sexta-feira, 23 de maio de 2008

Chamava-se

Nasceu com facilidade. Todos ficaram abobados com um parto tão natural e eficiente. Gonçala sentiu aquelas pontadas anunciadoras, deitou-se na cama e a criança apressada já se insinuou por entre suas pernas; escorregou imersa naquela baba sanguinolenta com uma rapidez assustadora. Mas no rosto da recém-nascida não havia nenhum sinal de pressa, e sim um tom azulado, desmaiado, plácido ao extremo. Todos que acompanharam o nascimento esperavam um bebê quase desesperado, que iria urrar sem parar com ou sem tapinha. Tia Gardênia, a aprendiz de parteira, não teve uma experiência das mais instrutivas, tamanha a fluidez do acontecimento, mas cuidou de olhar bem para aquela carinha lívida e sugerir um nome. Achava no tom de pele e nos traços preguiçosos um quê de lirismo insistente. Então, lembrou-se dos lírios, presentes do namorado Rosalvo. Mas como não podia ser Lírio, convenceu Gonçala de que Líria era um nome adorável, pois remetia aos lírios do campo, tinha ares femininos e delicados. A criança cresceu envolta em atenção e proteção. Na adolescência idealizou rapazes, sonhou príncipes e amor eterno. Posto que nenhum dos ideais tornaram-se realidade, a moça Líria pôs-se resoluta em conhecer o lado mais prático, instintivo dos encontros. Foi quando conheceu Jaime, moço obtuso, de cabelos compridos, ligeiramente ondulados e assanhados, mandíbulas fortes, quadradas, quase eqüinas. A despeito de caracteres tão masculinos, os músculos eram discretos, sem grandes proeminências; um corpo imberbe, um rosto duro, pré-histórico. Marcaram um encontro em uma cidade de nome rimado com poema, mas que fora o ar interiorano, não tinha nada de poética. O quarto ficava em um hotelzinho simples e da janela dava para ver os limites do vale onde estavam; vale sem frescor, sem lírios. Os olhos de Jaime percorriam Líria com curiosidade, sem nenhum afeto. Dizia que nunca havia gostado de ninguém e que, certamente, não seria desta vez. Sem lirismo, mas sem agressividade, Jaime retirou lentamente as roupas de Líria e olhou -a ávido, de nervos a artérias tensas, prestes a explodir. Enquanto isso, Líria contemplava Jaime e se concentrava para o início e o desfecho da cena. Procurava nele o frescor dos campos, o olhar consentido. Passaram dois dias completos se rodeando, nus, de almas incompreendidas, numa constante interrogação. Líria voltou para casa; não viu Jaime mais. Com o passar dos anos seu rosto corou, perdeu a lividez. Desde aquele encontro ela temeu reconhecer desafetos, arriscar-se em momentos forjados; assumiu de vez a evocação de tia Gardênia, inscrita no seu nome.

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