quinta-feira, 8 de outubro de 2009

Penitente

Ela não gostaria que a acusassem de crime ambiental, nem tão pouco que pensassem dela uma enormidade de descaso com as coisas belas e providenciais da natureza. Mas sentia dentro de si uma predisposição para o homicídio, não de gente, que isso ela nunca pensou, salvo, é claro, quando sabia de um tarado molestador de crianças e mulheres. Pensava em assassinar um pé de pitanga e a imagem da moto serra na mente provocava-lhe quase um êxtase. A hipótese do veneno também não era má, mas cria piamente que aquele pé não morreria com medida tão silenciosa. Além do mais, não ia se queimar tanto, com ação tão condenável e muito menos escusa. Preferia o acordo.

Não tinha nada em especial contra a fruta vermelha, saborosa e até adocicada, mas aquela vermelhidão aguada que invadia seu quintal, junto com o verde numeroso daquelas folhinhas e o entupimento da calha recorrente em todos os períodos de chuva, despertava nela aquele sentimento ilegal. E a pitangueira nem era dela; a árvore pendia do muro do vizinho e as folhas e frutos desciam copiosamente, ou então, as florezinhas miúdas a soltar o pólen, num gozo frenético pela irritação nasal e pelas infiltrações na casa. De noite o quintal ficava atulhado de baratas frutíferas e na manhã seguinte, o horror da permanência das frutas vermelhas, posto que poucas se convertiam em caroços brancos, pois até os insetos kafkanianos ficavam enjoados, tanta era a quantidade. Dentro dos cômodos da casa saltavam também os frutos e as solas dos sapatos viravam carimbos de tinta púrpura.

Tentaram de tudo; varreção, adubo, suco, enfim, alguma solução que trouxesse sustentabilidade e paz ao coração, aquela sensação de alma apaziguada. Passaram-se anos e ela nunca tomou nenhuma atitude decisiva ou homicida, senão propor e realizar parcas podas para minimizar a enxurrada de frutos e folhas. O pé de pitanga virou uma espécie de penitência; sim, ela entendeu assim. Que de alguma forma aquele caldo avermelhado no seu quintal deveria ter alguma razão nobre, nem que fosse o encontro da tolerância com os caprichos do vizinho, que não se desvencilhava das árvores frutíferas em seu exíguo corredor, mesmo sabendo que penderiam todas para o quintal ao lado e que poderiam provocar litígios e até nódoas de sangue.

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