quinta-feira, 31 de janeiro de 2008

Branca

Lá em casa sempre tivemos um amor desenfreado por gatos, não aqueles selvagens, mas os domésticos, que roçam em nossas pernas, de olhares “pidões” e impulsos incontroláveis. Branca entrou em nossas vidas de um jeito meio forçado. Tinha um olho castanho e outro azul, única assimetria bem evidente, que nos provocou encanto e dúvidas ao mesmo tempo. A felina era teimosa, entrava no corredor do quintal e batia o pé para não ir embora. Certa vez mamãe levou até arranhão no tornozelo. Ficaram de mal. Isso foi na época em que nossas gatas já bem velhinhas ainda circulavam por lá. Nenhuma delas simpatizava com Branca; o confronto e a derrota para as mais velhas eram certos. Por isso, mamãe procurava evitar a alva presença.

Tempos depois, a insistente Branca se tornou uma espécie de freqüentadora assídua lá de casa. Passeava pelos quartos, pela cozinha e pela sala a nossa procura e não perdia a chance de se aninhar no colo da mamãe. Só se ausentava no horário do almoço, um dos poucos momentos em que retornava ao seu local de origem, a casa ao lado. Mamãe falava que não ia assumir a tal responsabilidade de alimentá-la, mas comprava queijinhos, carninhas e outras guloseimas para ela.

No início da amizade achamos que Branca era surda muda, porque seu miado era quase inaudível. Depois descobrimos que os ouvidos funcionavam muito bem e que além de tudo ela era boa caçadora e covarde: as penas de pardal recém-nascido inundavam nossa varanda. Às vezes degustava a tenra carne da pequena ave, outras a jogava para o ar, para cima e para os lados sem nenhuma compaixão, para depois desprezá-la no final com ar de enjôo. Com as bolinhas de papel laminado e os pauzinhos de churrasco, cuidadosamente preparados por mamãe e tio Zeca, era a mesma coisa; fazia malabarismos de toda sorte e se entediava com aquele ar de não te quero mais. Curioso é que nunca a recriminamos por isso tudo. Dizíamos só assim: “ela não está mais afim” ou, “é a natureza dela.” Um dia tio Zeca a acusou de ser assassina, no seguinte fez bolinha de papel para ela.

domingo, 27 de janeiro de 2008

Feto invertido

Esse par de cartilagens retorcidas, a que alguns chamam orelhas, pavilhões auditivos, e até abanos, têm dado o que fazer nestes últimos dias. Confesso que não era totalmente indiferente às orelhas e que até lembro-me, parcialmente, de algumas de suas estruturas, quando das minhas incursões pela anatomia dos mamíferos há alguns anos. Mas agora as orelhas, as humanas, têm me provocado uma inquietação inestimável. Tudo começou, despretensiosamente, quando a amiga Ana Paula, de tempos idos e vindos, chamou-me para fazer um curso de Aurículo Acupuntura. Topei. Para surpresa minha os detalhes anatômicos da orelha, a despeito de toda sua ligação surpreendente com cada parte do corpo, provocou-me instintos não só médicos, mas poéticos. Primeiro porque os pontos, denominados acupuntos, ligados formam a figura exata de um feto de cabeça para baixo.

Assim, ao tocar uma orelha nas aulas práticas percebi que mais que um ponto erótico e de audição, havia cérebro e vísceras. E que, portanto, ao tocar uma orelha devemos ter a rigidez e a delicadeza de uma mãe. Tornou-se claro não em minha mente, mas em meu coração, onde mora a consciência, tal qual os chineses acreditam, que quando o nosso corpo cresce, carregamos em nós fetos; os sentimentos de nossa origem. Por isso, orelhas são tão sensíveis e o som ao passar por elas ganha os contornos das nossas vivências, das nossas memórias. Curiosamente, as palavras deslizam por uma estrutura chamada incisura intertrágica, uma depressão bem na parte inferior da orelha, próxima ao conduto auditivo. Talvez por isso mesmo os dizeres ganhem em nós tanta expressão e nos façam cometer tragédias e até as tragicomédias; tudo por culpa da boca, ginasta hábil para diversos assuntos de ordem sentimental, professoral e nutritivos.

Bem, é possível fazer um tratado sobre orelhas, tamanha a complexidade dessa estrutura tão discreta que, às vezes, nem percebemos. Mas o que me preocupa agora é que meus olhos se miram nas orelhas sem que eu nem perceba. Olho para elas com a pretensão de perceber os fatos e emoções daquele feto invertido dos mapas de acupuntura, aquela figura frágil enraizada na cabeça de cada um.

terça-feira, 22 de janeiro de 2008

Pelas narinas

Eu não sabia que sonho tinha cheiro. Descobri outro dia desses quando cochilava no sofá, depois de um dia de trabalho. As imagens oníricas eram comuns; três pessoas conversavam e entre elas eu. De repente senti um cheiro de carne assada, daquelas recheadas com baycon e legumes. As imagens se apagaram de súbito e iniciaram-se aqueles movimentos rítmicos de inspiração profunda, e quase nenhuma expiração, na tentativa de aprisionar o cheiro. Acordei acreditando naqueles vapores sedutores da cozinha de minha infância, mas eles não estavam mais lá. Passei o resto da noite encabulada com aquele sonho cheiroso.

segunda-feira, 21 de janeiro de 2008

Crônica da Ilha IV: O acampamento

“Barracas, Tylenol e Gargalhadas” poderia até ser a síntese desse acampamento em Ilha Grande. Seria bom se pudéssemos dar um tom cinematográfico ao estilo do filme “Cinema, Aspirinas e Urubus” nessa história, mas faltariam componentes essenciais de grande parte dela. Primeiro que nosso encontro não foi ‘coisa do destino’, a menos que o compreendamos de forma uma pouco mais flexível e programável. Depois, não pretendíamos mesmo fazer um filme, embora o tenhamos feito. A paisagem não era o sertão, mas antes uma grande ilha cheia de água e peixes. E a pergunta sempre soava: Vai pra ilha? perguntava em tom de descrença a mãe de Keila. Mãe, já viu, fica sempre desconfiada com viagens longas, ainda mais de barco e para acampar. E pior: dizia que Keila ia dar o último suspiro na ilha, pois andava reclamando de cansaço. Mas não teve jeito, Keila “se acendeu” pela Ilha de tal forma, que iria mesmo se fosse para dar o tal último suspiro.

Quando chegaram em Angra, de onde seguiriam para a ilha, as mineiras Keila e Viviane, se encontraram com a turma. Eram nove; uns vindos do Rio e outros de São Paulo. Estava feita a mistura bombástica: café com leite e açaí. É bem verdade que a política do café com leite já não vigora, e hoje está muito mais para cuscuz com café e leite de vez em quando, mas como todos não se furtaram na ilha de tomar o café, o leite e o açaí, fica assim mesmo e incompleto, porque no final chegou até um Guatemalteco, para o qual não saberíamos escolher um sabor. As apresentações foram feitas lá na rodoviária de Angra, de onde seguiram para a Vila do Abraão, que diziam ser a capital da Ilha.

Keila já acampara algumas vezes; não em um Camping. Viviane não; foi a vez do batismo. Para a viagem à Ilha Grande, o combinado foi acampar lá no Peixoto; camping familiar, cercado, vestiários amplos, feminino e masculino, e até cozinha para fazer o rango. A idéia da viagem veio embalada com o final de ano e com a empolgação da carioca Rhany, amiga de Viviane. Para a surpresa de Vivi e Keila, Rhany trouxe para acampar mais seis: Igor, Daniel, Daniel Sandoval, Otávio, Ana e Mariana. O da Guatemala, José, chegou mais tarde e pegou o lugar do paulista Otávio, sem dúvida, um ator fundamental que precisou sair mais cedo da acampamento.

O primeiro contato com o Otávio em direção ao cais não foi dos mais “amigáveis”. Ele carregava um certo ar de megalopolitano e nós ditas provincianas de um Belo Horizonte, que nem existe mais, ríamos da sua soberba nem um pouco disfarçada. Curioso é que aos poucos ele se tornou o Tatá, pode? Reduziu sua soberba significativamente e começou a destilar seu jeito brincalhão e impertinente. Ele era o garoto da rede; pra onde ia levava aquela cama móvel, bem dobradinha, com ganchinhos e tudo! Chegava, armava a redinha e deitava em toda praia que aportávamos. A rede parecia feita para ele.

Em Palmas, Rhany resolveu experimentar o balanço da rede de Otávio e se deu mal; atravessou-a atrapalhadamente e caiu. Tinha jeito não; a rede era mesmo do Otávio. Aliás, Rhany era quem liderava o grupo; além de querer se meter em tudo, até na rede do Otávio, pensava e organizava os passeios. Era daquelas pessoas para se contar, para se divertir, num vamos galera nem tanto incisivo, mas que nos obrigava a sempre ir; e ninguém se arrependeu. Ela programou a trilha para Lopes Mendes, o passeio de barco, levou a barraca para as campesinas mineiras e não deixou de fotografar sequer um momento da viagem e várias vezes posava de Tieta do Agreste, como dizia Otávio.

Os paulistas de nascença e moradia eram majoritários na turma e davam o seu tom de garoa e trampo. Daniel Sandoval, nascido em Fernandópolis, interior paulista, agora morador do Rio, era o ginasta da turma. Teimava em dar cambalhotas sucessivas no ar, desde nossa primeira incursão, na Praia Preta. Dizia que tinha o joelho problemático, mas não resistia, virava de ponta cabeça no mar, na areia e terminava a performance orgulhoso. Sandoval era quem buscava as trilhas sonoras, entra elas “É o amorrrr”. E tinha mais; se empolgava e achava que as meninas eram ginastas também. Teimava em puxá-las como brinquedinhos de borracha na praia. Já o Daniel, irmão do Igor, era bem mais tranqüilo. Enquanto os outros se envolviam com criancices de toda sorte, ele ficava observando até aonde aquilo ia dar. Ele era, sem dúvida, a gentileza do acampamento e braço direito da Rhany no acerto das programações.

Como não poderia deixar de ser teve namorico no acampamento. Igor e Viviane foram os protagonistas. Os beijos começarem logo na primeira noite de ‘bebericagens’ e se seguiram pelas demais. Como diria outra vez o Otávio: eram os namorados Loirão e Igor. O Igor era um cara legal, mas não muito afeto a brincadeiras indiscretas e muito menos as insistentes. Por isso, andou ‘sofrendo’ um pouco nesses dias. E Vivi não deixava de retrucá-lo vez por outra em suas considerações. Poderíamos dizer que tinham algumas incompatibilidades que não prejudicavam os beijos. Combinaram até umas sete coisinhas na virada do ano, que despertou a curiosidade de todos; provavelmente bem diferentes dos sete pulinhos na beira da praia. Além disso, Igor esperava pacientemente por Vivi, sempre a última a terminar de se arrumar para as saídas da turma.

As paulistas Ana e Mariana eram as guardiãs dos recipientes alcoólicos e alguns petiscos. Qualquer tentativa de utilizar a varandinha de sua barraca era terminantemente proibida; já que lá era reservado para as “nobres vodkas” e comidinhas. Mariana era também prática e empreendedora, mas deixou o cargo para Rhany mesmo. Ana era cuidadosa com o visual, sempre antenada com a moda, desfilava pela Ilha seus vestidinhos originais. Na trilha para Lopes Mendes esteve a beira de uma “parada respiratória”, mas contou com Keila, Viviane e Mariana, no segundo grupo. Chegaram uns vinte ou trinta minutos depois do primeiro grupo e para felicidade de todos decidiram retornar de barco mesmo; graças a Deus!

O silêncio era obrigatório no acampamento a partir das dez, mas não tinha como evitar as gargalhadas na chegada das farras, os rodízios de dormida entre as barracas, a manutenção dos colchões de ar, as nuvens de mosquitos, os repelentes sumidos e outros objetos perdidos, e outras surpresas dia e madrugada afora. Um dos nossos vizinhos mais agitados dizia certa noite: “roubaram o meu atum” e as gargalhadas se propagaram por muitos minutos, muito depois das dez. Bem, nós não levamos atum e não roubaram nada das nossas barracas. Nesse camping só devia ter ladrão de atum.

Crônica Ilha III: No vai e vem do barquinho

A profecia que diz que o homem veio da terra e ao pó voltará não condiz propriamente com o passeio de barco que fiz em Ilha Grande. Se somos realmente feitos de terra, naquele dia criamos guelrras, nadadeiras, fomos mutantes, peixes do mar. Era uma embarcação pequena, de casco verde; uma tartaruga marinha que cedeu gentilmente suas costas largas para cerca de quarenta pessoas de vários tipos; de dois grupos distintos, mas que não ousaram se estranhar em alto mar. Só o motor do barco carecia de uma manutenção periódica, a que o comandante, de abdômen protuberante e bom papo, chamava ‘limpeza’. Abria aquele buraco fervente, bem no meio do barco, para acariciar aquelas peças estranhas de tempos em tempos. De início todos ficaram desconfiados sobre nossa permanência sobre a água, até que entenderam que ali estava o velho coração do barco, engenhoso e delicado. O simpático barrigudo também era responsável por temperar e grelhar os peixes, nosso combustível naquela viagem. O alimento era cuidadosamente estripado e envolto em ervas, não sei quais, mas que imagino tinham a essência da alegria.

Quem girava o leme do gentil barquinho era um marinheiro tatuado, pele tostada a sol e sal, e cabelos compridos, cuidadosamente presos e envoltos em um boné cor cinza, um dos matizes do mar ao entardecer. Ele dizia: “não sei o que aconteceu a noite passada...não consegui dormir.” Mas seguiu com o barco controlado, salvo em poucos momentos, quando todos se aglomeravam como cardume num dos lados da embarcação que ficava prestes a virar. A navegação se complicava também quando passavam por perto os barcos de motores mimados, e que jogavam as ondas em cima de nós. E aquele balançar, antes de provocar medo, era um arremedo de rede, um vai e vem que fazia a gente pensar: balança mais e mais, até que eu adormeça. E esses barcos de motores mais pragmáticos levavam poucas pessoas e elas não iam tão alegres; iam ao sabor da velocidade ou sob o sol, num distanciar sem fim até delas mesmas.

Nesse barco em que estávamos todo mundo se chegava, uns mais, outros menos, uns com o corpo, outros com o olhar. Não era uma festa dionisíaca e Baco a teria achado até ingênua. Mas havia uma mistura que inebriava: mar, música, gente, peixe com ervas e alguns etílicos não destilados ao gelo. Havia dançarinos, cantadores e tocadores; estes de vários instrumentos: corda, sopro e batuque. Um deles cantou mais, tocou mais; tinha cabelos de caracol, corpo moreno esguio de menino e um sorriso largo e alvo. Cada corda do violão que ele tocava fazia soar uma segunda nota de um outro instrumento que ninguém via, mas sentia. O espírito era sempre o da orquestra e assim todos se metiam na música do outro sem pudores; até o silêncio se intrometia. Foram quase nove horas assim; ouvindo música, mergulhando em lagoas azuis e verdes, embrenhando-se em tocas acaiá, arrastando-se como peixes lagartos e comendo peixes menores, desfiados em dedos nadadeiras apressados, e suavemente degustados, dissolvidos nas papilas da língua até irem morar dentro de nós. Nunca estive bem certa sobre a origem e o destino de nós “humanos”, mas depois do passeio de barco na ilha fui peixe por instantes e todas as pessoas que ali estavam me pareceram peixes formando cardumes coloridos. Eram os momentos finais do ano de 2007.

Crônica da Ilha II: Sentir da Ilha

Desde sempre ouvi falar que uma ilha era uma porção de terra cercada de água por todos os lados. O que eu não sabia era que as ilhas possuíam pés móveis por onde as alcançávamos mesmo pequeninos e distantes, a cada onda e balanço, sobre cascos duros arredondados; barcos com vela, barcos sem vela...acolhedores úteros do mar a esmo na sensação, mas bussolares no ritmo indescritível do nosso corpo a se acomodar e incomodar em direção a uma espera solitária, indivisa no meio do sem fim. Assim foi o meu sentir da ilha, e esta que fui era grande e apinhada de gente encantadora, que marcou encontro sem se saber e se soube tão de repente. Desde o início desejei estar lá, mas só tive certeza depois que avistei o monte de água depois do cais e aqueles barquinhos e barcões indo e vindo.

Primeiro éramos duas, na dúvida do embarque e, finalmente, na certeza da chegada. Mas e a Ilha? Será que ela nos esperava? Depois éramos nove, e por aí, nos dias que se seguiram, não cessou a multiplicação. Dos pedaços de mar brotavam barcos e escorriam pessoas de todos os lugares para dentro e fora da ilha; esbarravam nos cais e mergulhavam por entre trilhas só para avistar um pedaço de mar sonhado. Deu para entender porque todo mundo diz ‘todo mundo é uma ilha’, uma espécie de ser solitário cercado, inevitavelmente visitado. Uma infinidade de ilhas dentro da grande ilha; assim fomos nós nesse encontro, ensimesmados, observadores, dominados e conquistadores, todos querendo afastar a solidão da ilha, fazendo arquipélagos.

Crônica da Ilha I: Um embarque desastrado na era celular

A viagem estava marcada. As passagens compradas. Faltava só chegar à rodoviária de Belo Horizonte e seguir rumo à Angra dos Reis, à famosa Ilha Grande. Parecia tudo muito simples, embora a distância fosse significativa e a viagem com jeito de aventura. Foram dias e dias de arrumação, discussões sobre a dormida, as barracas e os colchões de ar; tudo em prol de uma estadia menos desconfortável lá no Camping do Peixoto.

Malas prontas, expectativas, até que chegou o dia. - E aí Keila? perguntou Viviane ao telefone. Tudo arrumado? Ainda não menina; ainda vou terminar. – É, eu também tenho que terminar de fazer as malas, concordou Vi. – E como você pretende chegar à rodo? – Vou de metrô, disse Keila. Ficou tudo acertado; bastava um último telefonema para que pegassem o mesmo trem. Viviane ficava a apenas uma estação de distância. O combinado era: Viviane entraria no metrô, daria um toque no celular e Keila entraria em seguida; assim chegariam juntas para o embarque às oito horas e trinta minutos da noite do dia 28 de dezembro de 2007.

Keila, apressada e pontual, chegou cedo à estação, com pressentimentos de que a amiga não chegaria a tempo, pois já tinha ligado e ela ainda estava tentando preencher os últimos e escassos espaços da mala. Viviane dizia que nunca tinha perdido um ônibus em toda sua vida. Desde a compra da passagem foi uma novela: ela não parecia muito animada; tinha dúvidas sobre o sucesso de uma viagem que só poderia ser concluída de barco, sujeita a náuseas e naufrágios. Mas compraram os bilhetes referentes às últimas cadeiras...por um pouco a viagem não era cancelada ali mesmo...ai...ai...ai...

Na estação Horto, Keila olhava atentamente para o celular e para as horas que não cessavam de passar. Aos quinze minutos para às oito passou o primeiro trem e nada do toquinho do celular da Vivi. Keila ficou visivelmente transtornada. Até que toca o telefone. Era a amiga Sílvia. Ela iria aguardar as duas na estação Lagoinha, ao lado da rodo, para se despedir e dar uma mãozinha com as bagagens, afinal de contas Vivi também estava com dores nas costas. Mal sabia ela, que seria mais que uma despedida. Passou o segundo trem às oito e cinco e nada...Keila pensou: vou entrar nesse pra ver se seguro o ônibus. Entrou. Ligou para Vi e disse: entrei no metrô, vou tentar adiar o embarque do ônibus, não há outro jeito agora. Vivi emudeceu infantilmente ao telefone como quem se sentia abandonada pela amiga, já que o combinado eram ir juntas. Ela nunca tinha perdido um ônibus até então, mas o trem ela perdeu.

Finalmente Keila chegou à Estação Lagoinha onde se encontrou com Sílvia, toda tranqüila e sorridente, e nada da Vivi chegar. Deram oito horas e vinte minutos. Keila, já atordoada, falou com Sílvia: vou descer correndo para ver se conseguimos embarcar. Quando a Viviane chegar ajude com a mala e desça correndo sem respirar que verei o que posso fazer. Enquanto isso, Vivi amargava a angústia de um trem atrasado e, conseqüentemente, de uma viagem perdida e parcialmente paga.

Na plataforma E2, BH-Angra, não havia tumulto algum. Keila esperava encontrar uma fila e gente acomodando bagagens, o que poderia adiar um pouco a saída, mas não...o ônibus já estava para sair. Ela chegou perto do motorista: - Por favor, não dá para esperar uns cinco minutinhos, minha amiga já está chegando, por favor....O motorista olhava para ela sem sequer um lance de comiseração: - Não posso, a fiscalização não permite. Sem sinal de Vivi, Keila decidiu não embarcar, mas antes ligou e falou: tem mais jeito não Vi, o ônibus está saindo. – Entra Keila, entra! Advertiu Vivi – Mas você já está na rodo? – Estou Keila – Então corre Vi....

Keila entrou na cabine do ônibus e em desespero pedia o motorista que esperasse; ele sempre relutante e fiel à tal fiscalização...Com o celular a postos Keila tentava direcionar a amiga que vinha correndo atrás do carro, é claro, com a assistente Sílvia dando aquele suporte de carregadora e timoneira. Saindo da Rodo tinha uma placa de Pare: Vi, estamos na placa de Pare...Tô chegando Keila....Vi, deu a partida de novo..., dizia Keila já aos gritos sob os olhares curiosos do motorista, do assistente e dos transeuntes. E Vi do outro lado com a respiração ofegante e a motivação de todos os rodoviarianos...- Ai Vi, saiu da rodo...não, não...parou no sinal, estamos atrás de um Fiorino...ai meu Deus! Abriu o sinal...Só neste momento, o motorista esboçou algum sinal de ajuda...- Vou parar do outro lado da avenida Tereza Cristina atrás da Viação Cometa. Vivi corria, a porta do ônibus se abriu, e Keila avistou Viviane indo em direção ao cometa...Keila chamou, Vi andou uns passos para trás e se lembrou que o bilhete era da Viação Útil. Ela tinha a sensação que iria até Angra atrás daquele ônibus e até mesmo de um cometa....sorriu aquele sorriso embaçado, seco como um alívio...As duas se confraternizaram na cabine e Haroldo, o motorista, destilou sua frase contraditória: Agora é só alegria! Tudo isto apenas três minutos depois do horário marcado. Keila pensou: há um tempo limite, quase milimétrico, no qual tudo é possível; a tecnologia celular inaugurou uma nova era de tempos, cenas que se comunicam em pleno movimento; será que a ilha nos espera?

Cafezinho Revigorante

Será que algum dia teve ilusão? Ou não será esta a que vive agora, a mais verdadeira, a única possível? Maria enlouquecia a olhos vistos e os dela afundavam cada vez mais nas órbitas; pequeninos, foscos e desnutridos. Hoje, perto dos oitenta anos, ainda se movimenta com certa agilidade e tem uma ansiedade incomum nesta idade. Sempre se dedicou à catação de entulhos de toda sorte, principalmente os papelões, e os carregava todos na cabeça já achatada pelo tempo e enfronhada em pano grosso.

Quando eu era pequenina, ela aparecia lá em casa, pedia um cafezinho, nunca um pedaço de pão. As primeiras lembranças dela só tenho pelo relato de minha mãe. As segundas já me lembro melhor: - Oi Menina? Sua mãe tá boa? Lembra-se de mim? Sua avó me dava sempre um cafezinho...Depois sua mãe...Era assim sua abordagem, meio pelas beiradas e com uma gentileza de rainha. No final: Deus lhe pague e um sorriso de gengivas finas de bebê. Levantava lentamente a turma de papelões com os braços finos de pequeninos bíceps enrigecidos e seguia a passos rápidos, revigorada pelo cafezinho.

Passaram-se anos, eu cresci, e Maria continuou a passar lá em casa esporadicamente em busca do cafezinho, até que um dia não apareceu mais. Ela morava em uma dessas casas de apoio a desamparados junto com a irmã doente e acamada. Até hoje não sei como alimentava a tal irmã, já que ela mesma parecia sobreviver do cafezinho e na melhor das hipóteses, do pedaço de pão. Outro dia desses, eu e mamãe a encontramos no seu caminhar acelerado, mas sem o peso dos grossos papéis. Ela não nos reconheceu, mesmo com nossa tentativa de reavivar sua memória. A irmã tinha morrido e ela confessava: - Não quero ficar mais naquele lugar...eles querem me prender lá...querem todo meu dinheiro...Olhamos para ela sem entender qual era o dinheiro.

Mais recentemente vi Maria. Estava sentada em um canteiro, desses baixinhos, na porta de uma casa de esquina. Sempre na rua, perambulando, sem querer voltar. A sacolinha de plástico fino, apoiada na perna fina. Usava um lenço azul de organdi e tateava o rosto com os dedos calejados. Parecia que a face lhe escapava; todo seu corpo era uma ilusão. Até o cafezinho...não se lembrava mais de pedir naquele seu jeito “volteado” e delicado.

Mezinda

Morava no conjunto de casinhas improvisadas na periferia do bairro. Até que chegou o “progresso” e a construção da avenida obrigou-a a sair do barraco. Nada nunca se soube sobre seus familiares. Era sozinha e ganhava seu dinheirinho às custas da roupa suja dos mais bem postos do bairro. Na verdade, lavava e passava. Conheceu dona Rute por intermédio das vizinhas Noeme e Dozinha, que a recomendaram como pessoa esforçada e honesta. Mas a idade já avançada tornou a profissão cada vez mais custosa para ela e para os outros, que se doíam de vê-la já com certas dificuldades. A aposentadoria veio com a mudança abrupta da antiga morada.

Efetuada a desapropriação da vila, Mezinda foi levada para a Associação São Vicente de Paula dentro do bairro, onde tinha um pequeno quartinho, com água, luz, cesta básica e, eventualmente, uma consulta médica. Sofria de elefantíase crônica em uma das pernas e certa vez trocou o pagamento de dona Rute por um par de tênis. Precisava muito de um. Lá foram elas para a Sapataria Butinada, a mais próxima do bairro, fazer a compra. A tarefa não era nada fácil, já que um dos pés e tornozelos eram bastante inchados. Experimentaram vários pares, daqueles tipo quixute, bamba e rainha dos antigos, todos de cadarço e duros. Os tênis mais macios ainda não haviam chegado aos mercados brasileiros. Mezinda ficou com o bamba mesmo e usava o par direito sem amarrar e dobrado no calcanhar. Ficou feliz com a troca.

Rute não contratou mais os serviços de Mezinda, mas continuou a amizade. Logo que soube que ela estava em uma associação no bairro mesmo, pôs-se a visitá-la de vez em quando. Ia sempre com Júlia, sua filha única. O cheiro de feijões cozidos invadia todo o quarto de Mezinda. Era sempre assim. A panela borbulhante, escurecida pelo fogo, exalando vapores. Mezinda gentil: - Rute...tem um moço tão bonito, cabelo pretinho como o seu...vou te apresentar...Rute havia se separado do marido quando Júlia ainda mal completara um ano. Era jovem, bonita e sem namorado. Mezinda não se conformava. Rute incrédula da beleza do rapaz, sorria para Mezinda e falava: será?

Além dos feijões tinha as sobrancelhas de Mezinda. Tintas de carvão. Não descuidava nunca. Mas os pêlos no queixo, encaracolados e crespos, de sua raça negra, já eram brancos, e eles não levavam o carvão. A cabeça sempre encoberta pelo lenço, que raramente deixava escapar um pêlo sequer. Recebia mãe é filha com alegria, oferecia feijão, namorado e atenção sem igual. A última vez que foram lá, Mezinda estava meio adoentada. A cortesia viva, mas enfraquecida. Os feijões cada vez mais juntos e ressecados na panela. – Mezinda...,.dizia Rute. – Esse feijão vai queimar...Nesse dia, a gentil Mezinda apagou o fogo do feijão. Tempos depois, Rute e Júlia souberam da morte dela. Júlia lembra-se até hoje do cheiro dos feijões da Mezinda e acha curioso como os cheiros ficam na mente tão bem guardados.

Bichos de asas

Na época dos bichinhos de asas, a lua fica mais bela, pensava Flora. Era nos finais de Agosto, quando sobreviam todos aqueles desastres naturais, as doenças; enfim, tudo o que profetizava o povo da pequenina cidade, onde nascera Flora Maria do Socorro. Nesse tempo andavam todos meio friorentos e meio encalourados, na eminência do fim do tempo frio, do renascer das borboletas e também de toda sorte de insetos, até os mais pegajosos. Mas interessante mesmo eram aqueles de asas transparentes, enlouquecidos pelas luzes da cidadela; os postes ficavam chamuscados de nuvens deles, milhares buscando o calor até as bases das membranas móveis derreterem. Ícaros invertidos e diminutos, nasciam de asas e as perdiam sob as luzes artificiais, já que não alcançavam a lua...Foi olhando para eles na volta para casa que Flora lembrou-se de mais cedo, do panfleto entregue na Rua dos Albuquerques por um garoto até engraçadinho.

Pela segunda vez o papel da Astróloga e Espirituralista chegava às suas mãos. Flora achou, então, que não podia desprezar o fato. O papelzinho tinha remédio para tudo, desde os romanescos até os mais carnais; e também negócios, justiça e saúde. A cura para todos os males ficava em uma rua no centro, bem próximo à igreja, que diga-se de passagem, Flora freqüentava de vez em quando. É bem verdade que Flora não acreditava muito nessas coisas, mas foi tomada por uma curiosidade sem controle. Marcou a consulta.

A vida de Flora até que ia bem. Ganhava seu dinheirinho todo mês. Não era muito vaidosa e nem sonhava em ser. No entanto, adoraria ser admirada por um moçoilo dos idos de sua adolescência. Mauro Cunha morava em uma rua paralela; era o primeiro filho de uma família tradicional. Os pais eram “bem casados”, saíam até para dançar depois de quase quarenta anos juntos. E Flora se mirava neles, neste caso perfeito e no seu possível namoro com Maurinho.

Colocou óculos escuros e saiu convicta de que ninguém se preocuparia com sua vida. Adotou o movimento sempre para frente e sem olhar para os lados aportou no templo da Astróloga e Espiritualista sem nome. Foi à noite, como prevenção, estrumbicando-se pelo caminho com sua parca visão, enquanto a cidade dormia. Só os bichinhos de asas a acompanharam, poste a poste, sem tréguas. Logo na entrada havia uma placa: Entre e saberá tudo sobre você e serás dono de todas as suas vontades. A frase se iniciava com o desenho de uma meia lua em torno de uma estrela e findava com o sol.

Aberto o portão seguiu-se um corredor mal iluminado e ao fundo a esperava uma dona gordinha, de sorriso largo. A senhorinha convidou Flora a entrar, solicitou o pagamento e convidou-a e sentar-se no sofá da sala, alugada especialmente para as consultas. A Espiritualista foi logo perguntando: - A que vem...uma moça tão bonita, parecendo gozar de boa saúde e tranqüilidade? - Quero dar um colorido à vida. - E como pretende fazer isso? Especulava Flora sem manipular nenhum apetrecho. Cobria-lhe o corpo um vestido comum de chita e uns cabelos lisos, médios, prateados pelo tempo.

De repente, os olhos da deusa mortal ganharam novas feições...a voz já aguda, ganhou tonalidades de maritacas em bando. Mas permaneceu com o quadril grudado ao assento. Flora que não havia respondido à última pergunta arregalou os olhos e se pôs a levantar, já arrependida da empreitada. A “macumbeira” levantou-se mal se equilibrando sobre as pernas, agarrou-lhe o braço fincando-lhe as unhas e gralhou: - e então, como pretende colorir a vida mocinha? - Bem...eu...eu....eu....gostei do Maurinho um dia....esses dias tenho me lembrado dele....- E este tal Maurinho, sabe da sua existência e bem querença? - Sim, contei a ele certa vez, mas acho que já se esqueceu...- Lembre-o ou finja que não o conhece e tente de novo contar...ou não conte...disfarce um encontro fortuito....ou quem sabe...agarre-o sem pudores no meio da rua...mande uma poesia sem nome...duas...três...quatro...até que um dia.... - Até que um dia....? continuou Flora. - Até que um dia ele pode se lembrar ou não esquecer ou te esquecer de vez...Dizia isso com os olhos injetados quase cuspindo na cara de Flora....até que amoleceu o corpo, sentou-se e retirou de dentro de uma caixinha, que estava sobre a mesa de centro, uma pedra branca para qual olhou fixamente: - Algo me diz que ele poderá te amar...Flora, que já estava de pé, agradeceu a “profecia” e saiu meio às pressas...O custo não tinha sido tão alto...mas se alguém a visse....que vergonha...e por nada...

Flora chegou em casa sem fazer barulho; não falou nada com ninguém. Antes olhou pela janela que dava exatamente para um poste. Lá estavam os insetos, aos milhares, quase se desfazendo ao sabor da luz, caindo aos montes...e a lua lá no alto, amarelada e imponente...Na casa dos Cunha tinha uma luz também, logo na entrada, e que devia estar cheia desses bichinhos de asas...pensou Flora. No dia seguinte acordou, tomou seu café, banho, saiu, atravessou a rua e chegou junto ao poste. A luz estava apagada e embaixo dela,no chão, várias transparências sob o sol se refratavam em várias cores...De noite haveriam mais daqueles bichos e no outro dia pela manhã vários resquícios de asas coloridas iriam se amontoar durante todos os meses de Agosto.

Caracóis no caminho

Retornava do trabalho quase sempre no mesmo horário. Passava pelo mesmocaminho que cruzava a praça principal de seu bairro, entre a última luz do sol e a primeira da lua. Não sabia contar exatamente sobre todas asconstruções que se seguiam, mas eram muitas de todas as cores e estilos, com reboco, sem reboco, algumas sobre as outras. Tinha também meninos que soltavam pipa já em meio àquela luz beirando o crepúsculo, como se nãoquisessem se despedir do dia. Um bêbado quase sempre se repetia no caminho; cambaleante, falando uma língua alta, rosnando um desagrado qualquer, exatamente naqueles momentos em que Carminha passava no seu passo ritmado, nem tanto gingado, bem mais apressado. Um passar de quem não tinha tempo para parar e olhar.

Seguia, descia, subia e chegava ao topo do caminho para descer ladeira abaixo novamente numa urgência danada. Olhava, registrava alguns elementos, mas passava. Foi quando um dia desses chamaram-na de súbito. Eram quatro homens. Os trajes nem tanto limpos e as mãos engraxadas, de uma escuridão poeirenta. Um deles levantou-se rapidamente do banco extenso de curvas da praça: - Oi, tudo bem? – Oi, tudo bem, respondeu ela, já adiantando o tronco em direção à seqüência do caminho...melhor responder... Aí sim fixou o olhar e viu que eram quatro hippies, aqueles seres dos anos 70, adeptos, segundo muitos, da famosa tríade: sexo, drogas e Rock'n'Roll. Queriam simplesmente mostrar as "bijus". Foram logo dizendo: Que aura você tem..., já tentando, é claro, seduzir a possível cliente. Carminha percorreu as peças com os olhos na cadência de seus passos, até que chegou aos brincos, os penduricalhos que mais lhe agradavam. Havia um com uma pedra verde que gostou muito. – Quanto custa esse? – Dez reais. – Deixe-me ver se tenho esse dinheiro aqui. Abriua bolsa, a bolsinha de moedas com notas...retirou as notas. _Só tenho sete,faz por sete? E eles com aquela cara de paisagem. - Deixa eu ver se vocês têm algo mais barato...- Ah, gosto mesmo é de brincos... – E esse? – É africano. – Quanto é? – Quinze reais. – Ihh...só estou gostando dos mais caros. – Depois você passa aqui...amanhã...e dá o resto, disse um deles. Resumo: ficou por sete mesmo. Carminha foi logo pegando os brincos de pedrinha verde para apertar o passo e seguir. - Não... espera! Tem a poesia. O nosso promoter vai fazer a trilha no tambor. Além disso, você tem direito aos caracóis do meu cabelo. Então, o rapaz começou o recital em voz baixa em frente à Carminha, com direito a batuque e tudo mais.

Só dois dos quatro hippies falavam e se movimentavam: o artesão e opromoter. Os outros permaneceram sentados e mudos; de vez em quando sorriam. O artesão veio com um alicate e um fio prateado. Começou a entortar e recitava uma história de gnomos e fadas e festas de amor e brincadeiras.Carminha ficou olhando para ele e ele para o arame, que ia adquirindo certa forma. Carminha desatenta de novo disse ao fim da poesia: obrigada, eesboçou a permanente vontade de ir... já estou me demorando muito poraqui... - Tem o caracol..., advertiu o artesão - Ah sim...Era um brinquinho de pressão no formato caracol para colocar bem na cartilagem da orelha,simulando um piercing. O rapaz de mãos enegrecidas e habilidosas pediulicença, afastou os cabelos da moça e fixou seu caracol. O artesão tinha um compromisso com os seres da floresta mágica: fixar caracóis e manter oscabelos grandes. Carminha se lembrou do Sansão: - Não corte os cabelos,senão o Sansão perde a força...e sorriu! Disse isso meio semgraça, disfarçando, já que a poesia não lhe pareceu muito legível. Mas foi embora a passos rápidos, feliz pela "homenagem" e com os brincos na mão. Acombinação sexo, drogas e Rock'n'Roll se anuviou na sua mente. E todos quesempre dizem: "não tem hippie autêntico mais. É tudo comércio." Se podia ou não chamá-los de hippies, Carminha não estava bem certa. Mas pensou: tristevida deles se não fosse o comércio e toda aquela parafernália de marketing e sedução: grito, frases feitas, tambor, poesia e caracol.

Episódio de infância

A infância, fase curiosa da vida, faz-me lembrar alguns acontecimentos engraçados. Um desses episódios, particularmente interessante, solidificou-se em minha mente e até hoje provoca-me risos.

Era costumeiro receber, em casa, nos finais de semana, a visita de tias e primos. Os primos, Patrícia e Fabiano, eram anúncio de brincadeiras e aventuras; enquanto as tias, respeitáveis educadoras, constituíam obstáculos mais ou menos transponíveis às nossas levadezas.

Havia uma vizinha, dona Benita, que tinha em seu quintal um balanço feito de cordas e tábua de madeira, sustentado por uma goiabeira. As goiabas não eram lá essas coisas... Na verdade, eram meio raquíticas e não estava na época delas. Mas o balanço... Ah! Aquele balanço! Nós, eu e meus primos, adorávamos balanços! E foi numa ensolarada tarde de sábado que tudo aconteceu!

Patrícia, Fabiano e eu entramos na casa de dona Benita, às escondidas, e evidentemente, sem o consentimento de nossas mães. Após nos divertirmos algum tempo com as delícias daquele quintal, parecido com aqueles de casas do interior, Fabiano, o único menino e o mais corajoso dos três, convenceu-nos de que subíssemos no telhado da garagem de dona Benita. Os meninos são como aranhas, amantes das alturas e das cordas bambas...O que mais me indignava era a familiaridade que tinham com as escaladas, e pior, quase sempre saíam ilesos!

Fabiano, o guia da subida, conduziu-nos ao telhado, que era de amianto. Eu, a mais velha da turma, fui advertida de que a maior parte das telhas estavam podres e portanto, era necessário tomarmos cuidado. A priminha Patrícia, lá pelos seus cinco anos de idade, sendo a última da fila, não seguiu as instruções do nosso perito em aventuras. Deu um passo precipitado, a telha se rompeu e prima Patrícia caiu dentro da garagem. Foi um “Deus nos acuda”! Eu e Fabiano não sabíamos o que fazer. Enquanto isso, Patrícia chorava sem parar.

Não tardou e o choro da menina atraiu algumas pessoas, e também as mães enganadas. Deram início ao resgate, através do buraco recém inaugurado, por intermédio de uma escada, já que a dona da casa encontrava-se em um velório e tinha levado as chaves. Patrícia caiu sobre um carro, amortecendo sua queda, mas saiu de lá roxa de tanto chorar! A polêmica foi grande! Eu e Fabiano fomos responsabilizados pela tragédia, pois éramos os mais velhos.

A sorte é que a vizinha não estava lá quando tudo aconteceu, mas quando soube fez um discurso inflamado na porta de minha casa. Dizia ser viúva e que não podia arcar com tamanho prejuízo. Nossas mães, contrariadas, resolveram fazer uma “vaquinha”, mesmo considerando o péssimo estado do telhado que de qualquer maneira desmoronaria. Eu e meus primos nunca mais ousamos entrar naquele quintal!