terça-feira, 29 de janeiro de 2013

Nascira

Leva certo tempo para se reconhecer alguém na medida suficiente para não vê-la pelos seus extremos, para encontrar a quase exata medida do meio; mas esse meio vem depois, muito adiante das repetições das extremidades, das excentricidades da alma e do corpo. Ela tinha um nome de cálculo soma, meio nascer, meio irar. Já se aproximava da oitava década, mas subitamente assumia ares joviais de moça namoradeira, atenta que era às formas dos rapazes, aos rostos de traços bem delineados; olhava-os sem inibição, e falava cheia de ousadia e desprendimento. Era um proceder assim de retroceder à idade de parte dela que não se fora com as indeléveis marcas do passar dos anos. Se não fosse pelo contar repetido das histórias passadas ninguém diria que ali haveria sequer uma noção de tempo que passou. Mas vinham assim – as histórias - num refalar, um quê de redizer para lembrar. Parece que a idade ao avançar carrega consigo essa necessidade de rememorar, de fixar, não esquecer quem se é, num esforço de guardar existência. Tudo inspirava um conto ou uma crônica engraçada, festiva, desses contares que nos recolocam no lugar da esperança, onde a vida é alegre a despeito da decadência física e do cansaço, até que noutro dia o amontoado de décadas revela-se cruel e desolador. Salta à boca a palavra fim, o desejo de resumir o restante dos anos em apenas dois, emblemático par; “namoradeira”. Salta à boca o sentimento das solidões, do querer dizer e não ter ouvidos que ouvir: “Seu marido terá sorte; você é boa ouvinte”, profetiza. Mas sai sem mais, sem querer mais ouvidos, com jeito meio irado pelo passar do tempo. No outro dia renasce cheia de penduricalhos e brilhos, pinta-se, anela os dedos meio tortos, e segue na cantinela. Um dia, olhares maliciosos; no outro, expressão vazia.

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