Histórias sempre estão na fronteira; por mais que tentemos acomodá-las elas esbarram no real vivido, ouvido, lembrado; elas esbarram no imaginado, sonhado, criado...por isso evocamos os entrelugares, onde cabem o contraditório, o surpreendente e até o esperado...todos eles permissíveis à intromissão do eu e também à sua ausência, mesmo disfarçada.
quinta-feira, 18 de novembro de 2010
Indelével
Depois que o conhecera, vivia em abraço. Ninguém a compreendia quando chegavam perto e ela, subitamente, rejeitava outro abraço, quando então dizia: ‘Já estou em abraço’. Tudo começou quando reconheceu os braços dele e fundiu-se de forma irrefreável como num enlace inevitável. Era incompreensível o dizer dela para os olhares em redor: ´Já estou em abraço’. Nada se via grudado nela, senão a cena, o mimetismo do abraço vez por outra. Era indelével, já parte dela o abraço. Fora permissível demais, em exagero, tanto que o abraço pregara de forma irremediável. Os familiares começaram a se preocupar seriamente com aquela moça em abraço; pensaram em coisa de espírito, em uma espécie de síndrome siamesa invisível mesmo tardia, que haveria alguma séria afecção do pulmão ou do coração que tornava o peito dolorido a rejeitar outros braços. Pensaram muitas possibilidades, visitaram especialistas, e nenhum observara nada de anormal, senão o afastamento súbito, amedrontado. Com o passar do tempo os braços dela começaram a volver outro corpo ‘inexistente’, ficavam em arco permanente e os dedos das mãos tensos; de tempos em tempos fazia uns movimentos de dança com a mãos, resguardados os limites de círculo, um abraço, talvez no entorno do corpo dele. Ninguém jamais o vira, embora ela jurasse que o abraçara e que ele jamais a soltara. No tempo em que o abraço tomara aquela conformação tão evidente e fixa de braços em abraço, ela não pôde mais saciar a sede, a fome, pôde sequer satisfazer as necessidades funcionais do corpo, os apelos fisiológicos, sem a ajuda de sua mãe. Viveu assim por algum tempo, como a carregar outro corpo consigo aonde fosse. Morreu assim. Nada foi possível fazer quanto às suas mãos. Por nenhum esforço manifesto elas se colocaram no peito em forma entrecruzada para a habitual vigília dos familiares e amigos após a morte. Entre ela e as mãos estava ele, ele no entrelugar do coração dela, dos braços e das mãos...Forçoso foi aumentar as medidas da caixa grande em que ela descansava e enterrá-los assim, em abraço...
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3 comentários:
Nossa! A importância deste abraço é comovedora. Lindo texto!
Nossa! esse abraçar cura qualquer carência de calor e efetiva de maneira definitiva o humano que nos cala!
Lindo.
O abraço é sempre um ato de acolhimento, como os seus escritos. Belo!
Beijos, Keila.
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