quinta-feira, 13 de maio de 2010

Outrora

Desde outrora, aqueles olhos continuavam anuviados, sem pupilas definidas, quase um nevoeiro. Desde outrora nunca o vira inteiro, mas só os olhos de tempestade à vista, e navegava neles em tormenta. Desde outrora não o vira e o vira sempre nos momentos mais inesperados, como no dia do corte de cabelo. Estava lá sentada em frente ao espelho, enquanto o cabeleireiro repuxava seus fios, com mãos bruscas, mas em pose de moça afetada, meio homem, meio mulher, delicado no acolher, severo no gesto; até que ele entrou e se sentou ao lado de alguém que folheava uma revista e não ousava olhar; ao lado de outro alguém que só esperava e o olhava sem receio algum, porque nada nele se poderia dizer, por desconhecer. Mas ela sentada ali meio distante nos arremates das madeixas, de lado, sem poder se virar, identificara-o pela alcunha anunciada e pelo soslaio dos olhos. Respirou fundo enquanto a hora de levantar da cadeira se aproximava. Levantou, pegou o cartão, discutiu sobre o acerto das sobrancelhas da próxima vez, olhou para o banco e só viu os anuviados; balbuciou um oi seguido de um nome bem soletrado; o nome, não a alcunha, que não tinha intimidade para isso, embora ele fosse tão íntimo em sua história. Rompeu porta afora e escada abaixo com coração meio disparado, inconcluso do sentimento. Depois descobriu que era susto do passado, dos olhos anuviados de outrora.

2 comentários:

Ricardo Fabião disse...

O que seria dos momentos de hora qualquer, de nenhuma urgência, de cotidiano, desses acasos que nos cercam, se não houvesse quem os transformasse em literatura?

Hoje, não mais acredito em tramas mirabolantes; acredito no movimento das palavras, embarco em suas eternas marés, subo e desço junto, extasiado, enquanto elas me levam pela mão, contando como vai longe o simples.

Lindo texto.
Beijos.

Ricardo.

Paulo disse...

Descrição perfeita de personagens e ambiente. Excelente. Parabéns, Keila.