sexta-feira, 21 de janeiro de 2011

Lagartos 4

Os lagartos em fuga, um desejo profundo em Liria. Eles pareciam a ela nunca contingentes, obrigatórios. Sua permanência nos lugares era fugaz, eles não se demoravam e raramente deixavam rastros. Pareciam uma névoa que passou. E Liria queria esse passar que passou; queria mais; queria que tudo passasse sem deixar marcas, um mundo dela imemorial. O sofrimento apagado, a lembrança feliz não interrogada, só o porvir sem planos, acidental.

Parecia a ela que lagartos estavam no entrelugar, porque nem rastejavam propriamente, nem voavam. E podiam botar ovos e ainda tê-los, os filhotes, já prontos. E não se apegavam às crias. Criavam-se sozinhos, e talvez, por isso, não faziam morada, não assentavam em lugar qualquer, somente iam. De fato, não eram animais disponíveis à domesticação, embora fosse possível criá-los em cativeiro. Agora, querer afagá-los com carinhos e conversas, quase improvável. Mas a mãe de Liria cria nessa possibilidade, pensava somente que o afeto era rejeitado por falta de tato, a gentileza ideal no momento certo, uma abordagem lenta e permanente a cada dia.

Fosse o mundo cruel o tanto que fosse, se o espírito do lagarto grudasse em gente, não haveria sofrer, perder, regressar. Era isso que encantava Liria, esse inevitável existir assim, um lagarto que chega e vai veloz pelos muros, a criar novas divisas, a indivisar-se por estar apenas ali e em nenhum outro lugar do pensamento, sem deslumbramentos, senão o tiro certeiro, a língua bumerangue na direção do alimento.

Absolutamente naturais, sem razão que se considerar, os largartos apareciam para Liria e sua mãe como a adensar o fosso de seus sentimentos, de seus tormentos diante do oposto cheio de nada, de uma vida sem considerações razoáveis, apenas o movimento de viver, nascer, se proteger, fugir, comer, reproduzir. E então, pensavam elas que isso era o verdadeiro encanto, e que apareciam assim nos caminhos, nas encruzilhadas de suas mentes para dizer exatamente da necessidade de retomar esse natural perdido, acometido da moléstia do julgo, pura artificialidade.

Um comentário:

Nina Blue disse...

Keila, eu gostei também deste, principalmente do trecho:"Pareciam uma névoa que passou. E Liria queria esse passar que passou; queria mais; queria que tudo passasse sem deixar marcas, um mundo dela imemorial".