domingo, 23 de janeiro de 2011

Lagartos 6

Uma lagartixa emoldurada naquele espelho de banheiro. Sim, um quadro vivo, de contornos precisos, a cauda enrolada como um arabesco, como uma pose, ou simplesmente um descuido do parar em estética surpreendente. Liria estava ali deitada naquele aparelho em forma de cama e já ouvira muitos a comentarem daquela forma ali grudada, adesivada. O que aquele ser esperava? A penumbra da sala para especular o lugar, alimentar-se, viver?

Liria e a mãe há algum tempo freqüentavam aquela sala, onde recebiam puxões restauradores de molas e braços, onde mãos as ajudavam a reconhecer o toque, cada superfície desconhecida do próprio corpo, do anestesiado corpo de todo dia, alijado pelos pensamentos inconfessos e confessos. E porque ali estaria aquela imagem recorrente? Aquele lacertídio prestes a fugir, mas que nesse instante era estanque, como a mover só pensamento? Que convivência dura aquela com os humanos, que faziam aquele ser converter-se em mera figuração sem, contudo, ser camaleão?

Quereria ela, certamente, ser camaleão, mas quaisquer olhos que lhe vissem reconheceriam seu disfarce. Entretanto, volviam seu olhar com admiração e perguntas, quase como a vê-la como humanizada, com intenções bem conformadas. Fosse um lagarto menos doméstico, não seria tão bem vista por todos, sequer admirada. Um atrapalhado fujão, assim seria.

Era esse contraponto entre o doméstico e o selvagem que admirava e afrontava Liria. Essa contaminação do humano na lagartixa, essas fugas menos prementes, essas estratégias comoventes por puro engano, como se ela finalmente não estivesse ali, fosse tão somente um desenho no espelho, como muitos humanos, sem qualquer profundidade em relação ao outro, tamanha a aderência do corpo sobre sua própria imagem, a ver somente e só a si mesmos, sempre nesse espelhamento a farejar o de si no outro?

Um comentário:

Nina Blue disse...

"...sempre nesse espelhamento a farejar o de si no outro?", Kela, este então, está muito lacaniano!