quarta-feira, 7 de julho de 2010

Desaviso

Lembrava-se...Sim, lembrava-se claramente daquele namorico adolescente que tivera; tão intenso que parecia nuvem baixa, aterradora, a chover forte e fraco, sem parar. Ele postou-se no portão de sua casa, bem do outro lado da rua, com uma pequena sacola dependurada nas mãos, vindo de uma cidade distante, logo ao amanhecer. Ela amanheceu assim amanhecida por ele num susto de visita desavisada. Ele vinha ver o amor de poucos beijos meio incongruentes, segundo a acusara, de quem beija das primeiras vezes; beijos de descoberta...Mas ele disse que viria assim mesmo, a despeito daqueles beijos atrapalhados, porque vira ela como uma membrana de libélula, não perfeita, mas absolutamente transparente, incoerente. Ela abriu-lhe o portão com dores na barriga de tanto susto, mas não deixou que ele entrasse. Disse que já ia; somente guardou a sacola em casa, e levou-o logo cedo para a escola. Não teve coragem de apresentá-lo como namorado de palavra dita, só de presença não dita. Alguns viram neles semelhança curiosa; acusaram-nos de serem irmãos pelo traçado do nariz e da boca, até pelas pernas, pelo jeito acusativo de ser; jeito de gente comum e incomum no sentir, perdidos no encontro que não fora marcado. Passado o tempo de aula se foram e deixaram-se ficar numa das primeiras paradas do ônibus para assistir um filme, do qual não se lembrariam de cena alguma, senão da sua própria cena dirigida para o acerto do beijo e surgir de novas carícias. Teria que levá-lo para casa finalmente e aceitá-lo com qualquer olhar, ainda que esse olhar pudesse fugir dela mesma, escapar do seu vôo, do seu pouso de libélula. Ele entrou sem susto na casinha simples, conheceu a mãe dela, pediu para tomar um banho e seu foi...Ela ainda se lembra do cheiro forte do perfume a exalar pela casa após o banho, e até hoje a fragância submete a sua lembrança em qualquer lugar que surja. Tiveram outros encontros apesar da distância, mas aquele dia desaviso adolescente não se repetiu...o delicioso desaviso, impulso a amedrontar, encantador...

Um comentário:

Maria disse...

Já amanheceram na calçada da minha casa. Boas lembranças, aqui: http://damariablog.blogspot.com/2010/01/uma-rua-como-aquela-18072008.html