quinta-feira, 26 de agosto de 2010

Dona Tereza

Com seus olhos azuis pequeninos ela adentrava todos os dias a sala de fisioterapia. Irradiava risos por todos os cantos daquele lugar, feito um anjo levado, cheia de histórias macabras, eróticas e até singelas. Ninguém diria que já alcançara, aliás, já passara dos oitenta anos, tão vívida era sua presença, de jovialidade incandescente... Certa vez contou de seu tio de Muriaé, criador de porcos. Este morrera de pescoço decepado num acidente de Kombi, e os porquinhos todos rolaram pela estrada...’uma tristeza’, dizia ela. ‘Tiverem que costurar a cabeça pro velório...’ Outra vez contava das paqueras e do casamento que já ia nos seus cinqüenta e oito anos. Brincava com seu jeito zombeteiro, ‘Mulher tem garantia, homem não’...Tanto que de vez em quando alardeava um flerte na esquina com um moço bem moreno e cativante, depois concluía...’sou casada’...com aquele pesar de moça namoradeira. Dificilmente haveria em tão dura idade, quando as articulações se colam e os músculos se ressentem, alguém como Dona Tereza, a fazer gente rir todas as manhãs, tamanha a espontaneidade, o vigor. A despeito de seus tendões do ombro rompidos, doloridos, ela era a única ‘paciente’ a não reclamar do gelo tópico no inverno, talvez porque o gelo se tornasse líquido morno rapidamente em contato com a pele dela. Ela era adaptável, dobrável; a rigidez não se fixara em sua alma. Lembro-me do seu toque carinhoso em minhas mãos e no meu rosto; as jovens mãos de Tereza ávidas por carinho, cheias de vida.

3 comentários:

Nina Blue disse...

Lembrei-me de que, quando acidentada em 1995, precisei frequentar a fisioterapia por uns três meses, e também tinha uma senhora como a D.Tereza, a hora sempre passava mais rápido...
Muito bom estas pessoas eternemente jovens. Tomara que fiquemos assim, Keila. Beijos.

Paulo disse...

Há pessoas, em quem a memória dos dias é tão rica, que o tempo não lhes retira capacidades, mas acrescenta. Como essa extraordináia possibilidade de tornar o gelo morno, às vezes só com o olhar.
Excelente.

Ricardo Fabião disse...

Keila...
uma porta sempre aberta aqui, um mundo muito próximo, deveras humano; é assim que se nos apresenta esse teu universo literário; sempre tão delicado, tão bem costurado. Mil cores, mil sentidos. Não me canso de ler-te.

Ando meio sem tempo de visitar os poetas queridos, mas aqui estou, roubando-me de minhas quadradas obrigações diárias.

Quanto à dedicatória da minha última postagem, sim, és a Keila ali mencionada: escritora que bem conhece as medidas da fronteira, dos entrelugares.
Não poderia ser outra.

Beijos.
Ricardo