quarta-feira, 19 de janeiro de 2011

Lagartos 2

Antes da vila foram outras cidadelas e sua mãe, suas origens mais remotas do sertão, dos lagartos camaleões, rápidos no movimento dos membros e das cores, bem mais espertos que os lagartos do tempo de Liria. Sua mãe dizia que eram muitos e que a carne era tenra e saborosa. E naquelas terras onde a carne era escassa, o lagarto fazia a festa no almoço matutino e vespertino. Era comum almoçar ao levantar feijão com milho e vez por outra um pedaço de carne, de passarinho morto a estilingue, de lagarto morto a tiro e raramente alguma criação.

O ovo também era fonte de proteína e energia importantes, mas não eram muitas as aves chocadeiras, e muitas eram as pessoas carentes do alimento, as cozinheiras a fazer bolos. Assim, sua mãe se punha a vigiar o descenso do ovo, aquele parto maravilhoso que lhe dava água na boca. Por vezes, vasculhava os ninhos, e saía feliz com o ovo nas mãos, como se sua sobrevivência e alegria estivesse ali naquela esfera mágica.

Tal qual Liria não se lembrava dos lagartos no começo do seu tempo, sua mãe não se lembrava de sua própria mãe, a avó, senão por uma pequena fotografia, em que ela fechava o cenho diante do sol ardente, os braços pendentes e curtinhos apoiados em um vestido de chita a dar nos joelhos. Diziam que sofria dos nervos, teimava em não conseguir andar, e no dia do casamento recusara levar qualquer pessoa na garupa do cavalo, sob pena de amassar o traje. Terminou por levar uma sobrinha, depois de obter a garantia de que a mocinha, em hipótese alguma, seguraria-se nela. Casou-se, mas pouco durou o matrimônio, vítima que foi de um parto difícil e mal curado feito em casa.

A mãe de Liria fora a primeira nascida e já com três anos não havia mãe que lembrar e nem pai, que este abdicou da função. Foi então que toda fuga sem destino começou. Ela retornaria àquelas terras e veria os camaleões nos troncos tortuosos, veria a terra ressecada cheia de falhas, veria as cabras a beber no açude e os moinhos a moer a cana pra dar rapadura e o ‘fininho’, o puxento doce dos dias de moagem. A casa do pai ficava cheia de cortador de cana e o carro de boi fazia aquele som retinente, enquanto os pobres animais alinhados, presos pelo pescoço, por obra do homem, faziam aquele monótono e duro movimento circular. Via tudo enquanto o pai permanecia calado, os olhos inexpressivos naquela mansidão estranha, naquele fugir do afeto paternal.

2 comentários:

Paulo disse...

Dois textos que são um só. Excelente, pois, Keila. Muito bom.
Beijo

Nina Blue disse...

Lindo, Keila vou continuar a ler o s outros...