quarta-feira, 26 de maio de 2010

Estranheza

Ela sempre os achara estranhos; a conversa em alto tom, os trajes informes, desalinhados, os cabelos meio alvoroçados e brilhantes, como recém-lustrados. Eram dois, por vezes três, mas em constância eram dois; ele e ela. Ele, filho maduro sem madureza a matraquear; ela, mãe de faces já marcadas e cãs. Traziam consigo sempre aquelas sacolinhas brancas de supermercado com uma, duas ou três latas vazias, catadas no ir e vir. Desciam e subiam ruas num diálogo exaltado sobre coisas só deles e quem dirá dos outros, outros esses que jamais saberiam do dizer deles, pois que andavam assim apartados em sua dita loucura.

Outro dia desses, ela observara os dois a caminhar na sua rotina e olhou para si, viu-se nesse mesmo caminhar de loucura, talvez mais loucura, mesmo sem o figurino tão desacertado e em meio ao silêncio aparente, mas num falar consigo mesma irremediável e incontrolável. Por vezes, ela denunciava da varanda a passagem dos dois, ou os avistava a distância pelas ruas mesmo e comentava; sempre os dois na mesma coreografia diária, no mesmo cenário. Dizia deles, falava sobre eles, até os achava engraçado algumas vezes. Estranhava e pensava o porquê da cena tão repetida e aparentemente ensandecida; esquecia-se da sua imagem habitual de todos os dias, de sua loucura insana, de sua sanidade louca, esse limite tênue.

Os dois transeuntes de todo dia revelavam a loucura em um futuro qualquer, imediato ou mediato, revelavam-na a todos, conhecidos e desconhecidos, em algum momento; possibilidades. Ela ficava assim parada nesse olhar, com mente em pensamento sobre as loucuras que o tempo faz, nas contingências, nas incongruências, nas ‘desrazões’, nas fatalidades; a loucura a chamar a vida em falso esplendor e esperança; a loucura ali, sempre a rodear. Pensava também nas sanidades a esconder as loucuras.

Tempos depois soube notícias de memórias daquela família. Ele, que sempre acompanhara a mãe, nascera em desarmonia de mente; o terceiro e o quarto também. Ela, diziam; era bela, bem conformada e alinhada; os cabelos escorridos loiros e os olhos verdes de sedução causavam estranhamento bom, admiração. Após o casamento com moço também em alinho, nasceu ele, o terceiro e um quarto. O quarto, que foi o primeiro nascido, já se foi; contaram que se fora desnorteado, ‘overdoseado’ de substâncias várias. O terceiro, na verdade, o segundo, o do meio, aparecia pouco e sempre alvoroçado, endoidecido. O marido pôs-se a reviver a mocidade, sempre de vestes e corpo ‘honrados’, enamorado; não fazia mais parte daquele clã. Agora, pelos caminhos ao alcance do olhar dela, o corriqueiro era aparecerem os dois; ele, o caçula, atavicamente loiro de olhos verdes arregalados; ela , já de verdes baços a se fechar.

Um comentário:

Ricardo Fabião disse...

Lindo, Keila...
Inebriante, perfurador.

Beijos. Ricardo.