho, pra ver se acordo você...

Sonho de encontrar

Faltaram poucos passos; Eram tão poucos pra chegar; Nem tão longe, tão perto encontrar; Faltavam poucos passos, mas não deu; Você ficou no meu sonho de te encontrar... A curva virou, o passo acelerou; Sobraram meus passos; Tão perto encontrar, ficou tão longe; Sobraram meus passos; E você ficou no meu sonho de te encontrar... Você sumindo, sombra no infinito, no meu sonho de te encontrar...

quinta-feira, 5 de junho de 2014

Gente que não é mais gente

Tem tanta gente na rua, Tanta gente que não é mais gente, Tem tanta gente na rua enquanto passam carros, Máquinas e pessoas em meio a gritos, conflitos, no fluxo, no sinal “Está cega trouxa! Sai da frente!” “Filha da puta!” No trânsito de tanta gente e suas ações inconsequentes, Tanta gente não é mais gente, Mentes esquecidas do outro, O outro que não mente, No seu corpo farrapo, e ninguém entende... Tem tanta gente na rua, Tanta gente que não é mais gente.