quarta-feira, 11 de agosto de 2010

Não se sabe

Aquela sala de fisioterapia era o exato lugar do passar do tempo, primeiro nos seus próprios tendões e músculos a fadigar, depois naquelas imagens já antigas a resmungar dores nas pernas, dedos em cãimbra, colunas em ardor, pelves em desalinho. Seu problema parecia simples; disseram-lhe ser coisa de tecido mole, um tendão aborrecido a queimar o calcanhar, a relembrar uma dor de infância, que tinha dentro do osso, assim lembrava. Antes, disseram-lhe que era dor da perda, da separação, da falta quem sabe. Agora, atribuíram às dores a sua anatomia cava dos pés. Talvez seja esse fosso nos pés que guardava tudo, pensava. Mas na perspectiva médica era um mecanismo normal de compensações a ser suficientemente remediado com antiinflamatórios e fisioterapia. Dito e feito. Lá se foi ela todas as manhãs em busca da ‘cura’, mas temerosa de que estivesse a esconder um presságio da alma, do coração. Contudo o tempo que passava com a doutora (assim diziam as mais velhas) era agradável, posto que vinha cheia de acalento em panos quentes, massagens vigorosas e delicadas e aquelas conversas de gente velha nada velha, só nos ossos e nas carnes já gastas. Percebera que a antiguidade se renovava, e algumas, até irmãs e carolas, diziam da igreja, dos padres, mas diziam também das patroas italianas a fazer um filho enquanto outro nem havia começado a andar. Diziam da lavoura, da política inacreditável. Diziam de tudo e menos da dor. Perguntavam-lhe, tão moça e já aqui? Concluíam que dor era coisa de ‘jovem’ também; consolavam-se? A sala era acolhedora, a doutora talvez na metade do tempo, no entrelugar da ‘moça’ e das ‘velhas’, contava histórias, ouvia histórias, lembrava o passado, antevia o futuro? O calcanhar ia aos poucos revelando novas sensações, não se sabe se de cura permanente, ou de dor que vem e passa, um aviso da alma.

2 comentários:

Nina Blue disse...

Para a alma, atenção e afeto.
Para o corpo, toque e carinho...
E pra falar a verdade, quem de nós vai recusar? lindo texto.

Paulo disse...

A dor da alma dá tanto no cavo do pé como no redondo do ombro. Dói mais que dente cariado e não sai nem com pano quente nem massagem de mão. Precisa mesmo é de abraço, sol e sorriso.
Bonito texto.