Histórias sempre estão na fronteira; por mais que tentemos acomodá-las elas esbarram no real vivido, ouvido, lembrado; elas esbarram no imaginado, sonhado, criado...por isso evocamos os entrelugares, onde cabem o contraditório, o surpreendente e até o esperado...todos eles permissíveis à intromissão do eu e também à sua ausência, mesmo disfarçada.
terça-feira, 25 de maio de 2010
Sons e vãos do sem fim
‘E o sem fim pode ter cerca?’ Quincas se perguntou numa dessas suas andanças diárias pra roça do Seu Pedro Ramiro, onde labutava com rebanho sem conta, em vastidão e solidão de campos. ‘Claro que pode’, pensou consigo mesmo; ‘tem cerca que nunca acaba e vai mesmo é parar no sem fim; é só linha de céu que não se acaba e a cerca a correr por baixo; só mesmo quando a noite despenca sem estrelas é que não se avista mais o sem fim e nem a cerca...’ Depois pôs-se a matutar da divisão, dos dois lados que dão sentido pra cerca, e angustiou-se dos limites, até que pensou mais e repensou; ‘cerca é só um limite falso de arame fino ou grosso, liso ou farpado; é muro desfiado, cheio de vão, onde uma terra dança com a outra; arranham-se ou se gabam de pular de um lado pro outro sem se machucar, e assim os dois lados ficam ali vazados a escorrer paisagens, enquanto os donos ficam crentes dos limites. ‘Muro é bem pior’, pensava Quincas, ‘porque não deixa ver’. Certa vez Quincas foi visitar terra de casas muradas numa cidade sem campos. Havia só pequenas porções de campo com verdinhos escassos, a que chamavam canteiros, e ele se punha a lembrar era da cantoria dos campos abertos, dos mugidos, do vento e da chuva ressoando alto sem limites, mesmo com cercas pra todo lado. Ele achava sim que cerca era um tipo de muro, mas muro sem cola, só de enlace pra desfazer e cheio de janela sem fim. Nunca quis voltar na cidade dos muros e dos canteiros, que preferia mesmo era cerca e cantoria de campos, os sons e vãos do sem fim.
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3 comentários:
Nossa, me senti nalgum conto de guimarães rosa. escrita virtuosa.
essa metáfora da cerca é fantástica, por a cerca define as fronteiras mas nao impede o contato.
abraço, sempre bom passar aqui!
Também gostei muito do texto... e das cercas:
"cerca, é só um limite falso de arame"!
Vejo-nos colados a um vidro canelado e nos olhando através dele... você tão aqui, tão pertinho, mas mal nos vemos, vemos apenas contornos deturpados pelas irregularidades do vidro. Não ouvimo-nos e vamos nos imaginando através de mensagens vazadas de nosso íntimo e que dão apenas a dimensão dos sons e vãos de nosso sem fim.
Vim aqui e pretendo voltar. E antes de mais nada, agradecer a visita e as palavras.
Tenha uma ótima noite.
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